quinta-feira, 27 de outubro de 2022

O JESUS SEGUNDO O EVANGELHO TE REPRESENTA?

 Missa do 31. dom. comum.  Sabedoria 11,22 – 12,2; 2Tessalonicenses 1,11 – 2,2; Lucas 19,1-10.

 

            “Rezo para que Nossa Senhora Aparecida proteja e cuide do povo brasileiro; que o liberte do ódio, da intolerância e da violência” (Papa Francisco). Quem foi que conseguiu implantar no coração do nosso País tanto ódio, tanta intolerância e tanta violência? Nunca como nos tempos atuais o ódio esteve tão presente no meio de nós. Nós o percebemos dentro das famílias, nos ambientes de trabalho, nas escolas, nas ruas e até mesmo dentro das igrejas. O ódio nada mais é do que o veneno do maligno em nós. O diabo é o divisor: ele implanta ódio no coração das pessoas para dividir um país, uma cidade, um ambiente de trabalho, uma família, uma igreja. Uma vez divididos, somos mais fáceis de sermos dominados pelo maligno.

            Contrapondo-se ao ódio, que nos torna intolerantes e violentos em relação às pessoas que não pensam como nós, o livro da Sabedoria nos fala do coração de Deus; um coração que tem compaixão de todos, que não se vinga dos pecados dos homens com agressividade, porque tem esperança de que eles se arrependam; um coração que ama tudo o que existe; um coração que não odeia ninguém. Deus não odeia ninguém! A todos ele trata com bondade; quando precisa corrigir alguém, o faz com carinho, com paciência, na esperança de que a pessoa se afaste do mal.

            Quem foi que nos afastou do Deus bíblico, do Deus que ama a todos e a ninguém odeia? Quem foi que nos ensinou a projetar em Deus o nosso ódio, a nossa intolerância e a nossa violência, achando que ele compactua com o nosso desejo diabólico de destruir pessoas que não pensam como nós? Quem foi que nos perverteu em cristãos cheios de ódio, vivendo de costas para o Evangelho? Quem foi que nos incentivou a postar frases do tipo “O Papa Francisco não me representa” ou “A CNBB não me representa”? O Deus descrito no livro da Sabedoria, o Deus que ama a todos e a ninguém odeia, te representa???

            A imagem do Deus bíblico, que quer salvar a todos porque ama a todos e a ninguém odeia, está profundamente impressa nas palavras e nas atitudes de Jesus, conforme acabamos de ver no Evangelho de hoje. Para entendermos o escândalo que foi o fato de Jesus entrar na casa de Zaqueu, chefe dos cobradores de impostos e muito rico, temos que levar em conta duas coisas. Primeiro, os cobradores de impostos eram odiados pelos judeus, porque estavam a serviço da dominação romana. Além de serem odiados, eram vistos como corruptos. Se Zaqueu era muito rico, podemos supor que também era muito corrupto. Em segundo lugar, a riqueza sempre aparece nas palavras de Jesus como o maior inimigo que pode nos impedir de entrar no Reino de Deus (cf. Lc 6,24-25; 16,13-15; 18,24-25). Isso nos ajuda a entender o escândalo do povo, quando diz: “Ele foi hospedar-se na casa de um pecador” (Lc 19,7).

            Que um padre ou um bispo hospede-se na casa de uma pessoa rica, isso não tem nada de escandaloso nos dias atuais. Muito pelo contrário. Afinal, não são as pessoas ricas que fazem doações importantes para a manutenção da paróquia ou da Diocese? Por isso, se quisermos nos deixar afetar pelo escândalo do povo, ao ver Jesus ir hospedar-se na casa de Zaqueu, precisamos imaginar a nossa reação vendo o padre da paróquia ou o bispo da Diocese hospedar-se na casa de um traficante, de um homossexual, de um casal em segunda união, de uma mãe solteira, de um ex-presidiário, de uma senhora que mora na periferia da cidade... 

            O Jesus bíblico, o Jesus do Evangelho, não é o Jesus que defende os nossos valores de “pessoas de bem”, mas que questiona a nossa hipocrisia, o nosso farisaísmo, o nosso manter-nos afastados das pessoas que precisam ser salvas, exatamente aquelas das quais queremos nos manter distantes porque “não comungam dos nossos valores”. Ao dizer a Zaqueu: “Hoje eu devo ficar na tua casa”, Jesus está nos dizendo que é nosso dever, enquanto cristãos, nos fazer presente na casa das pessoas que nós consideramos perdidas. Daqui a um mês praticamente, iniciaremos a Novena de Natal. Onde nós a rezaremos? Também nas casas dos inúmeros Zaqueus da nossa cidade, ou somente nas casas dos católicos praticantes, daqueles que pensam como nós?

            A atitude de Jesus, que também surpreendeu o próprio Zaqueu, fez com que ele mudasse sua forma de lidar com o dinheiro: “Senhor, eu dou a metade dos meus bens aos pobres, e se defraudei alguém, vou devolver quatro vezes mais” (Lc 19,8). Quantos de nós estamos na Igreja há anos, mas nunca permitimos que o Evangelho questionasse a nossa relação com o dinheiro? Quantos de nós acusam o Papa Francisco ou a CNBB de serem “de esquerda” quando denunciam as injustiças sociais que causam inúmeros sofrimentos aos pobres? O verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo, que chama todos à conversão e que sempre se coloca na defesa dos pobres, representa você, ou você vai se defender dele, acusando o pregador de ser marxista?   

            Jesus justifica a sua hospedagem na casa de Zaqueu afirmando que veio “procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). Uma Igreja que permanece fechada em si mesma, defendendo-se do mundo, não entendeu o Evangelho. Um cristão que decidiu trocar o Deus que ama a todos e a ninguém odeia por um Deus que autoriza o ódio ao diferente, virou as costas para a Sagrada Escritura. Um cristão que reduz o Evangelho a preceitos espirituais e morais e não opõe às injustiças sociais, nem se preocupa com a ruína dos pobres, já virou as costas para Jesus Cristo há muito tempo, mas ainda não se deu conta disso. 

            Na vida cristã não cabe neutralidade. É impossível ser fiel ao Evangelho e “representar” cristãos que não se deixam questionar por suas exigências. Quando ouvir desses cristãos que você não os representa, agradeça a Deus e alegre-se! Isso é sinal de que você está no caminho que o Papa Francisco e a CNBB escolheram percorrer: o caminho da fidelidade ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, ainda que isso lhes custe o ódio dos cristãos que se julgam “pessoas de bem”.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

TOME CUIDADO COM A SOBERBA ESPIRITUAL

Missa do 30º dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 35,15b-17.20-22a; 2Timóteo 4,6-8.16-18; Lucas 18,9-14.

 

            Até que ponto a religião nos torna melhores, enquanto seres humanos? Ter uma religião nos humaniza, nos torna mais capazes de compaixão e de solidariedade para com o próximo, para com quem sofre? Será que o fato de sermos pessoas religiosas nos dá um certo orgulho e nos faz pensar que somos melhores que os demais seres humanos?

            Jesus nasceu dentro da religião judaica. Ao crescer, se deu conta que sua religião havia se fechado em si mesma, afastando-se das pessoas que mais precisavam de salvação. Dentro da religião de Jesus, havia um grupo que se considerava “pessoas de bem”, pessoas não contaminadas pelo pecado do povo “ignorante”: os fariseus. Aliás, o próprio nome “fariseu” significa “separado”. Enquanto os fariseus faziam questão de manter distância das pessoas que eles consideravam pecadoras, Jesus fez questão de se colocar junto a essas pessoas, entendendo que o lugar do Médico é junto aos que estão doentes, assim como o lugar do Salvador é junto daqueles que se reconhecem necessitados de salvação.

            Algo que preocupava muito Jesus era a presunção religiosa dos fariseus (o “fermento dos fariseus” – Mc 8,15): a presunção de se acharem salvos, uma presunção que tinha, como outro lado da moeda, o desprezo pelos outros: “Eu estou salvo; os outros estão perdidos. Eu estou na luz; os outros vivem na escuridão. Eu enxergo; os outros estão cegos”. Até que ponto essa presunção não está em nós, também? Já foi constatado que muitos católicos hoje em dia sofrem de uma doença chamada “soberba espiritual”. Essa soberba faz com que eles se achem mais católicos do que o Papa Francisco e mais fiéis à doutrina do que os nossos Bispos. Essa soberba espiritual faz com que alguns deles postem em suas redes sociais frases do tipo: “O Papa Francisco não me representa”; “O Bispo não me representa”; “A CNBB não me representa”.  

            Jesus mostra no Evangelho de hoje que a nossa soberba espiritual ou a nossa humildade aparecem na hora em que vamos fazer nossa oração. Durante a sua oração, uma pessoa que sofre de soberba espiritual exalta a si mesma perante Deus, enquanto que, ao mesmo tempo, despreza os outros, que não pensam como ela, que não são “boas” como ela se julga ser. O grande problema é que no coração de um fariseu, de uma pessoa cheia de si, não há espaço nem para Deus, nem para os outros. Só cabe ali o seu próprio ego. Pior ainda: uma pessoa que sofre de soberba espiritual não sente a necessidade de ser salva; pelo contrário, ela já se presume salva, e julga os outros como pessoas perdidas, sem salvação, pessoas das quais ela procura se manter distante, chegando até mesmo a sentir ódio delas.  

            O contrário da soberba espiritual é a humildade. O coração da pessoa humilde é como um jarro vazio: ali cabem os outros e ali cabe, sobretudo, Deus. A oração da pessoa humilde jamais expressa a presunção em estar salva, mas a consciência de que ela necessita ser salva. Diferente do cristão fariseu, o cristão humilde nunca olha os outros como pecadores desprezíveis, mas enxerga a si mesmo como pecador e necessitado de salvação, a exemplo do apóstolo Paulo: “Cristo Jesus veio ao mundo salvar os pecadores, e eu sou o primeiro que necessito ser salvo” (citação livre de 1Tm 1,15).

            Após mostrar o contraste da oração da pessoa soberba e da pessoa humilde, Jesus chama a atenção para o efeito que a oração produziu em uma e em outra: o homem que se reconheceu pecador e necessitado de salvação voltou para casa “justificado”, enquanto que o outro não. Voltar para casa “justificado” pode ser compreendido como voltar para casa curado, transformado, liberto, salvo. Assim como a condição para ser curado é ter consciência da própria doença, a condição para ser justificado é ter consciência do próprio pecado.

            Para compreendermos a importância do termo “justificado”, precisamos nos lembrar de três verdades bíblicas: “Diante de ti, nenhum ser humano será declarado justo” (Sl 143,2); “Não existe pessoa justa, não existe uma sequer; todas se transviaram e se corromperam” (Rm 3,10-11); “Todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus, mas são justificados gratuitamente, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus” (Rm 3,23-24). A justificação não é prêmio que eu recebo pelos meus esforços ou pelos meus méritos, mas unicamente graça; graça que me foi concedida na cruz de Cristo. Eu não sou um homem justo; sou um homem miserável e pecador, mas que foi gratuitamente justificado, isto é, tornado justo, pelos sofrimentos de Cristo na cruz.

            Tomemos cuidado com o fermento dos fariseus, que é a soberba espiritual, a presunção em ser uma pessoa de bem, enquanto julga os outros como se fossem pessoas do mal. Não sejamos escândalo para o mundo. Não permitamos que a religião nos torne arrogantes e cheios de nós mesmos, olhando os outros de cima para baixo; pior ainda, ignorando os demais. Não nos esqueçamos da advertência de Santo Agostinho: “Há pessoas que estão dentro, mas vivem como se estivessem fora. Há pessoas que estão fora, mas vivem como se estivessem dentro”.

Aprendamos com Jesus, com o Papa Francisco e com tantas pessoas que, mesmo fora da Igreja, escolheram descer o degrau da soberba para se colocarem junto daqueles que estão abatidos e humilhados, justamente porque essa continua sendo a escolha de Deus: “Eu habito em lugar alto e santo, mas estou junto com o humilhado e desamparado, a fim de animar os espíritos desamparados, a fim de animar os corações humilhados” (Is 57,15).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

 

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

A VERDADEIRA FÉ SÓ SOBREVIVERÁ SE APRENDER A SUPORTAR A APARENTE INDIFERENÇA DE DEUS PARA CONOSCO

 Missa do 29. dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo 17,8-13; 2Timóteo 3,14 – 4,2; Lucas 18,1-8.

Jesus nos deixa claro, no Evangelho de hoje, que é necessário rezar sempre e nunca desistir. Ele mesmo rezava sempre, todos os dias; se não conseguia fazê-lo durante o dia, por causa das multidões que o procuravam, fazia-o à noite, ou de madrugada, mas jamais deixava de rezar.

A oração não é uma questão de tempo, nem de vontade. Ela nasce de uma convicção: sem Deus, eu nada posso. O texto do livro do Êxodo que hoje ouvimos deixa claro que, durante a nossa vida, teremos inúmeros combates a enfrentar, e se não rezarmos, seremos sempre derrotados. A nossa vitória não depende das nossas forças, nem das nossas estratégias, mas unicamente da oração. Com afirma a Sagrada Escritura: “Um rei não vence pela força do exército, nem o guerreiro escapará por seu vigor. Não são cavalos (armas) que garantem a vitória; ninguém se salvará por sua força” (Sl 33,16-17). Ninguém vence as dificuldades da vida apoiando-se apenas em si mesmo, na sua força física, no seu dinheiro, na sua inteligência, na sua estratégia ou nas suas armas. Para vencermos os combates da vida, todos nós necessitamos da força do Alto, que só nos é concedida na oração.  

Mas, e quando a oração se torna uma luta entre nós e Deus? E quando, na oração, acontece uma batalha entre a nossa vontade e a vontade de Deus? Segundo David Benner, “nós podemos comparar a oração como um rio. Você é convidado a entrar neste rio e flutuar nele, deixando-se conduzir pelo Espírito Santo até a presença de Deus. Mas, quantas vezes você entra nesse rio e, ao invés de se deixar conduzir pelo Espírito, abraçando a vontade de Deus, você começa a nadar contra a corrente, opondo resistência ao Espírito, porque quer que prevaleça a sua vontade e não a vontade de Deus? Quando você faz isso, acaba por transformar a sua oração num tormento. Isso distancia você da oração”.

A oração não é o lugar onde nós dobramos Deus à nossa vontade, mas o lugar onde precisamos acolher a vontade de Deus e confiar que aquilo que ele quer para nós é, de fato, o melhor. Nós temos a mania de achar que a nossa oração é bem sucedida quando saímos dela tendo conseguido aquilo que queríamos. Mas não. A oração bem sucedida é aquela da qual saímos dispostos a fazer a vontade de Deus! E Deus deseja que nós não fujamos dos confrontos da vida, mas que os enfrentemos com coragem, paciência e determinação. Neste sentido, é importante compreendermos que “pedir uma coisa a Deus não é certamente pretender que ele faça, em nosso lugar, o que nós devemos fazer” (missal dominical, p.1269).

Essa determinação aparece nas palavras de Jesus ao mencionar a atitude da viúva, que todos os dias batia à porta do juiz para pedir que lhe fizesse justiça. “Durante muito tempo, o juiz se recusou” (Lc 18,4). É aqui que a nossa confiança na oração começa a se desfazer: temos a impressão de que Deus se recusa a nos ouvir; se ouve, se recusa a nos atender, como se não se importasse com a nossa causa. O que chama a atenção, no exemplo que Jesus usa, é que a viúva não pede ao juiz um favor, que atenda a um capricho seu, mas que lhe faça “justiça”. Ora, a função de um juiz não é justamente essa: fazer justiça?

Propositalmente, Jesus usa o exemplo desse juiz para nos falar de Deus como aquele que jamais deixaria de fazer justiça a quem por ele clama, na oração: “Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar? Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem depressa” (Lc 18,7-8). Eis a certeza que Jesus quer que tenhamos: Deus não ignora as injustiças que seus filhos sofrem neste mundo. Ele lhes fará justiça, sim. Não podemos jamais duvidar disso. Não podemos jamais substituir a nossa confiança em Deus pela sensação de que ele é indiferente ao que nos acontece.

Mas o problema persiste: Quando Deus nos fará justiça? Quando Deus intervirá, para acabar com o mal que nos aflige? O que Jesus quer dizer com esse “bem depressa?”. Quantas causas nossas foram perdidas? Muitas pessoas deixaram de rezar exatamente porque Deus não lhes fez justiça; elas suplicaram incansavelmente, mas ele não impediu a morte, não impediu a falência da empresa, não impediu a guerra, não impediu a destruição, nem o mal.

Diante da decisão de muitas pessoas em deixar de buscar a Deus na oração, Jesus nos pergunta se, quando ele voltar, encontrará fé sobre a terra; se encontrará alguém que ainda tenha fé. Ter fé nunca foi e nunca será simples, porque a realidade em que vivemos é ambígua: nela se misturam o bem e o mal, a verdade e a mentira, a justiça e a injustiça, e essa ambiguidade deixa nossa fé confusa. Além disso, nossa fé em Deus sempre cria expectativas: ele vai nos atender! Ele vai intervir! Ele fará justiça! Mas, como nos lembra o Pe. Tomás Halík, no seu livro, “A noite do confessor”, “O discurso de Deus é a própria vida, a vida que é uma correção constante, e por vezes dolorosa, dos nossos desejos e ilusões” (p.106). Nossa fé, às vezes, precisa ser purificada dos nossos desejos e ilusões, os quais nada têm a ver com a vontade de Deus, e essa purificação só se dá numa experiência de forte decepção com Deus.

Só uma fé que já se decepcionou com Deus e “brigou” com ele, mas mesmo assim não o abandonou, não o jogou fora, pode se manter viva até a volta de Jesus. Essa fé deve nos ajudar a entender que, apesar do silêncio de Deus, jamais devemos deixar de dialogar com ele, na oração. Ele tem projetos e planos que nós, na nossa impaciência, não conseguimos compreender. Portanto, lembremos mais uma vez a carta aos Hebreus: “Sem a fé, é impossível agradar a Deus. Pois aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram” (Hb 11,6).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

terça-feira, 11 de outubro de 2022

O MARIDO REENCONTRA A ESPOSA. A ÁGUA É TRANSFORMADA EM VINHO.

 Missa de Nossa Senhora Aparecida. Palavra de Deus: Ester 5,1b-2; 7,2b-3; Apocalipse 12,1.5.13a.15-16a; João 2,1-11.

 

1. A força da mulher – Tanto a sensibilidade de Ester (1ª. leitura) quanto a de Maria (Evangelho) nos falam da força do feminino que se coloca em diálogo com o masculino para dar um outro rumo à história humana, até mesmo no sentido de ampliar o horizonte de visão do masculino e lembrá-lo de que ele não é somente razão, mas também sentimento. Ao mesmo tempo, as figuras de Ester e de Maria nos remetem a inúmeras mulheres que hoje lutam por aquilo em que acreditam, mulheres que não entregam os pontos diante das dificuldades e dos problemas, que mantêm a casa em pé onde a presença masculina é fraca ou totalmente ausente.

Quando observamos a presença da mulher na sociedade atual, percebemos uma ambiguidade: enquanto algumas são agredidas, humilhadas e “usadas” por seus parceiros, mulheres sem autoestima, que vivem como um elefante amarrado por uma perna a uma pequena estaca – imagem de quem desconhece a força e o valor que carrega dentro de si, por outro lado vemos o feminino se travestindo de masculino, medindo forças e imitando o masculino naquilo que ele tem de pior, de doentio e de perverso; mulheres que perderam o senso do ridículo, que sentem a estranha necessidade de marcar sua presença em público de maneira extravagante, bebendo, fumando e usando palavreado vulgar. São mulheres cujo vinho se corrompeu em vinagre.

 

2. Da mulher abandonada para a esposa amada – O Evangelho nos coloca numa cena de casamento, imagem do desejo de Deus de unir-se a cada ser humano e de lhe conceder a verdadeira alegria, simbolizada pelo vinho (cf. Os 2,21-22). A imagem do casamento expressa o amor de Deus (Esposo) por seu povo – a humanidade (Esposa). O livro do Apocalipse se encerra com a imagem de um casamento: a Igreja (Esposa) casa-se com o Cordeiro (Esposo). Em toda Eucaristia, nós recebemos esse convite: “Felizes os convidados para a ceia do Senhor”, inspirado em Ap 19,9.

Todo ser humano carrega em si o desejo de ser amado. No entanto, é cada vez maior o número de pessoas em nosso mundo que se sentem não-amadas nem pelos homens, nem por Deus. O sentimento de solidão é cada vez mais frequente, além do fato de que nem toda pessoa casada se sente feliz, da mesma forma como nem toda pessoa não casada se sente infeliz. No caminho da busca por amor há muitos desencontros, feridas, decepção e até mesmo descrédito em relação ao próprio amor. Contudo, desde os primeiros profetas, a imagem do casamento sempre foi utilizada como símbolo da união do ser humano com Deus, símbolo não só do amor de Deus por todo ser humano, mas também da Sua dedicação incansável em fazer com que a vida de cada ser humano seja abraçada pela justiça e pela salvação.

Nas bodas de Caná temos dois casais: o esposo e a esposa do casamento, mas também Jesus e sua mãe, que Ele propositalmente chama de “Mulher”, não de mãe, porque ela representa a Igreja. Enquanto o casal das bodas de Caná celebra sua felicidade, o “casal” Jesus e Maria trabalham no sentido de devolver a felicidade à humanidade, que “não tem mais vinho”.

A falta de vinho nas bodas de Caná remete para a falta de Deus no coração de inúmeras pessoas hoje, a falta de alegria e paz em muitas famílias, a falta de saúde e proteção para inúmeras crianças e adolescentes, a falta de respeito para com a vida humana, a falta de fé e de esperança em nosso próprio coração. A falta do vinho também expressa a falta de compaixão para com quem sofre, a falta de indignação para com as injustiças, a falta de interesse em defender o meio ambiente, a falta de um olhar que enxergue a vida para além do próprio umbigo.

 

3. A intercessão de Nossa SenhoraMaria intercede junto a Jesus, mas ele a coloca no seu lugar: “Minha hora ainda não chegou” (Jo 2,4). A hora de Jesus derramar o sangue da nova e eterna aliança entre o Pai e a humanidade será a hora da cruz. Mas Maria, com a sua intercessão, antecipa esta hora, aconselhando aos servos: “Fazei o que ele vos disser” (Jo 2,5). Se não há alegria em nós, se o vinho acabou, precisamos nos perguntar: Estamos vivendo a nossa vida segundo o que Jesus nos diz no Evangelho? Jesus nos manda encher as talhas de água, isto é, cuidar daquilo que caiu no descuido, voltar a encher aquilo que se esvaziou, tendo a certeza de que o vinho melhor, a alegria maior, sempre poderá nascer depois de uma crise ou de um sério desgaste. 

“Fazei o que ele vos disser” (Jo 2,5). A atitude de Maria nos questiona: nós viemos ao mundo para servir ou para sermos servidos? Nós nos deixamos afetar pela realidade que nos cerca, pelo que acontece à nossa volta? Não precisamos fazer muito esforço para lamentar a falta de vinho novo em nossa vida, mas quantos de nós nos dispomos a ter uma atitude proativa e encher nossas talhas de água? Além de lamentarmos a nossa falta de vinho, nós também fazemos algo para modificar isso? A maioria reclama, a minoria se dispõe a arregaçar as mangas e fazer alguma coisa para mudar a situação. O vinho novo jamais poderá ser produzido por nós, mas seu surgimento certamente depende da nossa colaboração: obedecer à orientação de Jesus e encher nossas talhas de água (cf. Jo 2,7-8).  

 

4. O vinho melhor surgiu depois da crise – “O mestre-sala experimentou a água, que se tinha transformado em vinho... ‘Tu guardaste o vinho melhor até agora!’” (Jo 2,10-11). O vinho melhor chegou quando não se esperava mais nada, a não ser o fim da festa. Muitos de nós estamos convencidos de que a vida é assim mesmo: as coisas começam bem e terminam mal; com o tempo, nossos sonhos se desgastam, nossos ideais perdem o sentido; tudo vai aos poucos perdendo a graça e a razão de ser. É assim com os nossos relacionamentos, com os nossos sonhos e projetos, com a nossa vida profissional, com a nossa fé e até mesmo com a nossa própria vocação!

No entanto, Jesus faz acontecer algo surpreendente: o melhor veio depois! O vinho que surgiu depois foi infinitamente melhor do que o vinho que havia antes! A alegria depois da crise foi infinitamente melhor e mais significativa do que a alegria antes da crise. E é assim porque o vinho novo é símbolo do Espírito Santo, cuja graça tudo transforma e tudo renova.

Nós sempre poderemos experimentar a alegria do vinho novo na medida em que formos como Nossa Senhora, pessoas que enfrentam as situações, que não fogem dos problemas, que não abandonam seus sonhos porque estão vivendo um momento de pesadelo, pessoas que se posicionam diante daquilo que as faz sofrer. Nós poderemos experimentar a alegria do vinho novo sempre que fizermos tudo o que Jesus nos disser, enchendo nossas talhas de água na certeza de que o milagre da transformação é e sempre será um trabalho conjunto entre a graça de Deus e as nossas atitudes.

Confiemos na força intercessora de Nossa Senhora Aparecida. Acolhamos a sua orientação de conduzir a nossa vida sempre buscando ouvir o seu Filho, buscando na palavra do Evangelho uma direção para aqueles momentos onde para nós acabou o vinho. Façamos a nossa parte, enchamos nossas talhas de água, e confiemos que Jesus tem o poder de transformar nossas crises em oportunidade de crescimento, fazendo-nos experimentar uma alegria e um sentido sempre novos e mais significativos, depois de termos passado por situações difíceis.

 

Oração: Senhor Jesus, és o Esposo não somente da Igreja, mas da alma humana, alma que tem sede de sentido, de alegria e de salvação. Olha para a falta de vinho que existe no coração da humanidade, em nossas famílias e comunidades, e em tua própria Igreja. São inúmeras as pessoas que se sentem abandonadas e não-amadas. Derrama sobre o coração de cada uma delas o dom do teu Espírito, pois somente Ele pode nos fazer experimentar verdadeiramente o amor de Deus e a alegria da Sua salvação.

Seguindo o conselho de Tua Mãe, Maria Santíssima, a exemplo dos servos daquele casamento, queremos aprender a fazer tudo o que o Senhor nos disser. Nos comprometemos a encher nossas talhas de água, a fazer a nossa parte para que, onde o vinho antigo acabou, onde quer que exista ausência de alegria e de esperança, de justiça e de fraternidade, nós possamos colaborar para o surgimento do vinho novo, da transformação que o próprio Deus quer para o bem e a salvação de cada ser humano.

Enfim, Senhor, que nenhuma crise, nenhum desencontro, nenhuma ferida ou dificuldade nos faça perder a esperança de que o vinho novo sempre surgirá e sua alegria será abundantemente superior a tudo aquilo que até hoje experimentamos, pois o Teu Espírito continua a renovar a face de terra e nós cremos no Seu poder de reavivar a nossa Igreja, curar nossas feridas e transformar nossas tristezas em verdadeira e profunda alegria. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

A GRATIDÃO É UMA FORMA DE VER A VIDA A PARTIR DA FÉ E DA CONFIANÇA EM DEUS

 Missa do 28. dom. comum. Palavra de Deus: 2Reis 5,14-17; 2Timóteo 2,8-13; Lucas 17,11-19.

 

            Como é que nós estamos nos relacionando com as pessoas atualmente? O que nos move a nos aproximar desta ou daquela pessoa: o interesse pelo bem dela ou pelo nosso? Existe gratuidade nas nossas relações, ou apenas interesse em ganhar algo, em lucrar algo com a pessoa?

Muitos de nós já fizemos a experiência de sermos “usados”, de sermos procurados não por aquilo que somos, mas por algo que temos e que interessa à pessoa. É profundamente desagradável quando uma pessoa fica junto de nós apenas até conseguir algo que quer, e, depois, desaparece da nossa vida. Nós nos sentimos usados, não amados pela pessoa.

Os textos bíblicos de hoje (1ª. leitura e Evangelho) nos falam da importância da gratidão. Só consegue ser grata, só é capaz de gratidão, uma pessoa que reconhece que recebeu algo que não foi mérito seu: “O que é que vocês possuem que não tenham recebido? E, se receberam, porque vocês se enchem de soberba?” (1Cor 4,7). Essas palavras do apóstolo Paulo nos convidam a tomar consciência de que nada em nossa vida é mérito nosso; tudo o que temos e somos nós o recebemos de Deus. Por isso, ao invés de sermos soberbos, deveríamos ser gratos, agradecidos.

Aquilo que mais nos impede de reconhecer tudo o que já recebemos é a dinâmica do consumismo, que tira os nossos olhos daquilo que somos e temos e os dirige para aquilo que não somos e ainda não temos. Além disso, as exigências dos padrões externos de beleza, de sucesso e de felicidade, substituem em nós o sentimento de gratidão pelo sentimento de frustração. Por que eu vou agradecer a Deus pelo meu corpo, quando não tenho o corpo exigido pelo padrão estético do momento? Por que eu vou agradecer a Deus pela casa onde moro e pelo carro que me conduz para onde preciso ir, se não moro numa casa “melhor” e se não tenho um carro “melhor”? Por que eu vou agradecer a Deus pelo simples fato de existir, se a minha existência é “insignificante” aos olhos das pessoas à minha volta?

Nós só podemos nos tornar capazes de gratidão quando enxergamos o nosso próprio valor, o qual não depende de circunstâncias externas, e quando acolhemos a vida como ela é, ao invés de nos tornarmos amargos por aquilo que achamos que ela deveria ser. Aqui mais uma vez é preciso lembrar o provérbio chinês que diz: “A felicidade não depende daquilo que você não tem, mas do bom uso que você faz daquilo que tem”. Quem vive olhando aquilo que ainda não tem, enche seu coração de amargura. Quem aprende a enxergar e a valorizar aquilo que tem, torna-se capaz de alegrar-se e de sentir gratidão.

A gratidão não depende de que tudo na sua vida esteja correndo conforme você planejou. Ela não depende das circunstâncias externas, mas da sua maneira de ver e de interpretar as circunstâncias à sua volta. Posso olhar para a minha história de vida, e agradecer a Deus por ser quem eu sou. Posso olhar para o meu corpo e agradecer porque, para além dos padrões de estética do momento, eu tenho a minha própria beleza. Posso olhar para as minhas cicatrizes, as minhas rugas, os meus cabelos brancos, e agradecer porque cada uma dessas marcas me diz que eu vivi e não fui apenas vivido pelos acontecimentos. Posso olhar para a minha alma e para as cicatrizes que estão nela, e agradecer porque elas são as memórias das lutas que travei comigo para amadurecer como pessoa. Posso olhar, enfim, para o meu coração e agradecer não só pelas respostas que a vida já me deu, mas também pelas perguntas que ainda carrego comigo, porque são elas – as perguntas – que me fazem caminhar, e quem sabe, enquanto caminho, seja eu também curado e descubra mais motivos ainda para agradecer.

A atitude do samaritano, que, ao se perceber curado da sua lepra, voltou para agradecer a Jesus, questiona a nossa relação com Deus. Nós o procuramos por quem ele é ou por algo que desejamos que ele nos dê ou nos faça? Se pararmos para olhar a nossa história de vida, nos daremos conta de que Deus já fez muito por nós, já nos socorreu inúmeras vezes, já nos libertou de inúmeros problemas. Nós já o agradecemos por isso? Olhando para a nossa história de vida, vamos perceber também que Deus não nos poupou de situações difíceis, de sofrimentos e de perdas que, apesar de dolorosos, foram necessários para o nosso crescimento, amadurecimento e santificação. Nós já nos tornamos capazes de agradecer a Deus também por aquilo que ele nos tirou, por aquilo que nos negou, por aquilo que não nos fez? Aqui só é possível ter gratidão a partir da fé, da confiança de que as coisas ruins que nos aconteceram tiveram um propósito positivo para a nossa vida, segundo os desígnios de Deus para com cada um de nós.

 Exercitemos a gratidão. Ela afasta de nós sentimentos ruins, como inveja, pessimismo e amargura, e nos enche de alegria, de confiança e de paz, como um quarto escuro que, tendo a cortina da janela sido aberta, recebe a luz do sol.


1.      “A gratidão desbloqueia a abundância da vida. Ela torna o que temos em suficiente, e mais. Ela torna a negação em aceitação, caos em ordem, confusão em claridade. Ela pode transformar uma refeição em um banquete, uma casa em um lar, um estranho em um amigo. A gratidão dá sentido ao nosso passado, traz paz para o hoje e cria uma visão para o amanhã” (Melody Beattie).


2.      “Ao que nada espera tudo que vem é grato” (Fernando Pessoa).


3.      “Aprendi que deveríamos ser gratos a Deus por não nos dar tudo que lhe pedimos” (William Shakespeare).


4.      “Os mortos recebem mais flores do que os vivos porque o remorso é mais forte que a gratidão” (O Diário de Anne Frank).


5.      “Todo o nosso descontentamento por aquilo que nos falta procede da nossa falta de gratidão por aquilo que temos” (Daniel Defoe).


6.      “Gratidão... É reconhecer a mão de Deus em todos os detalhes de nossa vida, é Ele quem vai arrumando tudo em seu lugar, pode doer, mas é melhor. Que sejamos gratos a Deus pelas alegrias e dores, pois tudo é permissão de Deus para realizar o melhor em nossas vidas” (Yla Fernandes).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi