quinta-feira, 27 de abril de 2023

QUEM ORIENTA VOCÊ QUANTO À VIDA?

 Missa do 4. dom. Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 2,14a.36-41; 1Pedro 2,20b-25; João 10,1-10

 

                A figura do pastor é muito forte no mundo bíblico, pelo fato de o povo de Israel ser (antigamente) bastante habituado com essa realidade do pastor cuidando das suas ovelhas. Para nós, no mundo atual, a figura bíblica do pastor pode ser traduzida como a do cuidador ou do orientador: todo cuidador, todo orientador é um “pastor”, e toda pessoa que necessita ser cuidada ou orientada é uma “ovelha”. Políticos, empresários, líderes de setores de trabalho, pais, professores, líderes religiosos, médicos, psicólogos etc., são “pastores”. Cidadãos, trabalhadores, pessoas lideradas, filhos, seguidores de uma igreja ou religião, pacientes etc., são “ovelhas”.

            Jesus, o autêntico “pastor segundo o coração de Deus” (cf. Jr 3,15; Ez 34,15-16), apresenta-se como “porta”, tanto para as pessoas que têm a função de pastorear, cuidar, orientar, quanto para as pessoas que necessitam de cuidado, proteção e orientação. “Quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante” (Jo 10,1). “Eu sou a porta” (Jo 10,9). Toda pessoa que tem a responsabilidade de cuidar de alguém precisa se inspirar em Jesus. Ele nunca buscou seus próprios interesses, mas sempre o bem e a salvação das pessoas. Em vista disso, disse “não” e confrontou a pessoa com sua própria verdade, quando era necessário fazê-lo; foi misericordioso e compassivo, colocando o bem da pessoa acima de qualquer lei (civil ou religiosa); jamais se deixou instrumentalizar ou se esgotar, quando queriam abusar da sua bondade; deu prioridade aos que mais sofriam e necessitavam ser resgatados; “amou até o fim” (cf. Jo 13,1).   

            Toda pessoa que cuida, lidera, orienta alguém, sem ter Jesus como modelo, corre o risco de se tornar “ladrão e assaltante”: usa sua posição de líder para lucrar com a vida dos outros; corrompe-se; deixa o poder “subir à cabeça” e se torna arrogante; busca seus próprios interesses e não o bem daqueles que estão sob seus cuidados. Além disso, existem “pastores” que se deixam sugar por suas ovelhas: são incapazes de dizer “não”, de colocar limites, de confrontarem os seus liderados com a verdade; carregam as ovelhas no colo quando estas podem caminhar com suas próprias pernas – o resultado é a sobrecarga, o esgotamento e o adoecimento do pastor.

            Além de ser a porta – no sentido de modelo, de inspiração – para todo pastor, cuidador, orientador, Jesus é também a porta para toda ovelha que necessita “entrar, sair e encontrar pastagem” (cf. Jo 10,9). “Entrar” – somente por meio de Jesus podemos ter acesso ao Pai: “por meio dele, todos nós, num só Espírito, temos acesso ao Pai” (Ef 2,18). “Sair” – sinônimo de libertação: “Se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres” (Jo 8,36). “Pastagem” – alimento, condição essencial para se ter vida: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim, nunca mais terá fome, e o que crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,35). Todo ser humano busca, ainda que inconscientemente, encontrar o Pai; necessita ser liberto de algo que o aprisiona ou ameaça; busca não somente sobreviver, mas viver uma vida com sentido. Tudo isso só pode ser encontrado na pessoa de Jesus Cristo.

            Ele nos recorda que aquilo que vincula a ovelha ao pastor é o reconhecimento da sua voz: “As ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora... As ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz. Mas não seguem um estranho, antes fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos” (Jo 10,3-5). A voz do pastor é sinônimo de orientação. A humanidade tem se sentido profundamente desorientada. Há uma forte desorientação quanto à vida profissional, ao lidar com os problemas, ao construir um relacionamento, ao conduzir uma família, ao compreender a própria sexualidade, ao escolher uma igreja ou religião etc. Toda essa desorientação é agravada pelas fake news e por sites que têm como objetivo principal a falsificação da realidade.

             Voz é sinônimo de orientação. Com quem você tem se orientado quanto à sua vida afetiva, sexual, familiar, profissional, financeira, espiritual? Enquanto existe uma rejeição a toda voz “institucional” – Estado (política), Igreja, Família, Escola – existe uma procura desesperada na Internet por gurus, coachings (treinadores, instrutores, motivadores), psicólogos, filósofos, influenciadores (influencers), padres, pastores e outros líderes espirituais que forneçam uma resposta rápida de prática à angústia que a pessoa está vivenciando. Quantos desses “orientadores” são cegos guiando outros cegos (cf. Lc 6,39)?

Jesus termina o Evangelho de hoje contrapondo-se ao ladrão, que se disfarça de “orientador” da pessoa, visando unicamente roubá-la, matá-la e destruí-la: “O ladrão só vem para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Mais do que nunca, cada um de nós precisa se perguntar pelo quê ou por quem está se orientando na vida. Quantas pessoas – ou, quem sabe, quantos de nós – estão seguindo orientações mentirosas, doentias, perversas, e não admitem reconhecer que estão sendo roubadas, mortas e destruídas? Quantos de nós estamos escolhendo entrar em portas erradas, justamente porque são largas e atrativas, ao invés de entrarmos pela porta que é Jesus, uma porta estreita, sim, exigente, sim, mas a única porta que nos conduz à verdadeira Vida?   

 

ORAÇÃO: Senhor Jesus, “eu me desvio como ovelha perdida: vem procurar o teu servo!” (Sl 119,176). Ensina-me a cuidar daqueles que a vida confiou aos meus cuidados, inspirando-me em Ti. Quero aprender contigo a buscar o verdadeiro bem daqueles que me foram confiados, sem, contudo, me deixar manipular ou esgotar por eles. Liberta-me da necessidade doentia de ser aceito(a) e amado(a) pelos outros. Que a minha liderança seja pautada unicamente pelo amor à justiça e à verdade.

Intercede ao Pai por esse imenso rebanho que é a humanidade, cuja maioria se encontra desorientada, adoecida, incapaz de distinguir a voz do pastor da voz do ladrão. Concede-nos sabedoria para não nos deixarmos enganar por sites criados para roubar, matar e destruir a verdade dos fatos históricos, procurando nos enganar por meio de um “Brasil Paralelo”. Sobretudo, Senhor Jesus, livra nossas crianças, nossos adolescentes e jovens dos inúmeros ladrões e assaltantes que inundam a Internet com jogos, vídeos, fotos e mensagens cujo principal objetivo é roubar, matar e destruir suas vidas. Amém!  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 20 de abril de 2023

REAFIRME SEU PROJETO DE VIDA!

 Missa do 3º dom. Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 2,14.22-33; 1Pedro 1,17-21; Lucas 24,13-35.

 

            Após a morte de Jesus na cruz, e mesmo depois de terem ouvido relatos de que o sepulcro estava vazio e que Jesus havia ressuscitado, dois discípulos dele abandonam Jerusalém e dirigem-se para um lugar chamado Emaús. Enquanto no rosto deles é nítida a tristeza, o coração de ambos expressa a decepção com a morte de Jesus: “Nós esperávamos que ele fosse libertar Israel, mas, apesar de tudo isso, já faz três dias que todas essas coisas aconteceram!” (Lc 24,21).

            “Nós esperávamos..., mas...”. Quantas esperanças nossas foram frustradas pelo próprio Deus, pela vida, pelas pessoas ou por determinados acontecimentos? Quantos de nós já estivemos ou estamos, nesse momento, decepcionados, desiludidos, desesperançados, seja com Deus, seja com as pessoas, seja com nossa vida afetiva ou profissional, seja conosco mesmos? Enquanto há esperança, nós suportamos as dificuldades e contrariedades, mas quando nossa esperança se transforma em desencanto, em decepção, a atitude mais comum é o abandono do projeto de vida que havíamos abraçado, nos esquecendo de que “é diante do sofrimento que nós reafirmamos o nosso projeto de vida” (Leo Fraiman, professor e psicólogo).

            “Projeto de vida” é sinônimo de “vocação”, e vocação é a consciência de que somos uma missão; nossa existência é fruto de um chamado a abraçar uma tarefa em favor do bem de alguém ou de uma causa que depende de nós para ser defendida ou concretizada. “Projeto” significa ter uma razão para continuar caminhando para a frente; ter razões internas para não parar de caminhar, para não abandonar o caminho iniciado por estarmos enfrentando situações muito difíceis, que estão corroendo a nossa esperança. Quem sabe da importância do projeto de vida que abraçou não o abandona por causa do sofrimento, mas entende que o sofrimento é a oportunidade para reafirmar o seu projeto, a sua vocação, a fidelidade a si mesmo, à sua consciência e a Deus, que o chamou a abraçar tal projeto.   

            A atitude mais comum hoje, na maioria das pessoas, é o abandono, a desistência, o deixar Jerusalém e ir embora para Emaús. Mas é justamente nesse caminho que o Cristo ressuscitado se coloca junto a nós para questionar a facilidade com que nós trocamos a esperança pelo desencanto, pela decepção, pela desesperança. Diante da nossa tentativa de justificar a razão pela qual abandonamos o nosso projeto de vida, Jesus nos faz reler os acontecimentos à luz da Sagrada Escritura: “E, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele” (Lc 24,27). A maneira como Jesus reinterpretou os acontecimentos à luz da Sagrada Escritura fez reacender a esperança no coração dos dois discípulos: “Não estava ardendo o nosso coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24,32). 

            Aqui está a importância da Palavra de Deus em nossa vida – seja escutando-a na Liturgia da Palavra (missa), seja meditando-a em casa, no carro ou no trabalho. Sem a luz da Palavra de Deus, nós nos perdemos na escuridão desse mundo mergulhado na desorientação. Quando ficamos como que cegos, incapazes de ver além da nossa decepção, incapazes de interpretar corretamente o sofrimento como oportunidade de reafirmar a nossa vocação e de renovar a nossa fidelidade à missão que abraçamos, precisamos que a Palavra de Deus fale ao nosso coração e o aqueça novamente, devolvendo-nos a consciência de que existe uma razão, um sentido, uma finalidade naquilo que estamos enfrentando. Portanto, a nossa missão consiste em permanecer em Jerusalém, e não em fugir para Emaús.   

            O pedido que fazemos àquele cuja Palavra tem o poder de fazer voltar a arder o nosso coração é o mesmo dos discípulos de Emaús: “Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” (Lc 24,29). ‘Fica conosco, quando a noite da tristeza, do desencanto e da desesperança obscurece o nosso olhar e nos impede de enxergarmos a tua presença junto a nós, Senhor Jesus!’ “Jesus entrou para ficar com eles. Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles” (Lc 24,30-31). O Ressuscitado só foi reconhecido “ao partir o pão”, expressão bíblica que designa a Eucaristia. Aquele que tanto desejamos experimentar vivo e vê-lo ressuscitado desaparece fisicamente no exato momento em que “se esconde” na Eucaristia! Aquele que “entrou para ficar com eles” (Lc 24,29) não foi embora, após partir o pão; apenas ficou invisível, para nos dizer que a sua Presença entre nós será encontrada na Eucaristia.

            “Naquela mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém” (Lc 24,33). Toda pessoa que se encontra com o Ressuscitado na Palavra e na Eucaristia recebe forças para retomar o seu projeto de vida e recolocar os seus pés na estrada certa, na direção certa, renovando a sua fidelidade à própria vocação. A cruz continuará a marcar com a sua sombra o nosso caminho, mas não pararemos nela, porque a nossa fé e a nossa esperança estão em Deus (cf. 1Pd 1,21): Ele “ressuscitou a Jesus, libertando-o das angústias da morte” (At 2,24). Ele nos chamou a abraçar um projeto de vida e nos sustenta na vivência diária da nossa vocação, com a graça do Espírito Santo.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

Oração do Ano Vocacional

 

Senhor Jesus, enviado do Pai e Ungido do Espírito Santo, que fazeis os corações arderem e os pés se colocarem a caminho, ajudai-nos a discernir a graça do vosso chamado e a urgência da missão. Continuai a encantar famílias, crianças, adolescentes, jovens e adultos, para que sejam capazes de sonhar e se entregar, com generosidade e vigor, a serviço do Reino, em vossa Igreja e no mundo. Despertai as novas gerações para a vocação aos Ministérios Leigos, ao Matrimônio, à Vida Consagrada e aos Ministérios Ordenados. Maria, Mãe, Mestra e Discípula Missionária, ensinai-nos a ouvir o Evangelho da Vocação e a responder com alegria. Amém.

 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

UMA FÉ FERIDA PARA FALAR ÀS PESSOAS FERIDAS

Missa do 2. dom. Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 2,42-47; 1Pedro 1,3-9; João 20,19-31.

 

            Estamos diante da primeira aparição do Cristo ressuscitado aos seus discípulos. Ele os encontra trancafiados pelo medo: “Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou...” (Jo 20,19). Por medo de serem feridos ou decepcionados novamente, muitos fecharam a porta da sua vida para o amor, para um novo relacionamento afetivo. Por medo de verem seu filho sofrer e, quem sabe, ser morto pela violência do mundo, casais decidiram fechar a porta para a fecundidade, optando por não terem filhos. Por medo de enfrentar a vida com seus desafios, muitos adolescentes e jovens se fecham na ansiedade, no pânico, na depressão (adoecimento psíquico). Por medo de dialogar com o mundo, muitos evangelizadores vivem seu ministério fechados em suas próprias igrejas, não levando o Evangelho aonde ele deveria chegar, por ordem de Jesus.

            A boa notícia é que o Senhor ressuscitado atravessa nossas portas fechadas! Nenhum fechamento nosso o impede de ter acesso a nós e nos ajudar a enfrentar os nossos medos: “Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’. Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (Jo 20,19-20). A paz que o Ressuscitado nos concede, nasce da luta (mãos e o lado feridos da cruz) travada para tornar melhor a nós mesmos e ao mundo. Essa paz não depende de que as coisas à nossa volta nos sejam favoráveis, mas nasce da convicção de que a nossa vida está nas mãos do Pai. Seus desígnios de amor e de salvação se cumprirão, ainda que alguns acontecimentos momentâneos pareçam negar essa verdade.

            Talvez muitos se perguntem por que não sentem essa paz que o Ressuscitado concede à sua Igreja. Santo Inácio de Loyola discerniu que a paz só surge em nós quando escolhemos viver segundo a vontade de Deus. Toda vez que nos afastamos dessa vontade, perdemos nossa paz; toda vez que alinhamos nosso coração ao que Deus pede de nós naquele determinado momento, voltamos a sentir paz. Além disso, a paz também depende da consciência e do respeito aos nossos limites, o que significa dizer “não” ao nosso próprio ego e, sobretudo, às pessoas que não respeitam nossos limites.   

            Além de nos trazer paz, o Ressuscitado nos concede o dom do Espírito Santo. Ele já havia sido prometido a nós antes de Jesus morrer na cruz (cf. Jo 14,15-17.26; 15,26; 16,7-11). Segundo o próprio Jesus, o Espírito Santo é nosso advogado, defensor, a força do alto que nos sustenta em nossas lutas (sobretudo espirituais), Aquele que nos conduzirá à verdade plena. Só através do Espírito Santo podemos experimentar o Ressuscitado junto de nós, assim como a presença do Pai em nós. Enfim, como afirma o apóstolo Paulo, devemos saber que não recebemos um espírito de medo, mas de força (cf. 2Tm 1,7). Ele é a garantia da nossa ressurreição (cf. Ef 1,13-14; Rm 8,11).

            Mas esse oitavo dia após a Páscoa tem ainda uma outra razão de ser: nossa fé está ferida. Tomé não estava com os outros discípulos quando Jesus veio... “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (Jo 20,25). Tomé exige uma revelação particular, uma experiência pessoal. Não lhe basta o testemunho da Igreja (anúncio da Palavra). Isso é compreensível e acontece com qualquer um de nós. Todos nós precisamos ter um encontro pessoal com Jesus. O problema é que ninguém pode produzir no outro o dom da fé. Esse dom só pode ser concedido pelo Pai: “Ninguém vem a mim, se o Pai que me enviou não o atrair” (Jo 6,44).

            Jesus não nega a Tomé o que ele sente que necessita para crer, mas lhe faz uma advertência: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel” (Jo 20,27). Não seja incrédulo! Não condicione a sua fé ao ver, ao entender, ao tocar, ao sentir. Não se escandalize pelo fato de sua fé ser uma fé ferida, pois eu, ressuscitado, trago em meu corpo glorificado as feridas da minha cruz. Minha Igreja é uma Igreja ferida, porque só uma Igreja ferida pode se compadecer e se colocar junto às pessoas feridas. Eu, o seu Senhor e Salvador, sou um Deus ferido, porque só um Deus ferido pode salvar uma humanidade ferida. Só uma pessoa que passou pela dor tem uma palavra significativa para falar a quem está na dor.

            Muitas situações ferem a nossa fé. Pais foram feridos pela morte do filho; casais foram feridos pelo fim do relacionamento; filhos foram feridos pela separação dos seus pais; crianças foram feridas pela ausência paterna ou materna, ou, pior ainda, por abusos sexuais; famílias são diariamente feridas pela dependência química, pela agressão física ou verbal, pelo empobrecimento e pela fome; as novas gerações estão feridas pelo adoecimento provocado pelo vício nas redes sociais; escolas estão feridas por ideologias extremistas; enfim, nossa sociedade está ferida pelo ódio e pela crença na força destrutiva das armas.  

            Diante das feridas da nossa fé, devemos saber que estamos “guardados para a salvação que deve manifestar-se nos últimos tempos. Isto é motivo de alegria para vós, embora seja necessário que agora fiqueis por algum tempo aflitos, por causa de várias provações” (1Pd 1,5-6). Mesmo sem ver Jesus ressuscitado, nós cremos na sua presença junto a nós. “Isto será para vós fonte de alegria indizível e gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação” (1Pd 1,9). Por isso, agradeçamos ao Ressuscitado por falar ao Tomé que habita em cada um de nós. Além disso, acolhamos a sua advertência: “Acreditaste, porque me viste? Felizes os que creram sem terem visto!” (Jo 20,29).

Não, eu não andei, sobre as águas não andei. Nem pude transpor as montanhas com minha fé. Não, eu não te vi, como tantos dizem ver. Eu não te senti, como dizem te sentir. Mas mesmo assim estou aqui insistindo em te encontrar. Vivo não pelo que os olhos podem ver, mas vivo por acreditar. E eu sei...

Sei que tu estás aqui, sei que estás perto de mim, Jesus, Jesus!

Não eu não achei as respostas que busquei. E ninguém me viu como só Você me vê. Mas mesmo assim estou aqui insistindo em te encontrar. Vivo não pelo que os olhos podem ver, mas vivo por acreditar. E eu sei, eu sei...

 

https://www.youtube.com/watch?v=s5ZbfqV3ZIM (Vivo por acreditar – Gil Monteiro).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

sábado, 8 de abril de 2023

CRISTO RESSUSCITADO É O SENHOR DO MEU VIVER E DO MEU MORRER

 Missa do domingo de Páscoa – Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 10,34ª.37-43; Colossenses 3,1-4; João 20,1-9.

 

A morte pode nos atingir de várias maneiras, a partir de fora. Mas o problema é quando nós nos deixamos morrer a partir de dentro. Algumas pessoas, depois de serem atingidas por algum tipo de morte, reagiram e decidiram ressuscitar, enquanto outras se entregaram e se deixaram morrer. “A tragédia não é quando um homem morre. A tragédia é o que morre dentro de um homem quando ele está vivo” (Albert Schweitzer).

“Ele (o discípulo amado) viu e acreditou” (Jo 20,8). As coisas que você vê à sua volta fazem você acreditar na ressurreição? Quando você vê inúmeras pessoas doentes, a escalada sempre maior da violência, a maldade das pessoas, o alastramento das drogas em todos os setores da sociedade, as tragédias, a desorientação de tantos adolescentes e jovens, o desmantelamento das famílias, a degradação do meio ambiente, o descaso com a vida etc., você ainda consegue acreditar na vitória da vida sobre a morte?

“Ele viu e acreditou” (Jo 20,8). Mas, com certeza você também vê doentes que não se entregam à própria dor; pessoas que, à semelhança de Jesus, escolhem passar pelo mundo fazendo o bem, não se importando se são reconhecidas ou não; pessoas que a cada dia se levantam e dizem: “Por hoje não” – por hoje eu não vou beber, não vou usar drogas; empresários, políticos, pais e mães de família que trabalham honestamente; jovens que estudam e trabalham, construindo seu próprio futuro; famílias que decidem construir suas casas diariamente sobre a rocha do Evangelho e não sobre a areia do mundo; pessoas que dedicam parte de seu tempo livre para defender o meio ambiente; enfim, pessoas que trabalham em defesa da vida.  

“Ele viu e acreditou” (Jo 20,8). Olhe para a sua própria vida. Que sinais estão presentes nela e sustentam a sua fé na vitória de Cristo sobre a morte? Talvez, como Maria Madalena, Pedro e o outro discípulo, você ainda esteja diante de sinais que misturam morte e vida: túmulo vazio, faixas de linho no chão e um pano enrolado à parte, sinais que você interpreta erroneamente, como Maria Madalena: “Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram” (Jo 20,2). Talvez alguma coisa muito preciosa tenha sido tirada de você, e por isso você não consegue crer na ressurreição, crer que a vida é mais forte do que a morte.

Mas o que significa crer na ressurreição? O Evangelho do domingo de Páscoa poderia nos colocar diante do Cristo Ressuscitado (o que será feito nos dois próximos domingos), mas ele nos coloca, primeiro, diante de um túmulo vazio, túmulo que nos lembra que crer na ressurreição não significa crer que não vamos morrer, ou que vamos ser poupados de sofrimento, mas significa crer que vamos vencer a morte e o sofrimento. O nosso sofrer e a nossa morte não são a negação da ressurreição, mas o lugar existencial onde experimentaremos a nossa própria ressurreição: “Incessantemente e por toda parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus (sua morte), a fim de que a vida de Jesus (sua ressurreição) seja também manifestada em nosso corpo” (2Cor 4,10).

O dia de Páscoa nos convida a retirar a pedra do túmulo do nosso desânimo, do nosso abatimento, túmulo que representa tantas atitudes nossas por meio das quais nos enterramos vivos, morremos antes da hora, abandonamos os nossos valores, pensando que ficar dentro de um túmulo seja melhor do que sair e enfrentar a vida e correr o risco de sermos machucados. O Pai, que ressuscitou seu Filho e lhe concedeu manifestar-se aos discípulos, que comeram e beberam com Jesus após a ressurreição (cf. At 10,40-41), nos convida a nos esforçar por “alcançar as coisas do alto” (Cl 3,1), onde está seu Filho. Isso significa que “as coisas terrestres” são incapazes de responder à nossa sede de sentido e de vida. Justamente por isso, nossa consciência precisa estar voltada para onde se encontra a nossa verdadeira vida.

Diariamente encontramos pessoas que desistiram de buscar as coisas do alto e passaram a viver arrastadas pelas coisas da terra, pessoas que desistiram de crer na força da Páscoa, desistiram de se esforçar em fazer a passagem da morte para a vida porque esta passagem se apresenta, à primeira vista, humanamente impossível. Mas a Ressurreição de Cristo nos ensina que a Páscoa não é obra nossa, e sim obra de Deus em nós! É Ele quem nos faz passar! A fé na Ressurreição nunca é a fé naquilo que você pode fazer, mas sempre é a fé naquilo que Deus pode fazer em você.

O apóstolo Paulo nos ensina que, mesmo crendo na ressurreição de Cristo, a nossa vida continuará a ser uma “vida escondida com Cristo, em Deus” (Cl 3,3). “Vida escondida” significa que, aos olhos do mundo, nós, que cremos na ressurreição, continuamos a ser simples mortais. Mas a nossa fé nos diz que quando Cristo, nossa vida, aparecer em seu triunfo, seremos revestidos de glória, seremos com Ele ressuscitados (cf. Cl 3,4). Portanto, neste dia de Páscoa, cantamos com alegria: “E quando amanhecer o dia eterno, a plena visão, ressurgiremos por crer nesta vida escondida no Pão!”

 Também o apóstolo Paulo afirma que “se vivemos, é para o Senhor que vivemos; se morremos, é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor... Cristo morreu e ressuscitou para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,8-9). Permitamos que Ele seja Senhor e Redentor não somente daquilo que ainda vive em nós, mas também daquilo que porventura tenha morrido ou esteja morrendo: ‘Eu pertenço a ti, Senhor. Em tuas mãos está o meu viver e também o meu morrer. Quer eu me sinta vivo, quer eu me sinta morto, que eu nunca perca a consciência de que pertenço a ti e estou em tuas mãos, mãos que cuidam de mim, mãos que me amparam e me conduzem, mãos que podem me retirar da morte e me conduzir para a Vida’.

Porque Cristo vive, eu posso seguir pela vida sabendo que nada poderá me separar do amor de Deus, manifestado na pessoa de seu Filho Jesus (cf. Rm 8,37-39). Porque Cristo vive, eu posso suportar minhas provações crendo que Deus tem o poder de ressuscitar os mortos, e nessa minha fé Deus me devolve, de maneira transformada, tudo aquilo que eu entreguei em Suas mãos (cf. Hb 11,17-18).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 5 de abril de 2023

A PÁSCOA - PASSAGEM DA MORTE PARA A VIDA - É OBRA DE DEUS EM NÓS

Missa da Vigília Pascal. Palavra de Deus: Gênesis 1,1.26-31a; Êxodo 14,15-15,1; Isaías 55,1-11; Romanos 6,3-11; Mateus 28,1-10

 

“Eu espero, Senhor, eu espero com toda a minha alma, esperando tua palavra; minha alma aguarda o Senhor mais que os guardas pela aurora” (Sl 130,5-6). Estas palavras do salmista revelam o significado desta noite: estamos em Vigília, estamos participando da Mãe de todas as vigílias, esperando pela Palavra da ressurreição; estamos esperando pelo Senhor ressuscitado mais do que os vigias esperam pela aurora, isto é, pelo fim da noite e pelo nascimento do novo dia.

Esta é a noite de todas as noites, a grande noite da Páscoa. Nesta noite, o Senhor se dirige a nós como se dirigiu a Israel na noite da saída do Egito: “Diga aos filhos de Israel que se ponham em marcha” (Ex 14,15). Por que Deus quer que nos coloquemos em marcha? Porque somos um povo pascal, porque somos pessoas pascais, porque a cada dia devemos fazer uma passagem: a passagem da escravidão para a liberdade, do pecado para a graça, da morte para a vida. Mas como colocar-se em marcha? Como fazer a passagem, se o caminho está obstruído, se diante de nós há um imenso mar, uma imensa dificuldade que nos parece impossível de atravessar, de vencer?

É a Palavra do Senhor que nos abre o caminho, para que possamos passar. Quando Israel estava no exílio da Babilônia (séc. VI aC), e não via mais como passar, como sair da desolação em que se encontrava, Deus dirigiu a sua Palavra àquele povo para lembrá-lo de que Ele é o Criador, Aquele que fez todas as coisas e as mantém com o poder da sua Palavra (cf. Gn 1,1–2,2), Aquele que iniciou sua obra em cada um de nós, e a quem nos dirigimos pedindo: “Senhor, eu vos peço: não deixeis inacabada esta obra que fizeram vossas mãos” (Sl 138,8). Por isso, a imagem do paraíso, descrita na primeira leitura, não é saudade de um passado que não voltará mais, mas esperança de um futuro que será criado por Deus, que tem por desígnio restaurar todas as coisas em seu Filho Jesus (cf. Ef 1, 9-10; Cl 1,19-20).

O texto bíblico que ilumina especialmente esta noite de Páscoa é a libertação de Israel do Egito, uma libertação sofrida e obtida graças à parceria entre Moisés e Deus, uma forma de nos tornar conscientes de que nós só podemos ser libertos quando nos dispomos a fazer a nossa parte, confiando que Deus fará a d’Ele para nos retirar da situação de escravidão e morte e nos levar para uma situação de liberdade e vida.

A passagem pelo mar Vermelho nos lembra que não existe passagem sem luta, sem enfrentar o medo e a dor. Mas nós nunca estamos sozinhos nesta passagem: Deus está conosco! É Ele quem nos faz passar! Como fez com Israel, Ele se coloca junto a nós, na imagem da nuvem, tenebrosa para os egípcios, mas luminosa para os israelitas. Sempre que você se propõe a passar da morte para a vida, vai sentir-se perseguido por uma nuvem de medo e de ameaça, tentando convencê-lo de que a passagem não vai dar certo, a travessia não vai funcionar. Não preste atenção a essa nuvem tenebrosa que está atrás de você. Mantenha o seu olhar na nuvem luminosa, que é o próprio Deus a sustentar seus passos na travessia que você está fazendo. A Páscoa é obra d’Ele em sua vida, e Ele nunca começa uma obra, para depois abandoná-la pela metade (cf. Fl 1,6).

Esse mesmo Deus e Senhor nos faz um convite: ‘Quem está com sede, venha para as águas! Quem está com fome, venha comer! Não é necessário pagar pela bebida, nem pela comida, porque a minha salvação é dom, é graça, e não mérito de alguma pessoa!’ Para ser salvo, basta ter sede, basta ter fome; não é preciso dinheiro, nem mérito, nem uma vida irrepreensível. Somente é preciso se dispor a buscar o Senhor todos os dias: “Buscai o Senhor, enquanto pode ser achado; invocai-o, enquanto ele está perto” (Is 55,6). Além disso, é preciso compreender que a maneira de Deus agir em nossa vida muitas vezes nada tem a ver com as nossas expectativas: “Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos” (Is 55,8). Mesmo não compreendendo a maneira de Deus agir em nosso favor ou em favor da humanidade, é importante confiar na sua palavra, pois Ele garante: “... a palavra que sair de minha boca: não voltará para mim vazia; antes, realizará tudo que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi, ao enviá-la” (Is 55,11).

São Paulo apóstolo nos lembra, nesta noite pascal, que a força da Páscoa de Cristo nos foi concedida no momento do nosso batismo. Graças ao batismo, nós pudemos nos tornar semelhantes a Jesus Cristo na sua morte, para que um dia nos tornemos semelhantes a ele na sua ressurreição. Viver como batizados significa assumir o compromisso de fazer morrer em nós o nosso velho homem, aquelas atitudes que nos mantém presos ao nosso pecado. Se queremos ressuscitar com Cristo para uma vida nova, primeiro é preciso morrer com Ele, crucificando o nosso pecado. Somente quando aceitamos nos identificar com Cristo por uma morte semelhante à sua é que podemos nos identificar com Ele por uma ressurreição semelhante à Sua. Sem a nossa disposição em fazer morrer o nosso pecado, não podemos experimentar a alegria da ressurreição de Cristo.

Nesta noite de vigília o Evangelho nos transporta para “depois do sábado”. Depois do grande silêncio de Deus, da Sua aparente indiferença para com o sofrimento de todos os crucificados do nosso tempo, tem início uma nova semana. Mas nós nos perguntamos: Como recomeçar a vida depois que a morte sepultou consigo as nossas esperanças?

            As duas mulheres vão ver o sepulcro são surpreendidas por um grande tremor de terra. Quantos tremores de terra já nos surpreenderam ao longo da vida? Como falar de ressurreição diante desses “tremores de terra” que abalam a nossa fé? Mas o forte tremor de terra que as mulheres ouviram foi o sinal claro da intervenção de Deus na morte de Jesus: o anjo do Senhor desceu e retirou a pedra que lacrava o sepulcro, não para que Jesus saísse, e sim para que as mulheres pudessem entrar e constatar que Ele não estava ali, pois havia ressuscitado: “Sei que procurais Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui! Ressuscitou, como havia dito! Vinde ver o lugar em que ele estava” (Mt 28,5-6).

            Na maioria das vezes, nós interpretamos os tremores de terra como experiências onde somos soterrados, onde grandes pedras caem sobre nós e esmagam nossos sonhos, sepultando nossas esperanças. Mas quando o nosso Deus permite que o chão da nossa vida se abale não é para nos fazer sentir medo. Pelo contrário. Tanto o anjo do Senhor quanto o próprio Jesus ressuscitado disseram às mulheres: “Não tenham medo!” Deus só permite os “tremores de terra” quando eles nos ajudam a despertar do sono da morte, quando eles quebram aquilo que se endureceu dentro de nós, quando eles arrebentam as grandes pedras que nós mesmos colocamos ou permitimos que os outros colocassem na entrada da nossa própria sepultura, onde permanecemos enterrados junto com os nossos medos.

            Nesta Vigília Pascal o Senhor Ressuscitado vem ao encontro de cada um de nós, como foi ao encontro das mulheres, e nos diz: “Alegrai-vos! Não tenhais medo!” A morte vai continuar a existir, mas ela não tem mais poder sobre nós. Ela pode apenas ferir o nosso corpo, mas não pode matar a nossa fé, a nossa esperança e o nosso amor. Diante de todos os tremores que possam acontecer na história da humanidade, nós prosseguimos confiantes em nossa travessia, em nosso seguimento de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, levando em nosso coração a Palavra do seu Deus e nosso Deus, do seu Pai e nosso Pai: “Podem os montes recuar e as colinas abalar-se, mas minha misericórdia não se apartará de ti, nada fará mudar a aliança de minha paz, diz o teu misericordioso Senhor” (Is 54,10).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

APESAR DE AMARGO, O CÁLICE DA DOR CONTÉM O VERDADEIRO REMÉDIO PARA A SUA FERIDA

 Sexta-feira da Paixão do Senhor. Palavra de Deus: Isaías 52,13–53,12; Hebreus 4,14-16; 5,7-9; João 18,1–19,42.

 

            Todo ser vivo é passível de sofrimento. Porém, a diferença entre nós, seres humanos, e as demais criaturas, é que elas não têm consciência do sofrimento, enquanto nós temos. Isso significa que temos a capacidade de dar um sentido para o nosso sofrimento. Além disso, é importante entender que “ser passível” de sofrimento não significa “sofrer de maneira passiva”. Muito pelo contrário; nós somos chamados a ter uma atitude ativa diante do sofrimento, a exemplo de Jesus, que estava “consciente de tudo o que ia acontecer” (Jo 18,4) e, diante da reação defensiva de Pedro, corrigiu-o por meio dessas palavras: “Não vou beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11).

            Como você lida com o cálice do seu sofrimento? Você tem consciência de que a cruz nem sempre é uma opção? Não importa qual sofrimento entra em nossa vida; nós sempre teremos liberdade para escolher como queremos lidar com ele. Alguns fogem do sofrimento por meio da bebida, das drogas e do suicídio por não tolerarem de modo nenhum a cruz chamada “frustração”, “perda”, “não”. Qual a sua capacidade de tolerância em relação a essas coisas? Ainda que instintivamente todos nós fujamos do sofrimento, sempre vai chegar a hora de nos deparar com uma dor que não escolhemos, mas que faz parte daquele capítulo da nossa história de vida. 

            Não é prudente termos tanta pressa em passar adiante o cálice que o Pai nos dá para beber. Apesar de amargo, esse cálice pode conter o único e verdadeiro remédio para nos curar da ferida do egoísmo, do narcisismo, do vício, do pecado, de atitudes nossas que estão levando nossa vida pessoal, familiar, profissional ou espiritual para a morte. O sofrimento não é a morte. A morte é a não aceitação de nenhum tipo de sofrimento, atitude que nos torna covardes diante da vida. 

         É verdade que o sofrimento é sempre feio e desagradável: “Tão desfigurado ele estava, que não parecia... ter um aspecto humano... Não tinha beleza nem atrativo para o olharmos, não tinha aparência que nos agradasse” (Is 52,14; 53,2). Nós vivemos numa sociedade que supervaloriza a beleza, a estética. No entanto, Deus pode se manifestar em nossa vida por meio de algo que não tenha beleza, que não tenha aparência que nos agrade. Se nós costumamos desviar o olhar de tudo o que é feio, de tudo o que nos lembra fraqueza, imperfeição, dor, envelhecimento e morte, o Cristo Crucificado nos ensina que também fazem parte da vida o deficiente, o fraco, o imperfeito, aquilo que consideramos feio, desprezível e sem importância. Se nós queremos ser curados, precisamos aprender a ouvir as nossas feridas, e não fazer de conta que elas não existem.

        Não há dúvida de que o sofrimento nos causa repulsa. No entanto, o fruto dele é extremamente benéfico para nós: “suas feridas, o preço da nossa cura” (Is 53,5). Toda dor nos ensina a repensar os nossos valores, a nos perguntar se nós ainda sabemos distinguir entre o essencial e o supérfluo. Além disso, ao derrubar nosso orgulho e nossa autossuficiência no chão, ao desmontar os nossos esquemas, a Cruz nos faz enxergar que até mesmo quando fracassamos aos olhos dos homens, até mesmo quando descemos no mais fundo do poço, justamente ali pode ser dar a nossa redenção, a nossa cura, a nossa salvação.

            O dia de hoje convida você a entregar a sua dor aos pés da cruz de Cristo. Talvez neste momento você esteja se sentindo como o salmista: “... tornei-me como um vaso espedaçado” (Sl 31,12), espedaçado porque você se confiou a mãos erradas, ou por que descuidou de si mesmo(a). Seja como for, este é o momento de você recolher seus pedaços e apresentá-los diante da cruz de Cristo, dizendo: “A vós, porém, ó meu Senhor, eu me confio... Eu entrego em vossas mãos o meu destino; libertai-me do inimigo e do opressor” (Sl 31,15-16).

            Da mesma forma, o autor da carta aos Hebreus nos convida a permanecer “firmes na fé que professamos” porque “temos um sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas” (Hb 4,14.15), capaz de compreender nossa raiva, nosso ódio, nossa repulsa diante de tantas cruzes impostas injustamente sobre os ombros de tantas pessoas, pois Ele mesmo experimentou a raiva, o ódio e a repulsa dos homens. Somos convidados a nos aproximar da cruz não como o lugar da derrota do Filho de Deus, mas como o lugar que se tornou para nós o trono da graça: “Aproximemo-nos... com toda a confiança do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno” (Hb 4,16).

            Ao contemplarmos a imagem de nosso Senhor morto na cruz, lembremos de como ele enfrentou a dor, o sofrimento, a cruz. Além de ter vivido tudo isso de maneira consciente e livre, Jesus questionou a violência injusta que existe no mundo: “Por que me bates?” (Jo 19,23). Ele também deixou claro a Pilatos que a sua vida sempre foi vivida sob a autoridade do Pai e que, sobretudo naquele momento de ir para a cruz, sua vida estava nas mãos do Pai e não nas mãos de algum ser humano (cf. Jo 19,11). Por fim, suas últimas palavras na cruz foram: “Tudo está consumado” (Jo 19,30). Assim como Jesus, que possamos dizer, na hora da nossa morte: ‘Consumei a missão que o Pai me confiou; combati o bom combate, terminei minha missão, guardei a fé (cf. 2Tm 4,7); fui fiel até à morte (cf. Ap 2,10); amei até o fim (cf. Jo 13,1).

            Uma palavra final: “Ao que feriram de morte, hão de chorá-lo, como se chora a perda de um filho único... Naquele dia, haverá um grande pranto em Jerusalém” (Zc 12,11). Permita-se chorar no dia de hoje. Chore por toda dor que ainda há no mundo, sobretudo pelos crucificados do nosso tempo. Chore por si mesmo(a), por seus pecados. Chore pela sua covardia diante da sua dor e, principalmente, pela covardia e individualismo que, diferente do Maria e do discípulo amado, não permitem que você esteja aos pés da cruz de quem sofre. Que essas lágrimas desobstruam a sua sensibilidade para a dor do outro e lavem seus olhos, para que você possa enxergar melhor Cristo em tantos que estão à sua volta.

 Pe. Paulo Cezar Mazzi

terça-feira, 4 de abril de 2023

A PERGUNTA CERTA: "O QUE EU TENHO A OFERECER À VIDA?"

 Missa da Ceia do Senhor. Palavra de Deus: Êxodo 12,1-8.11-14; 1Coríntios 11,23-26; João 13,1-15.

 

            Nesta noite começamos a celebração da Páscoa. Toda a nossa caminhada quaresmal nos trouxe a esse momento, o momento de fazer a passagem, o momento de permitir que Deus nos faça passar da escravidão para a liberdade, da tristeza para a alegria, do desespero para a esperança, da morte para a vida.

Nesta noite, fazemos a memória (atualização) da entrega de Jesus, entrega que, antes de se dar na cruz, deu-se na última Ceia: “Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão... ‘Isto é o meu corpo, que é dado por vós’... Depois da ceia, tomou também o cálice e disse: ‘Este cálice é a nova aliança, em meu sangue’” (1Cor 11,23.24.25). De fato, Jesus havia afirmado: “Ninguém tira a minha vida. Eu a dou livremente” (Jo 10,18). Jesus celebra a última Ceia com seus discípulos “entregando-se livremente” porque escolheu viver sua vida a partir de uma pergunta: “O que eu tenho a oferecer à vida”, diferente de muitos hoje em dia, que vivem a partir de uma outra pergunta: “O que a vida tem a me oferecer?”

            “Entrega” tem a ver com “sacrifício”, e sacrifício tem a ver com amor: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Essas palavras resumem a vida de Jesus: amou até o fim. Numa época em que se ama até se decepcionar, até se cansar, até encontrar algo diferente e mais atrativo, Jesus se coloca como modelo de pessoa que ama: “Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,15). Quando desistimos de amar até o fim, não fazemos a passagem que tanto necessitamos, a passagem que Deus deseja que aconteça em nossa vida.

A passagem dos hebreus da escravidão para a liberdade foi preparada por meio de um ritual: as famílias se reuniram, sacrificaram alguns cordeiros, passaram seu sangue nas portas de suas casas, comeram pães sem fermento e ervas amargas. Isso significa que, se queremos nos libertar do mal que nos escraviza e faz a nossa vida definhar, precisamos nos manter unidos (família), estar dispostos a nos sacrificar por aquilo e por aqueles que amamos (este é o sentido do cordeiro), carregar conosco o sinal da nossa fé (o sangue que marcou as portas), viver como pães sem fermento, isto é, como pessoas retas e justas, e nos lembrar do quão amarga se torna a nossa vida quando nos deixamos escravizar pelo pecado (ervas amargas).

            Na primeira páscoa da história da humanidade, o Senhor Deus permitiu que uma praga exterminadora passasse pela terra do Egito, ferindo de morte todo primeiro filho de cada família. No entanto, essa praga “pulou” as casas dos hebreus, protegidas pelo sangue dos cordeiros sacrificados. Hoje nossa fé é desafiada a crer no mesmo Deus de Israel, o Deus que nem sempre “pula” a nossa casa, permitindo que a doença, o desemprego, o luto, uma situação intensa de dor atinja a nossa família. É fácil crer em Deus quando Ele faz o mal “pular” a nossa casa. Mas como é difícil crer no Seu amor por nós quando nossa casa não é poupada da dor, da morte, de algum tipo de destruição! Aqui nós precisaríamos nos lembrar das palavras do Salmo 115,10: “Guardei a minha fé mesmo dizendo: ‘É demais o sofrimento em minha vida!’”; ou ainda, o Sl 34,20: “Os males do justo são muitos, mas de todos eles o Senhor o liberta”.

            Na última Ceia, Jesus celebra a Páscoa da nova e eterna Aliança. Essa Páscoa é infinitamente superior à páscoa do Antigo Testamento, pois o próprio Jesus é o Cordeiro que se oferece livre e conscientemente para a salvação não só do povo de Israel, mas de toda a humanidade. Enquanto inúmeros cordeiros eram sacrificados sem saberem por qual motivo, Jesus é o Cordeiro que decide entregar a sua vida para nos salvar, tornando-se “corpo doado e sangue derramado”. Seu sangue é um sangue consciente, e justamente por isso, capaz de operar a redenção eterna, como está escrito: “não com o sangue de bodes e bezerros, mas com o seu próprio sangue, ele entrou no Santuário uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna” (Hb 9,12).

Após fazer a entrega do seu Corpo e do seu Sangue aos discípulos, Jesus ordenou-lhes: “Fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24.25). “Memória”, no sentido bíblico, significa “atualização”. Através do seu Corpo e Sangue doados a nós no altar da Igreja, Jesus atualiza a sua presença junto a nós. Seu sacrifício na cruz foi oferecido uma única vez, mas “todas as vezes... que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha” (1Cor 11,26). Todas as vezes que comungamos o Corpo e o Sangue do Senhor, estamos proclamando que Jesus nos amou e se entregou por nós; que Ele está presente em nosso meio, vivo, ressuscitado, e que “Ele virá uma segunda vez... para aqueles que o esperam, para lhes dar a salvação” (Hb 9,28).

A última Ceia foi um momento muito esperado e desejado por Jesus, mas também um momento muito difícil para Ele. Ali Ele revelou a traição de Judas e a negação de Pedro. Ali Ele deixou os discípulos conscientes de que todos eles fugiriam na hora da cruz e o deixariam só, “mas eu não estou só, porque o Pai está comigo” (Jo 16,32). Ali Jesus nos deixou conscientes dessa verdade: “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo” (Jo 16,33). Comungar o Corpo e o Sangue do Senhor não significa sermos poupados de tribulações, mas revestidos de coragem para enfrentá-las, sem deixarmos de crer, amar e esperar até o fim!

A Eucaristia é o retrato vivo de Jesus. Ele sempre foi “corpo dado e sangue derramado”. Assim somos chamados a ser também: fazer da nossa vida uma oferenda agradável ao Pai; sacrificar parte do nosso tempo pelo bem da família, da Igreja, da sociedade, da humanidade, sobretudo pelo bem dos necessitados: “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,14-15). No mundo de hoje, lavar os pés uns dos outros significa perceber que, onde quer que estejamos, existe alguém que precisa de nós; significa, sobretudo, fazer a passagem da pergunta: “O que a vida tem a me oferecer?” para a pergunta: “O que eu tenho a oferecer à vida?”.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi