quinta-feira, 30 de setembro de 2021

CASAMENTO: 100% DE SATISFAÇÃO OU O DIVÓRCIO!

 Missa do 27. dom. comum. Palavra de Deus: Gênesis 2,18-24; Hebreus 2,9-11; Marcos 10,2-16.

 

Tanto os fariseus quanto os discípulos perguntaram a Jesus a respeito do divórcio. A pandemia do coronavírus, obrigando as famílias a ficarem em casa convivendo juntas 24 horas por dia, fez com que a consulta no Google a respeito de “divórcio on line gratuito” crescesse 9.000%! Não devemos tentar tapar o sol com uma peneira. A realidade está aí, diante dos olhos de todos nós, mostrando que o divórcio deixou de ser exceção e passou a ser regra. A exceção são os casamentos que duram a vida toda, “até que a morte os separe”.

Inúmeras são as causas do divórcio. “Às vezes, para decidir que tudo acabou, basta uma desilusão, a ausência num momento em que se precisava do outro, um orgulho ferido” (Papa Francisco, A alegria do amor, n.237). “A essência de todo o divórcio está na incapacidade de amar o diferente”. Algumas pessoas se casam na esperança de que, com o tempo, consigam mudar o outro, atingindo, assim, “uma sintonia total”. Como isso não acontece, surge a convicção: “não somos mais compatíveis – precisamos buscar outra pessoa mais compatível para não arrastarmos ao longo da vida um relacionamento que nos fará infeliz. Aí surge o divórcio” (Carlos Catito, psicólogo clínico evangélico). No entanto, “é preciso reconhecer que há casos em que a separação é inevitável..., quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela prepotência e a violência, pela humilhação e a exploração, pela alienação e a indiferença” (Papa Francisco, A alegria do amor, n.241).

Por trás do divórcio há uma geração imatura, despreparada para tolerar frustrações, para lidar com problemas, para dialogar; numa palavra, para abraçar a cruz. Além disso, a maioria das pessoas se casam com uma pergunta no coração: “O que esse casamento tem a me oferecer?” ou então: “O que essa pessoa com quem estou me casando tem a me oferecer?”, quando a pergunta a ser feita é: “O que eu tenho a oferecer a esse casamento, a essa pessoa com quem eu me casei?” Em outras palavras, a grande maioria se casa pensando em usufruir, em desfrutar do casamento; poucos se casam dispostos a investir no seu casamento, a construir a casa a partir de um alicerce sólido e profundo, planejado, não improvisado.

Um dos problemas mais comuns no casamento é a questão sexual. Como lidar com a diferença de desejo entre o casal: um tem mais necessidade de sexo, enquanto o outro tem menos? Paulo apóstolo fala da necessidade do cuidado com a vida sexual do casal: “Não se recusem um ao outro, a não ser de comum acordo, para se entregarem à oração; depois disso, voltem a se unir, a fim de que Satanás não tente vocês através da incontinência” (1Cor 7,5). A vida sexual tem um peso sério a ser considerado no casamento, sobretudo no início. Muitas coisas podem interferir na saúde sexual do casal: o estresse (trabalho), a ansiedade (desempenho sexual?), a chegada de um filho ou o esgotamento em relação aos filhos, os problemas financeiros, a baixa autoestima (o descuido de si), a pornografia etc.

Ora, vivemos numa sociedade erotizada, a qual reduz nossa sexualidade ao prazer genital. Como esse prazer é temporário e finito, buscam-se formas de torná-lo permanente e cada vez mais intenso. Para isso, escancaramos as portas das nossas fantasias sexuais e nos entregamos aos nossos instintos, nos permitindo o uso de droga, de introdução consentida de um terceiro parceiro na relação, de troca de casais, de sexo grupal etc. Como nosso casamento nos realiza 85% e sentimos a falta dos outros 15%, nos vemos diante de três opções: 1) nos contentar e sermos agradecidos pelos 85%; 2) jogar fora os 85% para ir atrás dos 15% que sentimos que nos falta; 3) fazer um “bem bolado”, levando uma vida dupla, por meio da qual não só não perdemos os 85% como também obtemos os 15%, sempre que sentimos falta dele.  

A respeito dessa busca de 100% de satisfação ou felicidade, precisamos levar em conta duas coisas: segundo o próprio Freud, 90% das nossas fantasias sexuais nunca serão satisfeitas, justamente por serem fantasias. Além disso, precisamos ser realistas: ninguém tem tudo e ninguém pode ter tudo. Ainda em relação à vida sexual, precisamos considerar que nós não somos somente corpo, mas corpo, alma e espírito. Neste sentido, o sexo por si só não realiza nenhum casamento. Existem outras realidades pedindo cuidado: afeto, diálogo, companheirismo, respeito pela individualidade de cada um etc.

No ano de 2007 o Papa Bento XVI afirmou que o divórcio é uma “dolorosíssima chaga (ferida)” na vida de um casal cristão. Em nome da sua felicidade individualista, marido e mulher ferem-se mutuamente com o divórcio e expõem-se mutuamente ao adultério, pois o que Deus uniu não pode ser separado pelo ser humano. Em nome da sua felicidade individualista, pais impõem aos filhos a ferida do divórcio, justificando que eles (pais) têm o direito de serem felizes. Desse modo, nossas famílias, que poderiam ser lugares onde um cuida das feridas do outro, se tornam lugares onde um abre feridas no outro, com a sua busca individualista de felicidade.   

Mais do que nunca, precisamos nos voltar para o Senhor, nosso Deus, que disse: “Sim, incurável é tua ferida, e a tua chaga não tem remédio... Tua chaga é incurável! (...) Eu te trarei remédio, curarei tuas feridas” (Jr 30,12.15.17).

 

Oração: Senhor Deus, Tu és o Pai de toda família na terra. Através da família de Abraão, Tu prometeste abençoar todas as famílias da terra. Visita nossas casas, nossas famílias, nossos relacionamentos. Cobre com o sangue de Teu Filho, que nos amou até o fim, os casais que o Teu amor uniu, para que a ferida do divórcio não machuque as famílias. Cura nossa sexualidade adoecida e machucada. Concede aos casais o remédio do perdão, do diálogo, do renascimento do afeto e do desejo. Derruba o muro de separação que existe entre marido e esposa, entre pais e filhos. Que nossas famílias abracem o Teu sonho de construir um mundo onde ninguém se sinta só. Em nome de Teu Filho, na graça do Espírito Santo. Amém!   

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 23 de setembro de 2021

EU E OS MEUS ESCÂNDALOS

 Missa do 26. dom. comum. Palavra de Deus: Números 11,25-29; Tiago 5,1-6; Marcos 9,38-43.45.47-48

 

Dois temas aparecem nos textos bíblicos de hoje. O primeiro é o tema da liberdade do Espírito de Deus: Ele se derramou sobre dois homens que não estavam no acampamento, junto com Moisés (cf. Nm 11,26), assim como capacitou um homem que não era do grupo dos discípulos de Jesus a expulsar demônios (cf. Mc 9,38). O segundo tema é a questão do escândalo: “Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem, melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço” (Mc 9,42). Devido ao contexto em que estamos vivendo, seja no campo da Igreja, seja no campo da sociedade como um todo, trataremos do segundo tema: a questão do escândalo.

No sentido bíblico, “escândalo” é toda atitude minha que leva uma pessoa a perder a fé. Nosso mundo está cheio de escândalos, de modo que eles deixaram de ser exceção e passaram a ser regra: tornaram-se tão comuns, tão habituais, que já não nos escandalizam.

Os escândalos mais comuns se referem ao desvio de dinheiro – corrupção de políticos e de empresários, de venda de sentenças (juízes), de assédio moral ou sexual (mundo do trabalho), de adultério e de separação de casais “famosos” etc. No campo religioso, os escândalos costumam girar em torno do enriquecimento de pastores evangélicos, da ostentação de alguns padres e bispos católicos que vivem como príncipes e da problemática sexual: tanto no campo evangélico quanto no católico, pipocam escândalos de pedofilia ou de vida sexual promíscua.

O problema do escândalo que provoca a perda da fé, mencionado por Jesus no Evangelho, foi retratado no filme Spotlight – segredos revelados (2015): um homem adulto, abusado por um padre quando criança, diz a um jornalista que investiga abusos sexuais na Igreja dos Estados Unidos: “Eles (padres abusadores) não roubam apenas a nossa inocência; roubam também a nossa fé”. Para Jesus, uma atitude minha consciente e proposital que leve uma pessoa a perder a fé equivale à minha condenação diante de Deus: “melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço” (Mc 9,42). Embora muitos escapem da justiça terrena, ninguém escapará do momento do julgamento divino, onde se confrontará tanto com o Filho – “Tudo o que fizeste a um desses pequeninos, foi a mim que o fizeste” (Mt 25,40) – quanto com o Pai, o qual “não deseja que nenhum desses pequeninos se perca” (Mt 18,14).

A título de conscientização, é importante lembrarmos de que tanto o Papa Bento XVI quanto o Papa Francisco estabeleceram para a nossa Igreja “tolerância zero” com padres ou bispos abusadores de menores: eles devem ser imediatamente suspensos de suas funções, investigados e entregues à justiça comum, casos se comprove que cometeram crime. Portanto, o tempo de acobertamento de crimes sexuais em nossa Igreja acabou!

Há uma outra face do escândalo que precisa ser despertada em nós: escândalos que não nos escandalizam. A fome não nos escandaliza; as desigualdades sociais e a violência gerada por elas não nos escandalizam; o enriquecimento de certos empresários às custas de salários miseráveis pagos aos seus empregados (cf. Tg 5,1-6) não nos escandaliza; as queimadas propositais, o desmatamento da Amazônia e a destruição do Pantanal para a expansão da agropecuária não nos escandalizam; um presidente que afirma ao mundo ser um homem que acredita em Deus, mas promove uma política que privilegia os ricos e mata os pobres não nos escandaliza. E por que esses escândalos não nos escandalizam? Por que cada um de nós está voltado para si mesmo, seja lutando por sua sobrevivência ou tentando administrar seus próprios escândalos.

Seria muito fácil justificar os nossos escândalos pessoais colocando a culpa na sociedade em que vivemos. Mas Jesus nos chama à responsabilidade pessoal, ao nos lembrar que “nós não somos produto das circunstâncias; nós somos produto das nossas decisões” (V. Frankl). Se é verdade que nós somos afetados por estímulos externos, também é verdade que nós temos consciência e liberdade para escolher como responder ao que nos afeta; responder, e não simplesmente reagir! Eis porque Jesus nos aconselha: “Se tua mão te leva a pecar, corta-a! (...) Se teu pé te leva a pecar, corta-o! (...) Se teu olho te leva a pecar, arranca-o! É melhor entrar no Reino de Deus” faltando um dos teus membros, do que todo o teu corpo “ser jogado no inferno” (Mc 9,43.45.47).

O problema é que “cortar” a mão, o pé, ou “arrancar” o olho significa dizer “não” a nós mesmos; significa frustrar a nossa vontade de satisfazer o nosso desejo de prazer, ainda que tal prazer seja aparente, momentâneo e contrário aos valores que professamos, ao estado de vida que abraçamos e àqueles que nós mais amamos. Desse modo, nós deixamos de ouvir nossa consciência e substituímos nossa responsabilidade pelo “viver o momento presente”, pelo delegar às nossas emoções e aos nossos instintos a direção da nossa vida. Assim, ao não querer perder a oportunidade de um prazer ou de um benefício, ainda que aparente ou obtido mediante a traição, a corrupção ou prejudicando alguém, nós perdemos a nossa alma diante de Deus...  

Permita que o Evangelho de hoje questione sua vida. Com o que você se escandaliza? Com o que você não mais se escandaliza? Quais são os seus escândalos pessoais? Quais são aqueles pecados que você trata como se fossem seus bichinhos de estimação, os quais você pensa que controla e não se dá conta de que eles estão comprometendo a sua salvação diante de Deus? Qual decisão você precisa tomar para salvar a sua vida diante de Deus? Será que alguma atitude sua está levando alguém a perder a fé em Deus, ou na Igreja, ou, quem sabe, no próprio ser humano? Jesus convida você a fazer uso da sua consciência e da sua liberdade para colocar em ordem os seus afetos, tomar as decisões que são necessárias, fazer os cortes que são precisos, ao invés de permitir que seus afetos desordenados joguem você por inteiro num inferno do qual você não conseguirá mais sair.

 

Oração: Senhor Jesus, ensina-me a ouvir a minha consciência e a usar a minha liberdade para me responsabilizar por minha vida, por minhas escolhas e decisões. Ordena os meus afetos, de modo que eles deixem de me sabotar, de trabalharem contra mim, desviando-me do caminho da salvação. Sustenta-me nas decisões que devo tomar para cortar da minha vida tudo aquilo que está me fazendo caminhar na direção do inferno, da destruição de tudo aquilo que eu amo. Ensina-me a dizer não a mim mesmo, a frustrar o meu ego sempre que ele desejar aquilo que não é um bem real, mas aparente. Livra-me de ser causa de escândalo, de perda de fé para quem quer que seja. Salva-me de mim mesmo, Senhor! Amém!   

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

QUAL TAREFA A VIDA ME PEDE PARA ABRAÇAR?

 Missa do 25. dom. comum. Sabedoria 2,12.17-20; Tiago 3,16 – 4,3; Marcos 9,30-37.

 

Vivemos quase que constantemente sob pressão e debaixo de muita cobrança. As pressões e as cobranças geram em nós ansiedade, que nada mais é do que um sentimento de ameaça: se não correspondermos ao que nos é exigido, perderemos nosso lugar no mundo. E aí, como iremos sobreviver?

Jesus, no Evangelho de hoje, questiona nossa correria diária, nossas angústias e preocupações, a razão de ser de tanta ansiedade em nossa vida. Ao chegar em casa com seus discípulos, Jesus lhes perguntou: “O que vocês estavam discutindo pelo caminho?” (Mc 9,33). Mas os discípulos “ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior” (Mc 9,34). Por que a preocupação em “ser o maior”? No contexto do Evangelho, ela surgiu como uma reação ao fato de Jesus tornar seus discípulos conscientes da sua morte de cruz.

Qual é a preocupação principal na vida de cada um de nós? O que nos motiva a fazer as coisas que fazemos? O que estamos buscando na vida? Para muitas pessoas, a motivação principal em fazer o que fazem é a busca do prazer, o seu próprio bem estar. Para elas, a vida só vale a pena se elas estão se sentindo bem, ainda que esse “sentir-se bem” seja no âmbito restrito do individualismo, do egoísmo. Para outras pessoas, a motivação principal da vida é ser “o maior”, “o mais importante”, tornar-se “a pessoa mais visível”, “sobressair-se” em relação aos demais. E há um detalhe que precisa ser levado em conta aqui: tanto a pessoa que busca o prazer (sentir-se bem) como aquela que busca sobressair-se em relação às demais não suportam frustrações, isto é, não aceitam nenhum tipo de cruz.

A vida de Jesus nunca girou em torno do “sentir-se bem”, muito menos do “sobressair-se” em relação aos outros. Para Jesus, o mais importante na vida sempre foi ser fiel à razão que justificava a sua própria existência: Ele veio para servir e para dar a vida em resgate por muitos (cf. Mc 10,45). Sua vida foi uma vida para os outros, para uma causa, para uma tarefa que visava o bem comum. Por isso, quando via pessoas correndo atrás de uma felicidade egoísta ou de uma posição social superior à dos demais, Jesus apontava na direção contrária, mostrando que ninguém se realiza fechando-se em si mesmo ou se colocando acima dos outros; a nossa realização humana está em servir, em “viver para”, em cuidarmos daquilo que está pedindo nossos cuidados.

Eis porque Jesus, diante da preocupação dos discípulos em saber quem era o maior dentre eles, toma uma criança, coloca-a no meio deles e a abraça (v.36). Na época de Jesus, a criança era a pessoa mais desprezível da sociedade. Ela simplesmente não contava, chegando até mesmo a ser ignorada. Hoje Jesus toma aquela pessoa que nós mais ignoramos – o lixeiro; o catador de material reciclável; a pessoa que limpa o prédio onde moramos; a “caixa”, o “entregador” ou o “repositor” do supermercado, coloca essa pessoa diante de nós e a abraça, para nos dizer: o sentido da vida não está em ser feliz de maneira egoísta ou em ser maior do que os outros; o sentido da vida está em fazer-se próximo das pessoas ignoradas e desprezadas; está em cuidar de quem não é cuidado, em amar quem não é amado, em defender quem não é defendido por ninguém.

Quem são as pessoas mais importantes do nosso tempo? Políticos? Juízes? Cientistas? Médicos? Artistas? Cantores? Jogadores de futebol? Youtubers? E os lixeiros? E os professores? “O pai da criança sabe o nome de cada jogador do seu time, mas não sabe o nome da professora do seu filho... O país do futebol deveria ser o país da educação” (Diogo Almeida - humorista). Nossos valores estão invertidos. Ainda não entendemos que um cristão ou uma igreja que busca sua própria grandeza é uma contradição com Cristo e o seu Evangelho, pois Ele deixou claro que somente quando nos deixarmos afetar pela realidade das pessoas mais frágeis e ignoradas pelo mundo é que poderemos sentir a presença d’Ele e do Pai! (cf. Mc 9,37).

Há um consenso geral de que a humanidade está mais desumana. Além do aumento da violência e das desigualdades sociais, estamos sendo duramente atingidos pelos efeitos do aquecimento global: geadas, secas, queimadas e ausência de chuva... O externo reflete o interno, segundo São Tiago. A desordem externa revela a interna: inveja e rivalidade, desordens, maldade, guerras e brigas, nascidas das paixões em conflito dentro de nós; paixões em conflito que são consequência da constante busca de prazer e de poder. A cobiça é o motor do nosso consumismo. Matamos, brigamos e fazemos guerra, mas nada conseguimos possuir, porque tudo está sendo destruído pela nossa ganância sem limites.

São Tiago nos lembra que tudo poderia ser resolvido pedindo ao Pai, na oração, pois Ele conhece nossas necessidades (cf. Mt 6,8). Mas, ainda que peçamos, Ele não nos dará, se a motivação da nossa vida continuar a ser o prazer egoísta e o desejo de ser o maior, de nos sobressair aos outros. Quando decidirmos tirar o nosso egoísmo e o nosso individualismo do centro da vida, e abraçarmos tudo aquilo que está ferido, fragilizado e pedindo para ser cuidado, a vida começará a mudar. Mas isso levará tempo e exigirá de nós perseverança e constância no bem, porque ferir e destruir acontecem rapidamente; curar e reconstruir leva tempo...    

 

Oração: Senhor Jesus, visita o meu interior e põe fim aos conflitos que estão dentro de mim, invertendo os meus valores e comprometendo o meu servir. Diante da tentação do meu fechamento em mim mesmo(a), o Senhor coloca uma criança, uma pessoa frágil, desprezada e ignorada, para que eu a abrace e cuide dela. Desse modo, o Senhor me ensina que o sentido da minha vida não está dentro de mim, mas fora, numa tarefa a ser realizada, num serviço a ser abraçado em favor de uma pessoa ou de uma causa que é sagrada aos olhos do Pai. Liberta-me da cobiça e da ganância de ter o que eu não preciso, o que não é essencial para a minha vida. Concede-me paz de consciência e de coração, para que eu cuide daquilo que fui chamado(a) a cuidar, e nesse cuidado, que eu encontre a Ti e ao Pai. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

NENHUMA DOR DETERMINA SUA VIDA, NEM SUAS ATITUDES

 Missa do 24. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 50,5-9a; Tiago 2,14-18; Marcos 8,27-35.

 

Qual é o sentido da vida? Quando é que a vida vale a pena?

Segundo a mentalidade moderna, o sentido da vida está em ser feliz, o que significa ter uma vida sem dor, ou com um mínimo de dor, de problemas e dificuldades. Portanto, para o mundo moderno, guiado pelo princípio do prazer e pela constante busca da felicidade e do bem-estar individual, a vida só vale a pena quando não há dor, nem problema, nem sofrimento, nem dificuldade.

Se perguntarmos a Jesus o que ele entende pelo “sentido da vida”, sua resposta será uma pergunta: “O que as pessoas pensam a meu respeito?” (Mc 8,27), ou seja, “O que as pessoas esperam de mim? Elas esperam que eu lhes ofereça uma vida sem dor, sem sofrimento, sem dificuldades?” Muitas pessoas desinteressaram-se de Jesus por ele ser apresentado pela Igreja – e pela própria Sagrada Escritura! – como “um homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento” (Is 53,3). Um Jesus assim não atrai ninguém, justamente porque as pessoas, na sua grande maioria, sentem repulsa da dor e desviam-se o quanto podem do sofrimento.

Mas a pergunta principal de Jesus não é sobre a opinião que as pessoas de fora da Igreja têm dele, mas sim aquilo que nós, que estamos dentro da Igreja, pensamos a seu respeito. Quem Jesus é para nós? O que esperamos dele? O que buscamos no seu Evangelho? O que esperamos receber, quando comungamos o seu Corpo na Eucaristia?

Pedro era um discípulo encantado por Jesus! Suas expectativas a respeito dele eram altíssimas! Pedro tinha certeza de que Jesus libertaria o país de Israel da dominação do Império Romano, causa de inúmeros sofrimentos para o povo. No entanto, quando Jesus “disse abertamente” aos discípulos que “devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias” (Mc 8,31), Pedro escandalizou-se com o que ouviu de Jesus e se opôs duramente a ele!

Dentro das nossas igrejas há inúmeros “Pedros”, inúmeros cristãos que estão buscando no Evangelho não uma orientação para lidarem melhor com os desafios da vida, mas um anestésico que alivie suas dores; mais que isso, uma blindagem contra a dor e o sofrimento. São homens e mulheres “de Igreja” que pensam a vida segundo a mentalidade do mundo, não segundo a mentalidade de Deus. Enquanto a mentalidade do mundo entende que a vida só vale a pena quando se desenvolve distante de todo tipo de dor, a mentalidade de Deus entende que a vida também tem sentido quando se lida com a dor.

Por que Jesus “disse abertamente” a todos os seus discípulos que ele deveria sofrer muito? Porque Jesus chamou a multidão para perto de si e deixou bem claro: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mc 8,34)? Primeiro, porque não existe vida sem dor; não existe pessoa humana que atravesse a vida sem se deparar com algum tipo de cruz. Segundo, porque quem passa sua vida fugindo da dor não vive verdadeiramente, não cresce, não amadurece. Mais do que isso, quem foge constantemente da dor nunca se dará conta de que tem dentro de si uma grande força adormecida e que só será despertada quando for provocada por uma experiência de dor. 

O que Jesus está nos propondo no Evangelho de hoje? Que busquemos sofrer o quanto for possível? Não! Jesus nunca procurou a dor pela dor, nem o sofrimento pelo sofrimento. O que Jesus buscou foi viver intensamente sua vida, abrindo-se a tudo aquilo que ela tinha para lhe ensinar. Mais do que isso, Jesus procurou viver sua vida deixando-se afetar pelos acontecimentos, deixando-se questionar pela realidade e tocar pela ferida dos outros. Jesus abraçou a cruz por nossa causa, porque ele sabia que as lições que nós jamais esqueceremos nunca virão das palavras que escutamos das pessoas, mas daquilo que nós vemos nelas – concretamente, da maneira como elas lidam com a dor.

Todos sofrem, mas nem todos se abrem à transformação que a dor pode lhes proporcionar. A pandemia trouxe dor a grande parte da humanidade: quem estava aberto à vida tornou-se um ser humano melhor; quem estava fechado tornou-se um ser humano pior. Todos sofrem, mas nem todos têm vontade e coragem de dialogar com a dor que atravessou seu caminho de vida. Todos sofrem, mas nem todos têm a humildade de aprender o que o sofrimento está querendo lhes ensinar. Todos sofrem, mas são poucos os que se recordam o que a rosa disse ao Pequeno Príncipe: “É preciso que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas”.

Termino esta reflexão lembrando de Victor Frankl, um médico que sobreviveu a quatro campos de concentração, sem ter enlouquecido nem se suicidado, seja ao ver tanta dor, seja ao sofrê-la. Ele entendeu algo muito importante: “Tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto uma coisa: a liberdade de escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida”. Ou seja, você nem sempre escolhe qual sofrimento que vai entrar na sua vida, mas sempre pode escolher a maneira como vai lidar com ele. Neste sentido, é importante considerar também que esta outra verdade: “Você não é produto das circunstancias, você é produto das suas decisões” (Victor Frankl). Sua vida nunca será o resultado das dores que marcaram a sua história; ela sempre será o resultado daquilo que você decidiu fazer com essas dores. Portanto, o sentido da vida não está em não sofrer, mas em manter-se fiel à tarefa que a vida está lhe pedindo para abraçar neste momento, ainda que isso comporte dor para você. Parafraseando Nietzsche, quem tem uma razão para viver, quem tem uma missão a cumprir, quem tem um sentido para viver, suporta qualquer dor que essa missão comporte. Foi assim que Jesus enfrentou a cruz.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

NÃO VEJO, NÃO OUÇO, NÃO FALO

 Missa do 23. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 35,4-7a; Tiago 2,1-5; Marcos 7,31-37

 

            A grande maioria de nós conhece a imagem dos três macaquinhos, muito utilizada nas mensagens de whatsapp. Essa imagem, originalmente, tem uma boa intenção. Ela provém de um provérbio japonês que significa: “Não veja o mal; não fale o mal; não ouça o mal”. Contudo, a grande maioria das pessoas utilizam esses macaquinhos para dizerem intencionalmente: não quero ver; não quero falar; não quero ouvir. Portanto, trata-se de um fechamento voluntário, alimentado pelo forte individualismo da época atual, onde cada um corre atrás dos seus interesses, da sua própria satisfação, sem se importar com o que se passa com o próximo.

Acabamos de ver no Evangelho Jesus curar um surdo. Todo surdo é também mudo, porque o falar depende do ouvir. Um detalhe importante: a audição é o último sentido a se desligar, quando morremos. Por isso, precisamos tomar cuidado com o que falamos a uma pessoa que está em coma, por exemplo, aparentemente ausente deste mundo. No entanto, existe um desligamento voluntário dos sentidos: pessoas que decidiram não mais ver, não mais falar, não mais ouvir. Sobretudo a essas pessoas, Jesus hoje diz: “Efatá!”, isto é “Abra-se!”.

Na sua encíclica sobre “a Fraternidade e a Amizade social” (Fratelli Tutti), o Papa Francisco denuncia os males de um “mundo fechado”. “Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência” (FT 12). Este mundo fechado domina as pessoas “semeando o desânimo e despertando uma desconfiança constante... Nega-se a outros o direito de existir e pensar... Nesta luta de interesses que nos coloca todos contra todos, onde vencer se torna sinônimo de destruir... aumentam as distâncias entre nós, e a dura e lenta marcha rumo a um mundo unido e mais justo sofre um novo e drástico revés” (FT 15 e 16). «O mundo de hoje... é um mundo surdo” (FT 48), constata o Papa Francisco.

Jesus veio restituir à humanidade os sentidos da escuta, da fala e da visão, que possibilitam o diálogo. Ele veio tocar naquilo que está fechado em nós e nos lançar o desafio de nos abrir. Diante do diferente, é uma tentação fechar-se: os ricos se fecham aos pobres; os brancos se fecham aos negros; os da direita se fecham aos da esquerda, e assim vamos nos desumanizando e nos destruindo uns aos outros. Mas Jesus nos cura de forma que possamos nos abrir ao outro, àquele que é diferente de nós, ao que está em nossa casa ou em nosso ambiente de trabalho. Jesus nos propõe um mundo aberto, pois “o ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude a não ser no sincero dom de si mesmo aos outros” (FT 87). Precisamos, portanto, estar cientes de que “ninguém amadurece nem alcança a sua plenitude isolando-se”! (FT 95).

Estamos iniciando o mês da Bíblia, cujo estudo proposto é da carta aos Gálatas. Nas redes sociais é possível encontrar inúmeros vídeos e reflexões a respeito deste importante livro que nos fala da liberdade em Cristo. Justamente por estarmos no mês da Bíblia, vale a pena recordarmos esta palavra do profeta Jeremias: “Esta é a nação que não escutou a voz do Senhor, seu Deus, e não aceitou correção. Sua fé morreu, foi arrancada de sua boca” (Jr 7,28). Da mesma forma, afirma o apóstolo Paulo: “A fé vem pelo ouvir a pregação da palavra de Cristo” (Rm 10,17). Um cristão que não se alimenta diariamente da Palavra de Deus “tem sua fé arrancada de sua boca”, ou seja, torna-se uma pessoa muda, incapaz de comunicar uma palavra de fé e de esperança para alguém. Além disso, ouvir a Palavra do Senhor significa “aceitar Sua correção”, e o Senhor Jesus hoje está nos corrigindo em relação a essa atitude perigosa e doentia do fechamento. Quanto mais as pessoas se fecham em si mesmas, mais a humanidade caminha para o seu adoecimento e a sua destruição. Quanto mais nos esforçamos em nos manter abertos uns aos outros, mais saúde emocional, mais fortalecimento espiritual e mais fraternidade universal.

Para curar o homem surdo, Jesus “afastou-se com o homem, para fora da multidão” (Mc 7,33). Precisamos nos afastar do barulho do mundo para voltarmos a ouvir a voz de Deus, assim como precisamos nos afastar do barulho das redes sociais para voltarmos a ouvir as pessoas que estão próximas de nós, pessoas que há tempos estão nos comunicando algo importante e que nós não temos encontrado tempo, nem coragem, para ouvir. “Em seguida, (Jesus) colocou o dedo nos seus ouvidos e tocou a língua dele” (Mc 7,33). Há quanto tempo não tocamos fisicamente nas pessoas próximas de nós? Por que nossas mãos não têm dificuldade alguma em digitarem e compartilharem inúmeras mensagens nas redes sociais com pessoas distantes de nós, mas acham muito difícil, ou, quem sabe, desnecessário, tocarem naqueles que estão perto de nós?

Por fim, Jesus, levantando os olhos para o céu – para o Pai – “suspirou e disse: ‘Efatá!’ (Abra-se!) [Mc 7,34]. Há quanto tempo nossos olhos não se dirigem para o alto, para o Pai? É verdade que Ele é “um Deus escondido” (Is 45,15), que não podemos ver; mas também é verdade que Ele jamais disse a alguém: “Busque-me e procure-me inutilmente” (Is 45,19). Ao Pai, cujo coração é aberto e não fechado, suspiramos pela abertura dos nossos ouvidos, da nossa boca, dos nossos olhos, das nossas mãos... A Ele suplicamos que sua Palavra encontre em nós ouvidos dispostos a escutá-la e coração disposto a obedecê-la, de modo que a fé jamais seja arrancada da nossa boca; pelo contrário seja testemunhada com nossas palavras e nossas atitudes.

Às vésperas do dia da Pátria, suplicamos ao Pai por nossa Pátria amada Brasil, Pátria que hoje se encontra faminta, devido à alta abusiva de preços dos alimentos e dos combustíveis; Pátria que hoje se encontra desmatada e queimada, devido ao desrespeito com o meio ambiente por parte de ruralistas predadores e gananciosos; Pátria cujos filhos naturais – os povos indígenas – são atacados por “atrapalharem” os interesses de empresários e políticos corruptos; Pátria que hoje se encontra com seu sistema educacional enfraquecido propositalmente, para favorecer a ignorância do povo, enquanto o presidente da República, cinicamente, cita o versículo bíblico: “Meu povo será destruído por falta de conhecimento” (Os 4,6); Pátria cuja bandeira se tornou vermelha devido ao sangue da violência contra pobres, jovens, negros, mulheres e indígenas, alimentada por um presidente que afirma que toda família deve ter um fuzil em casa, ao invés de feijão para comer.


Oração: Senhor Jesus Cristo, toca em meus ouvidos e pronuncia o teu “Abra-se!” Que eu ouça a tua Palavra e oriente minhas escolhas e decisões por ela. Fecha os meus ouvidos a tudo o que é mal, a toda mentira e fofoca.

Toca em meus olhos e pronuncia o teu “Abra-se!” Que eu veja todas as coisas a partir da luz da tua verdade; que eu veja a minha história com os olhos da fé, e me deixe conduzir pelo Espírito do Pai. Fecha os meus olhos a tudo o que é mal, a toda pornografia; ensina-me a ver com os olhos do coração.

Toca em minha boca e pronuncia o teu “Abra-se!” Que eu saiba levar todos os dias uma palavra de conforto, de fé e de esperança às pessoas que necessitam. Fecha minha boca a tudo o que é mal, de modo que dela não saiam palavras que machuquem ou danifiquem a imagem dos outros.

Toca em meu coração e pronuncia o teu “Abra-se!” Livra-me do individualismo que me desumaniza. Torna-me aberto(a) à vida, ao meu próximo, ao próprio Deus e àquilo que a vida está me pedindo neste momento. Fecha o meu coração a tudo o que é mal, a todo tipo de tentação, a tudo o que possa me corromper.

Enfim, pronuncia o teu “Abra-se!” sobre as famílias, as empresas, as cidades e os países fechados em si mesmos. Cura a surdez do nosso mundo, de modo que nos humanizemos e nos abramos uns aos outros, em vista da solidariedade e da fraternidade universal. Amém.     

 Pe. Paulo Cezar Mazzi