quinta-feira, 14 de abril de 2022

RESPONSABILIZAR-NOS POR AQUILO QUE TEMOS QUE ENFRENTAR

 Sexta-feira da Paixão do Senhor: Palavra de Deus: Isaías 52,13 – 53,12; Hebreus 4,14-16; 5,7-9; João 18,1 – 19,42.  

 

Toda propaganda chega a nós por meio da imagem da beleza e da felicidade. No entanto, Deus, muitas vezes, escolhe falar conosco por meio da desfiguração e do sofrimento: “Ei-lo, o meu Servo... tão desfigurado ele estava que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano” (Is 52,13.14). E aí, naturalmente surge a pergunta: “Quem de nós deu crédito ao que ouvimos?” (Is 53,1). Quem de nós consegue ouvir Deus na dor? Quem de nós consegue crer na existência de Deus vendo tanto mal e tanta destruição no mundo? Quem de nós consegue crer que Deus é amor, diante de tantos inocentes que sofrem na face da terra? Toda dor, todo sofrimento desafiam a nossa fé a encontrar Deus no meio do absurdo, da escuridão, da injustiça, da morte... O que mais nos machuca não é o sofrimento, mas o insuportável silêncio de Deus diante do sofrimento.

Deus escolheu falar conosco por meio de seu Servo, “homem coberto de dores, cheio de sofrimentos” (Is 53,3). “E nós pensávamos fosse um chagado, golpeado por Deus e humilhado! Mas ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes” (Is 53,4-5). Quando alguém sofre e morre, nós rapidamente entramos com nossas teorias e explicações. Afinal de contas, alguém ter que ser responsabilizado! Ou foi a pessoa que pecou, ou o Deus em quem cremos tem o estranho hábito de fazer sofrer pessoas boas. Raramente admitimos que nós temos alguma parcela de responsabilidade no mal que existe no mundo: “por causa de nossos pecados”; “por causa de nossos crimes”. “Por causa do pecado do meu povo foi golpeado até morrer” (Is 53,8).

Mas, será mesmo que Deus precisa que um ser humano seja sacrificado, para que Ele acalme sua ira em relação à humanidade??? Não! Se Ele permite que o justo sofra é em vista da redenção de todos os injustos: “Meu Servo, o justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si suas culpas... Ele, na verdade, resgatava o pecado de todos e intercedia em favor dos pecadores” (Is 53,11.12). A cruz nunca foi invenção de Deus, mas dos homens. O que Deus fez foi transformar um instrumento de maldição em um instrumento de bênção (cf. Gl 3,13-14). Não estamos aqui para celebrar a morte do Filho único de Deus, mas para professar a nossa fé em nossa redenção: “É pelo sangue dele que temos a redenção, a remissão dos pecados” (Ef 1,7). Havia um abismo que nos separava de Deus, um abismo criado com os nossos pecados (cf. Is 59,2). Deus Pai transformou a cruz de Seu Filho numa ponte de reconciliação: “Aprouve a Deus fazer habitar em Cristo toda a sua plenitude, e reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os do céu, realizando a paz pelo sangue de sua cruz” (Cl 1,19-20).   

A cruz de Jesus Cristo nos ensina que somente um desgraçado pode salvar os desgraçados; somente um condenado pode salvar os condenados; somente um Deus ferido pode salvar uma humanidade ferida. Como nos disse a carta aos Hebreus, somente um ser humano provado em tudo como nós pode se tornar um sumo sacerdote capaz de se compadecer das nossas fraquezas. Não existe dor ou fraqueza em nós que Jesus não tenha experimentado em Si mesmo. Sua cruz se tornou o “trono da graça”, o lugar em que podemos nos aproximar sem medo, com toda a confiança, e obter do Pai a misericórdia e o auxílio de que necessitamos.

Mas a cruz de Cristo nos ensina algo importante a respeito da oração. O Deus em quem nós cremos sempre escuta a nossa oração, porque Ele é Pai, o Pai que sempre escuta seus filhos. No entanto, a sua resposta nem sempre vem de encontro àquilo que lhe pedimos. Cristo, o Filho único de Deus, suplicou ser salvo da morte. Mas o Pai não o poupou da morte. Nem sempre Deus nos poupará de sofrer. Isso não significa que Ele não exista, ou que não nos ame. Isso significa que há algo que nós temos que aprender por meio da dor que o Pai permite que nos atinja: “Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu” (Hb 5,8). Diante do “não” de Deus, Cristo “entregou-se”, submetendo sua vontade à vontade do Pai. E somente depois de morrer sentindo-se abandonado por Deus é que sua súplica foi atendida, sendo ressuscitado. Em nossa oração, não devemos jamais negar o que sentimos – repulsa diante da dor –, mas transformar essa repulsa numa entrega confiante à vontade do Pai.   

O Evangelho deste dia nos ensina como lidar com a cruz. No momento da sua prisão, Jesus, “consciente de tudo o que ia acontecer, saiu ao encontro deles” e disse: “Sou eu” (Jo 18,4.5). “Sou eu” significa: “Cabe a mim enfrentar este momento, e não a outra pessoa. É responsabilidade minha a maneira como eu escolho lidar com a dor”. Jesus nos ensina a não fugir da vida, mas a acolher aquilo que a realidade está nos apresentando. Diante da atitude de Pedro de usar de violência para impedir a sua prisão, Jesus o questionou: “Guarda a tua espada na bainha. Não vou beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11). Enquanto muitos se perguntam: “Por que comigo?”, Jesus nos ensina a mudar a pergunta: “Por que não comigo?” “Por que os outros podem beber do cálice do sofrimento, mas eu não?”.

Na noite da Paixão, dois homens foram questionados simultaneamente: Pedro e Jesus. Enquanto Pedro negou sua identidade de discípulo de Jesus, para salvar sua pele, Jesus afirmou sua identidade de Filho de Deus diante do sumo sacerdote. Nós temos consciência da nossa identidade de discípulos de Jesus? Neste mundo pagão e até mesmo anticristão, nós aceitamos pagar o preço por sermos cristãos? Com que facilidade negamos a nossa fé, para evitarmos humilhações ou prejuízos – quem sabe – em nossa vida financeira?

Ao ser questionado por Pilatos, Jesus respondeu: “Eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37). O rei é aquele que, antes de exercer domínio sobre os outros, tem domínio sobre si. Somente quem se encontrou com sua verdade e se reconciliou com ela pode ter domínio sobre si mesmo. Quem vive na mentira é dominado pelo medo e precisa esconder-se atrás de diversas máscaras. Num tempo em que postamos nas redes sociais imagens mentirosas de nós mesmos, como estamos em relação à verdade? Quem de nós consegue confrontar-se consigo mesmo, com seus fantasmas, com seus medos?

Ao ser ameaçado por Pilatos, Jesus lhe respondeu: “Tu não terias autoridade alguma sobre mim, se ela não te fosse dada do alto. Quem me entregou a ti, portanto, tem culpa maior” (Jo 19,11). Numa só resposta, Jesus revelou os dois responsáveis por sua morte: Judas e Pilatos. Indiretamente, Jesus lembrou a Pilatos que ele, que o estava julgando, um dia seria julgado por Deus. Diante de pessoas que supostamente têm poder ou autoridade sobre nós, precisamos manter a consciência de que ninguém nos atinge, sem o consentimento do Pai. Além disso, as pessoas têm sobre nós o poder que permitimos que elas tenham.

Estando já crucificado, Jesus entrega sua mãe ao discípulo amado: “Mulher, este é o teu filho”; “Esta é a tua mãe” (Jo 19,26.27). Maria e o discípulo amado representam a Igreja. Jesus quer a Igreja como Mãe que se coloca junto à cruz dos seus filhos. A Igreja, presente no mundo por meio dos discípulos de Jesus, é chamada a estar especialmente presente junto de quem sofre. Nenhum ser humano deveria se sentir órfão, sem Mãe, diante do seu sofrimento.

Segundo o evangelista João, as últimas palavras de Jesus na cruz foram: “Tudo está consumado” (Jo 19,30). Jesus volta para o Pai com a consciência de ter cumprido sua missão, de ter amado até o fim, de não ter perdido nenhum daqueles que o Pai lhe deu, de ter combatido o bom combate, terminado a corrida e guardado a fé. Ele nos ensina que o mais importante na vida é nos manter fiéis à nossa vocação, à missão para a qual nascemos. Morrendo aos trinta e poucos anos, Jesus nos lembra que o valor de uma vida não se mede pelo número de anos que a pessoa viveu, mas por sua fidelidade à palavra de Deus que ela foi chamada a pronunciar ao mundo com sua existência, ainda que breve.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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