quinta-feira, 29 de julho de 2021

PEDIR O QUE EU DESEJO OU PEDIR O QUE EU NECESSITO AOS OLHOS DE DEUS?

 Missa do 18. dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo 16,2-4.12-15; Efésios 4,17.20-24: João 6,25-34.

 

“Senhor, dá-nos sempre desse pão” (Jo 6,34). Esse pedido da multidão a Jesus revela que nós, seres humanos, somos seres necessitados. Mas, do que nós necessitamos? Quais são as nossas necessidades?

Nossas necessidades se dividem em três áreas: a física/biológica, a psíquica/emocional e a espiritual. As necessidades físicas/biológicas são o alimento, o descanso, a proteção, ter um teto (casa), um trabalho e uma terra (meio de sobrevivência). As necessidades psíquicas/emocionais são a paz, a alegria, o sentir-se amado, as amizades, o estar com os outros. Por fim, as necessidades espirituais são a fé, a esperança, o sentido da vida, o relacionamento com Deus, a capacidade de transcender, o desejo pela vida eterna.

O Evangelho de hoje nos revela que há uma diferença entre essas três necessidades: enquanto as duas primeiras se impõem a nós sem que precisemos escolhê-las, buscá-las, cultivá-las, a terceira precisa ser escolhida, desejada, buscada, cultivada. Por exemplo: a fome, a sede, o cansaço surgem naturalmente em nós, assim como a necessidade de sobrevivência; o desejo de ser amado, de ter amigos e de estar com as pessoas também surge naturalmente em nós, sem que escolhamos sentir tal necessidade. Mas os valores espirituais não surgem naturalmente em nós: eles têm que ser desejados, buscados e cultivados por nós.

Prestemos atenção ao que Jesus disse à multidão: “Vocês estão me procurando não porque viram sinais (espirituais), mas porque comeram pão e ficaram satisfeitos. Esforcem-se não pelo alimento que se estraga, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do Homem dará a vocês” (Jo 6,26-27). A grande maioria das pessoas luta e se esforça em sobreviver, em ter o que comer, o que beber, o que vestir, onde morar; em ter um carro, uma casa, em ter amigos, em estar com as pessoas, em se sentirem amadas por alguém etc. Mas, quem se esforça em ter uma vida de oração disciplinada e profunda? Quem se esforça em ler e meditar a Sagrada Escritura diariamente? Quem se esforça em praticar uma religião, em buscar a Deus, em aprofundar seu relacionamento com Ele? Quem se esforça em viver conforme Jesus viveu, em ser uma pessoa justa, coerente, humilde, sensível à dor do seu semelhante?

Jesus está nos fazendo um convite: transcender; enxergar a vida para além das necessidades biológicas e psicológicas e ter a coragem de reconhecer que em cada um de nós há uma dimensão espiritual que pede atenção, alimento e cultivo. Se essa dimensão não for ouvida e levada em conta, vai causar em nós um constante vazio, uma constante insatisfação, uma constante falta de sentido. Como a maioria das pessoas não reconhece o espiritual dentro de si e, se o reconhecem, não se dão ao trabalho de cuidar dele, elas procuram preencher seu vazio interior com excesso de trabalho, com bebida, sexo, drogas, consumismo, ou silenciando o grito do seu espírito com remédios psicotrópicos (sedativos, calmantes, antidepressivos etc.).  

Tanto o Pai quanto o Filho sabem que nós somos seres necessitados. Ao falar sobre a oração, Jesus afirmou que “o Pai de vocês sabe do que vocês têm necessidade antes que vocês lhe peçam alguma coisa” (Mt 6,8), e ao nos ensinar a orar, nos ensinou a pedir: “o pão nosso de cada dia nos dai hoje” (Mt 6,11). No entanto, o Pai (no Antigo Testamento) e o Filho (no Novo Testamento) afirmaram claramente que “o homem não vive somente de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3; Mt 4,4). Isso significa que não podemos reduzir nossa vida somente às necessidades biológicas e emocionais, mas cuidar das nossas necessidades espirituais. Não podemos cometer o mesmo erro do povo de Israel, de preferir permanecer escravo no Egito, porque lá se podia comer carne e pão com fartura, do que enfrentar a fome no deserto como preço a ser pago para se tornar um povo livre na Terra Prometida.   

O problema de muitas pessoas é que elas sacrificam tempo e dinheiro para terem um corpo perfeito, um carro novo, uma casa melhor, um trabalho mais bem remunerado, para estar com os amigos, para viajarem e descansarem, mas não sacrificam nada, ou seja, não se esforçam para estarem com Deus, para cultivarem sua vida espiritual, para lerem um bom livro, para trabalharem seu caráter e seu temperamento em vista de se tornarem um ser humano melhor, um cristão melhor. Elas podem até ter recebido alguns sacramentos na sua infância e na sua adolescência, mas hoje vivem como pessoas pagãs, esquecendo-se da advertência do apóstolo Paulo: “Não continueis a viver como vivem os pagãos, cuja inteligência os leva para o nada” (Ef 4,17). São pessoas que se corrompem, que se perdem, que vagueiam sem rumo na vida, porque estão sempre sob o comando das suas próprias “paixões enganadoras” (Ef 4,22).

“Senhor, dá-nos sempre desse pão” (Jo 6,34). Do quê você tem fome? Do quê você tem sede? O que você está pedindo a Deus em sua oração? Qual necessidade está mais gritante dentro de você, neste momento? Quando foi a última vez que você alimentou-se espiritualmente? Como você tem cuidado do seu espírito?

 

ORAÇÃO: Senhor Jesus, sou um ser necessitado. Tenho fome; tenho sede; tenho desejo. No entanto, o mais importante não é aquilo que eu desejo, mas aquilo que o Pai sabe que eu tenho necessidade. Na minha oração, eu não sei, de fato, pedir aquilo que me convém, mas o Espírito Santo sabe verdadeiramente do que eu necessito; Ele sabe aquilo que o Pai deseja me dar em vista do meu bem e da minha salvação. Concede-me a graça de transcender, de enxergar a vida para além das minhas necessidades básicas e de cuidar da minha espiritualidade, abrindo-me ao Espírito Santo e permitindo que Ele opere em mim segundo os desígnios do Pai a meu respeito. Mais do que o pão de cada dia, concede-me a fé de cada dia, a esperança de cada dia, o amor de cada dia, o sentido da vida de cada dia. Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 22 de julho de 2021

FOME. E EU COM ISSO?

 Missa do 17. dom. comum. Palavra de Deus: 2Reis 4,42-44; Efésios 4,1-6; João 6,1-15.

 

                No dia 19 deste mês noticiou-se que “Pessoas fazem fila para doação de ossos em açougue de Cuiabá”. Moradores de Mato Grosso, o estado com o maior rebanho bovino do país (cerca de 32 milhões de cabeças de gado), fazem fila para receber ossos em um açougue que doa restos do processo de desossa do boi. Este é apenas um pequeno retrato da fome em nosso País, fome que se intensificou e se agravou não só devido à pandemia, mas também à alta absurda do preço de alimentos básicos.

            Como é que os primeiros cristãos lidavam com a fome? “Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos; depois, ele era distribuído a cada um conforme a sua necessidade” (At 4,34-35). Isso não era uma lei, mas uma atitude que brotava espontaneamente do coração. Diferente de grupos católicos tradicionalistas que afirmam que a Igreja tem que se preocupar com a salvação da alma da pessoa e não se envolver com questões políticas e sociais, os primeiros cristãos procuravam observar essa orientação bíblica: “Quando no seu meio houver um pobre... não endureça o seu coração, nem feche a mão para esse irmão pobre... Abra a mão em favor do seu irmão, do seu pobre e do seu indigente no lugar onde você está” (Dt 15,7.11).

            Precisamos recordar mais uma vez as palavras de Gandhi: “Na terra há o suficiente para satisfazer as necessidades de todos, mas não para satisfazer a ganância de alguns”. A fome não é consequência da quantidade de pessoas na face da terra, mas de dois fatores principais: a desigualdade social e o desperdício de alimentos. Quando nossa Igreja levanta sua voz para denunciar essa desigualdade, a qual gera não apenas fome, mas também violência e morte, ela não está pregando o comunismo, não está fazendo um “discurso de esquerda”, mas alertando a consciência de cada cristão para uma verdade básica do Evangelho: “Eu tive fome, e vocês me deram de comer... Todas as vezes que vocês socorreram pessoas necessitadas, foi a mim que vocês socorreram” (citação livre de Mt 25,35.40).  

            O Evangelho nos fala que, “levantando os olhos e vendo que uma grande multidão estava vindo ao seu encontro, Jesus disse a Filipe: ‘Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?’ (Jo 6,5). Hoje Jesus dirige essa pergunta a cada um de nós, seus discípulos, porque Ele deseja que cada um de nós se deixe afetar pelo sofrimento que afeta os pobres à nossa volta. Enquanto católicos tradicionalistas desejam missas em latim, a volta do uso do véu para as mulheres e comunhão dada na boca, Jesus nos pergunta se as nossas mãos, que se estendem para receber a Eucaristia, também têm se estendido para dar pão a quem tem fome.

               A pergunta que Jesus fez a Felipe foi “para pô-lo a prova” (Jo 6,6). Hoje Jesus também está pondo as igrejas cristãs à prova, igrejas que o proclamam Senhor e Salvador, igrejas que afirmam crer no seu Evangelho. Ao nos pôr à prova, Jesus está verificando o nosso nível de humanidade, de compaixão, de solidariedade. Jesus está verificando qual cristão/igreja se esforça em se configurar a Ele, que procurou se colocar junto aos pobres e sofredores, e qual cristão/igreja está se configurando aos fariseus, que sempre usaram do culto religioso como forma de se manterem distantes dos pobres, dos pecadores, dos sofredores. Talvez essas palavras de São João Crisóstomo nos ajude a fazer nosso exame de consciência: “Se você não conseguir encontrar Cristo no mendigo na porta da igreja, não o encontrará no cálice”.

 

            Mas, afinal de contas, onde está a solução para o problema da fome em nosso mundo? Está na consciência, no bolso e nas mãos de cada um de nós. Tanto na época do profeta Eliseu como na época de Jesus, a fome foi saciada com “pães de cevada” (cf. 2Rs 4,42; Jo 6,9), alimento de pessoas pobres. O problema é a falta de fé em nossos pequenos recursos: “Como vou distribuir tão pouco para cem pessoas?” (2Rs 4,43). “Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes. Mas o que é isto para tanta gente?” (Jo 6,9). A resposta de Eliseu foi: “Dá ao povo para que coma; pois assim diz o Senhor: ‘Comerão e ainda sobrará’” (2Rs 4,43). Jesus, por sua vez, “tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez o mesmo com os peixes” (Jo 6,11).

            Quais são seus “pães de cevada”? Quais são os pequenos recursos que você tem consigo, mas não tem feito uso deles? O nosso grande erro enquanto povo brasileiro é esperar que a solução para os problemas do nosso País venha de Brasília, do Palácio do Planalto, do Congresso, do Senado ou do STF, exatamente das pessoas que mantêm o nosso País na indigência, na ignorância, na pobreza, na falta de saúde e de educação porque só assim eles podem continuar a serem eleitos como falsos messias, falsos salvadores da Pátria.

            “Quando todos ficaram satisfeitos, Jesus disse aos discípulos: ‘Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!’” (Jo 6,12). Já sabemos que o outro lado da moeda da fome é o desperdício de alimento. Segundo São João Crisóstomo, Deus dá riqueza “não para você desperdiçar com prostitutas, bebida e comida sofisticadas, roupas caras..., mas para distribuir aos necessitados... Se você tem dois pares de sapatos, um pertence aos pobres”. Nada deve se perder; nada deve ser desperdiçado; tudo deve ser partilhado.

            Além de não desperdiçar comida, água, energia, é preciso não desperdiçar a oportunidade de alimentar relacionamentos que nos são significativos. Nossas relações também precisam ser alimentadas. Nossa fé e nossa esperança em Deus precisam ser alimentadas por meio da oração, e a oração acontece quando não desperdiçamos tempo com distrações fúteis e vazias. Diariamente precisamos orar ao Pai pelo pão de cada dia: “Todos os olhos, ó Senhor, em vós esperam e vós lhes dais no tempo certo o alimento; vós abris a vossa mão prodigamente e saciais todo ser vivo com fartura” (Sl 145,15-16).

            Após saciar toda aquela multidão, Jesus precisou se afastar dela: “Quando notou que estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo, sozinho, para o monte” (Jo 6,15). É muito importante que você possa ajudar pessoas necessitadas, mas não permita que elas elejam você como o(a) salvador(a) particular delas; não permita que as pessoas deixem de caminhar com suas próprias pernas e queiram ser carregadas no seu colo; não permita ser usado(a), sugado(a) ou explorado(a) pelos outros. Respeite seus limites e não se esgote.

 

            Oração: Pai querido, teu Filho nos ensinou a pedir-Te o pão nosso de cada dia. Olha para o nosso mundo, faminto de justiça e de paz, de saúde e de esperança, de alegria e de sentido de vida. Perdoa nosso desperdício de tempo, de comida, de água e de energia. Dai-nos olhos para ver as necessidades dos nossos irmãos. Que nossas mãos se abram para partilhar e trabalhem para diminuir a desigualdade social, fonte de fome, sofrimento, violência e morte em nosso País. Liberta-nos da política e da economia que estão aprofundando a desigualdade social e a fome no Brasil. Que haja pão em todas as mesas, paz em todos os lares, emprego digno e salário justo para o sustento das famílias. Que todos os cristãos colaborem para que não haja tantos necessitados à sua volta. Em nome de Jesus, na força do Espírito Santo. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi    

quinta-feira, 15 de julho de 2021

O NECESSÁRIO EQUILÍBRIO ENTRE CUIDAR DOS OUTROS E CUIDAR DE SI

 Missa do 16. dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 23,1-6; Efésios 2,13-18; Marcos 6,30-34

 

            No mundo atual e também em nossas igrejas (comunidades), alguns estão sobrecarregados, enquanto outros estão folgados; alguns estão como Jesus e seus discípulos – “sem tempo para comer” – enquanto outros estão “muito ocupados em não fazer nada”. Esses dois extremos são perigosos e precisam ser evitados. Viver sobrecarregado leva ao esgotamento; viver sem fazer nada leva à atrofia e à perda de sentido de vida. Por isso, diante daquilo que nos está sendo solicitado, precisamos nos perguntar: é a vida que está me pedindo isso ou é a minha necessidade de ser reconhecido, de me sentir importante e, quem sabe, insubstituível para os outros? 

            Jesus escolheu fazer da sua vida uma doação para os outros. Quando se tratava de socorrer, de curar, de salvar, Ele se doava sem medida. No entanto, Jesus nunca se deixou consumir ou “ser devorado” pelas necessidades das pessoas. Ele sempre soube retirar-se quando era necessário, seja para orar, seja para descansar, seja para dizer às pessoas que não era sua missão carregá-las no colo, mas ensiná-las a caminharem com as próprias pernas. É por isso que o Evangelho de hoje se inicia com essa orientação de Jesus aos seus discípulos que voltam da missão: “Vinde à parte, para algum lugar deserto, e descansai um pouco” (Mc 6,31).

            Todas as pessoas que trabalham para Deus precisam evitar duas atitudes que levam ao adoecimento e ao esgotamento: o messianismo e o ativismo. O messianismo consiste basicamente em sentir-se o salvador dos outros. O ativismo, por sua vez, nos faz trabalhar incansavelmente, como se a obra fosse nossa e não de Deus. Em ambos os casos, fracassamos, porque estamos ocupando um lugar que não é o nosso; nos achamos insubstituíveis, quando, na verdade, ninguém o é. O resultado é o esgotamento, o desencanto e até mesmo o abandono da missão.

            Mas o Evangelho nos revela uma surpresa: “Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se dela, porque era como ovelhas que não têm pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6,34). Quando chegou num lugar afastado onde esperava descansar com seus discípulos, Jesus foi surpreendido por uma grande multidão que desejava ficar perto dele, que desejava alimentar-se das suas palavras, dos seus ensinamentos. Mesmo cansado e com fome, Jesus esqueceu de si mesmo e se deixou atingir pelas necessidades daquelas ovelhas que não têm pastor.

            O que aconteceu com Jesus pode acontecer conosco também: havíamos programado um descanso, uma viagem, um passeio, um lazer, mas fomos surpreendidos por alguém que precisava do nosso socorro, da nossa presença, da nossa atenção. O que fez Jesus esquecer-se de si foi o sentimento de compaixão: ele se deixou afetar pela situação de abandono e de desorientação daquela multidão. O sentimento de compaixão faz você enxergar a vida para além das suas próprias necessidades. Ele revela que, mesmo na correria do dia a dia, é possível encontrar um tempo para ouvir alguém, para estar com alguém, para ajudar aquela pessoa que atravessou o seu caminho não por acaso, mas porque é como “uma ovelha que não tem pastor”, uma pessoa que precisa ser ajudada.

            Nossa situação atual, enquanto Igreja, família e sociedade, é parecida com a época do profeta Jeremias: líderes preocupados com seus próprios interesses acabam por deixar “perder-se e dispersar-se o rebanho miúdo” (Jr 23,1); líderes sem compaixão e sem coerência, escandalizam muitas ovelhas do seu rebanho, “afugentando-as”. Por isso, precisamos rezar pelas pessoas que têm a função de liderar, de cuidar, de pastorear. Precisamos pedir a Deus que nos conceda “pastores segundo o seu coração” (Jr 3,15) no âmbito religioso, político, profissional, familiar e social.   

            Jesus é o pastor segundo o coração de Deus. Além de ter um coração compassivo, que se deixa afetar pelas pessoas que sofrem, Ele trabalhou incansavelmente para trazer para perto quem estava longe de Deus; para derrubar o muro da inimizade e construir a ponte da paz entre as pessoas. Na época de Jesus, a humanidade era vista como dividida em dois povos: os judeus (os salvos) e os pagãos (os perdidos). Hoje são diversas as divisões entre nós: os ricos e os pobres; os que creem em Deus e os ateus; os do Oriente e os do Ocidente; os católicos e os evangélicos; os de direita e os de esquerda etc.

            Jesus nos desafia a enxergar a humanidade para além dessa visão míope de divisão. Ele nos convida a não alimentar conflitos desnecessários, mas a restabelecer a paz em vista do bem de uma única humanidade que necessita ser reconciliada com Deus. Jesus nos convida a derrubar os muros da inimizade e a construir as pontes da fraternidade, para que todos os povos possam reconhecer que “Ele é a nossa paz” (Ef 2,14). Na sua cruz, Jesus derrubou dois muros: o muro que separava a humanidade de Deus e o muro que separa os homens uns dos outros. Que essa também seja a nossa tarefa: reaproximar as pessoas umas das outras, de modo que nos sintamos todos irmãos uns dos outros e filhos do mesmo Pai.   

 

Oração: Senhor Jesus, tu me convidas a descansar um pouco, a não me deixar consumir pelas urgências e pelas cobranças que o mundo constantemente me faz. Liberta-me do engano de me achar insubstituível e do erro de desrespeitar meus limites. Concede-me um coração compassivo, capaz de se deixar afetar pelas necessidades do meu irmão, daquela pessoa que vive ao meu lado como ovelha que não tem pastor. Dá-me sabedoria para identificar a tarefa que a vida está me pedindo para realizar, de modo que eu não desperdice tempo e energia com tarefas que não são minhas. Olha para o nosso mundo ferido por tantas divisões, onde muros de inimizade são erguidos todos os dias nas famílias, nos ambientes de trabalho, na política e até mesmo nas igrejas. Dá-nos força para derrubarmos esses muros e construirmos pontes no lugar deles, restabelecendo o diálogo, a fraternidade e a paz.

Cristo, quero ser instrumento de tua paz e do teu infinito amor. Onde houver ódio e rancor, que eu leve a concórdia, que eu leve o amor. Onde há ofensa que dói, que eu leve o perdão; onde houver a discórdia, que eu leve a união e tua paz!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 9 de julho de 2021

PROFECIA, DESÍGNIO, MISSÃO

 Missa do 15. dom. comum. Palavra de Deus: Amós 7,12-15; Efésios 1,3-14; Marcos 6,7-13.

 

O texto que ouvimos do profeta Amós nos fala da importância da profecia. O profeta é alguém escolhido por Deus para “re-velar”, isto é, “tirar o véu” de situações que estão contrárias à vontade de Deus, desmascarar a mentira e propor a verdade como único caminho que conduz à vida que Deus quer para todo ser humano.

O que nos chama a atenção nesse texto de Amós é que a profecia não está a serviço nem da política, nem da religião, mas da verdade e da justiça de Deus. Amós não nasceu profeta, nem nasceu filho de profeta. Além disso, ele pertencia ao “reino do sul”, mas foi escolhido, chamado e enviado por Deus a profetizar ao “reino do norte”, denunciando as injustiças cometidas pela religião e pela política que ali imperavam, causando sofrimento ao povo e levando muitos à morte. Portanto, a profecia, quando verdadeira, incomoda; justamente por isso, é combatida, atacada, rejeitada.

Existe um fenômeno perigoso em nosso país: líderes políticos se apropriam indevidamente do nome de Deus e do discurso religioso para nos convencerem de que eles são “messias”, homens que vieram salvar a nossa Pátria do comunismo e da destruição da família, quando, na verdade, eles são lobos vestidos em pele de cordeiro; enquanto falam de Deus e da família, provocam a morte; morte que se dá pela fome, devido à alta de preços de diversos alimentos que compõem a cesta básica; morte que se dá na modificação de leis de proteção ambiental e da liberação de agrotóxicos cancerígenos; morte que se propaga na facilitação do armamento da população; enfim, uma política de morte que recebeu a grande ajuda do coronavírus, cuja disseminação em nosso País foi programada, desejada e facilitada graças a uma política de desinformação e de combate às vacinas.

Diante dessa política de morte, a mesma que o profeta Amós foi denunciar no “reino do norte”, os seguidores dos falsos messias atacam o profetismo da nossa Igreja, afirmando que religião não deve se misturar com política, um discurso falso, pois o messias que eles seguem se elegeu e se mantém no poder usando um falso discurso religioso; um discurso de pessoas que ignoram o significado bíblico da profecia, que é, repito, combater a mentira que gera sofrimento e morte e restaurar a justiça e a verdade que promovem a vida.

Do profeta Amós passamos para o apóstolo Paulo. Ele nos apresenta o projeto, o desígnio, o plano de Deus para a humanidade. No centro deste plano da salvação está a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo. Por meio dele nós recebemos do Pai duas bênçãos preciosíssimas: a bênção que é o Espírito Santo (v.3) e a bênção do perdão dos nossos pecados (v.7). E tem mais: o desígnio do Pai para a humanidade é “recapitular, em Cristo, o universo inteiro: tudo o que está no céu e tudo o que está sobre a terra” (Ef 3,10). Recapitular significa restaurar, sanar, recuperar, redimir, transformar, devolver tudo ao seu estado original, onde não havia a morte, a destruição, provocadas pelo pecado. E a garantia de tudo isso é que, em Cristo, recebemos o Espírito Santo, chamado exatamente de “penhor” (garantia) da nossa redenção (vv.13-14). Portanto, nossa história não ficará inacabada, incompleta, perdida e esquecida no tempo; ela está inserida na história da salvação, que está em andamento!

Enfim, nos voltamos para o Evangelho, momento no qual Jesus chama e envia seus discípulos em missão. Aqui se encontra a nossa identidade como cristãos. Não somos consumidores de sacramentos. Somos discípulos missionários, isto é, pessoas chamadas a seguir Jesus Cristo e enviadas por Ele a anunciarem a alegria do Evangelho a todos aqueles que não se fazem presentes em nossas celebrações. Parafraseando o Papa Francisco, somos uma missão nesta terra, por isso estamos neste mundo. Diariamente o Senhor nos envia para junto de pessoas enfermas ou atormentadas pelo espírito do mal.

“Então os doze partiram e pregaram que todos se convertessem. Expulsavam muitos demônios e curavam numerosos doentes, ungindo-os com óleo” (Mc 6,12-13). Três palavras-chave: conversão, demônio, óleo. “Conversão” significa mudar a maneira de pensar, de entender a vida. As pessoas do nosso tempo são constantemente incentivadas a pensarem somente em si e a buscarem ser felizes, não se importando com nada e com ninguém. O Evangelho nos convida a mudar essa mentalidade: somos todos parte de um imenso organismo, onde a saúde ou a doença de um se reflete no outro. Ou cuidamos uns dos outros e nos salvamos todos juntos, ou nos destruiremos uns aos outros e ninguém sobreviverá.

            “Demônio”, espírito do mal, diabo. Sua atitude é sempre a mesma: dividir, nos opor uns aos outros, nos perverter em inimigos, nos envenenar com ódio, nos tornar assassinos, isto é, pessoas que acreditam que a violência e a morte são a única forma de “colocar a casa em ordem”. Se antes era comum que a política fosse marcada pela divisão, agora essa divisão passou a fazer parte das igrejas: cristãos estão divididos entre esquerda e direita, entre defensores do Evangelho e defensores de uma política de morte. Todos somos chamados a nos tornar verdadeiros discípulos daquele que, no seu corpo pregado na cruz, “destruiu o muro da inimizade” (Ef 2,14s) e colocou em diálogo as diferenças.

            Por fim, a “unção com óleo”. Todos nós estamos feridos. Muitos estão feridos no corpo: doença, fome, dependência química, agressão, violência, abuso, desorientação sexual, afetos desordenados, prostituição... Muitos estão feridos na alma: falta de sentido para a vida, vazio, tristeza, depressão, medo, pânico, ansiedade, doenças psíquicas... Muitos estão doentes no seu espírito: perda de fé e de esperança, descrença no amor, pessimismo, confusão de crenças, culto ao demônio... Sobre cada uma dessas feridas somos chamados a derramar óleo. Este óleo é o bálsamo de uma palavra, de uma escuta, de um olhar, de uma presença, de um toque, de um abraço, de um colocar-se junto. Somos cristãos, pessoas ungidas com o óleo do Espírito Santo, o mesmo Espírito que guiou Jesus em sua missão, o mesmo Espírito que deseja nos enviar para junto de pessoas que estão feridas e para as quais podemos ser óleo que cura, bálsamo que restaura...    

 

Oração: Senhor Jesus, torna-me uma pessoa profética, capaz de denunciar toda mentira, toda injustiça, e lutar incansavelmente para restabelecer a verdade e a justiça neste mundo. Confirma o Espírito Santo em minha vida, de modo que Ele se torne a garantia, a certeza interior de que minha vida está inserida num plano maior, cuja meta final é a minha salvação definitiva em Ti. Torna-me discípulo(a) missionário(a) da alegria do Evangelho. Converte-me! Abre minha mente para a verdade que liberta e que exige de mim coerência, compromisso, fidelidade. Livra a humanidade dos demônios que a atormentam. Livra nossa política e nossas igrejas do diabo que causa divisão, inimizade e ódio entre nós. Derrama sobre nossas feridas o bálsamo da reconciliação, da cura, da restauração. Envia-nos para junto das pessoas que estão feridas à nossa volta. Concede-nos palavras, olhares, toques e aproximações que curem, reanimem, fortaleçam, reergam, libertem e devolvam alegria, esperança, fé e sentido de vida para toda pessoa ferida que aguarda por nossa presença. Amém!  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 1 de julho de 2021

RELIGAR-SE AO SAGRADO

 Missa de São Pedro e São Paulo. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 12,1-11; 2Timóteo 4,6-8.17-18; Mateus 16,13-19.

 

            “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16,18). Os dois apóstolos que celebramos hoje – São Pedro e São Paulo – nos fazem olhar para o fundamento da nossa Igreja. Ela é uma imensa construção de mais de dois mil anos, cujo alicerce são os dozes apóstolos, sendo Jesus Cristo a pedra principal dessa construção (cf. Ef 2,20).

            A primeira coisa que nos chama a atenção na Igreja que Jesus fundou sobre os apóstolos é a sua diversidade. Pedro e Paulo, as duas colunas principais da Igreja, tiveram não somente personalidades muito diferentes, mas também papeis muitos diferentes na edificação da mesma Igreja. Pedro a edificou internamente, tornando-se garantia de fidelidade à doutrina e à unidade da Igreja. Paulo a edificou externamente, fazendo o Evangelho expandir-se sob a força do Espírito Santo, atingindo aqueles que estão fora da Igreja, os quais Deus também deseja salvar.

            Hoje nossa Igreja vive um conflito interno entre aqueles que a desejam voltada para questões internas, cuidando da doutrina e do espiritual, e aqueles que a querem inserida no mundo e nos dramas humanos. Essa divergência de pensamento tem ferido o corpo da Igreja, causando divisões e inimizades. O problema está na compreensão da pessoa de Jesus Cristo e da sua missão. Jesus não veio cuidar somente do espiritual, não veio salvar apenas a alma da pessoa; Ele veio resgatar o ser humano como um todo. Ele se fez pessoa humana e se deixou afetar por tudo o que afeta o ser humano.

O que se espera da Igreja é a fidelidade ao seu Fundador, Jesus Cristo. Assim como Ele se inseriu na realidade humana para redimi-la, assim a Igreja deve fazer. Assim como Ele não viveu para si, mas para os outros, a Igreja não existe para si mesma enquanto instituição, mas para a humanidade, para ser a presença redentora do Senhor Jesus no seio da humanidade. Assim como uma construção de dois mil anos precisa de passar por reformas contínuas, assim a Igreja deve reformar-se constantemente, para que o sal e a luz do Evangelho que ela recebeu não percam as suas respectivas capacidades de salgar e de iluminar as realidades humanas do nosso tempo.

A realidade atual nos mostra que há uma distância cada vez maior das pessoas em relação à Igreja enquanto instituição. Além de a Igreja ainda não ter conseguido fazer a necessária passagem de uma pastoral de manutenção para uma pastoral verdadeiramente missionária, ela se depara com um mundo sempre mais materialista e contrário aos valores do Evangelho. Além de a Igreja estar desacreditada devido aos erros humanos de alguns que a representam, ela se encontra no meio de um mundo pluralista, onde a sua voz se mistura a inúmeras outras vozes, e a verdade tornou-se relativa e adaptada aos interesses de cada um.

Desde quando iniciou seu pontificado, o Papa Francisco tem trabalhado incansavelmente para reaproximar a Igreja do Evangelho. Essa expressão pode até causar escândalo em alguns católicos, mas o fato é que, ao longo dos séculos, alguns líderes da nossa Igreja buscaram segurança nos poderes humanos (a monarquia, o Estado, por exemplo), distanciando-se do seu Fundador, o qual não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8,20). Ao repropor uma fidelidade mais radical ao Evangelho, o Papa Francisco tem enfrentado duras resistências de setores internos da Igreja e também de grupos externos, para os quais a verdade do Evangelho é por demais incômoda e exigente. Se Pedro foi assistido por Deus enquanto estava na prisão devido às orações da Igreja em seu favor, espera-se de nós a mesma atitude para com o Papa Francisco, em favor de toda a nossa Igreja. 

O destino da Igreja é o destino do seu Fundador. Se Ele foi um sinal de contradição para as pessoas do seu tempo, assim ela também o será para o mundo de hoje. Se Ele foi combatido e rejeitado pelos que não creem, assim a Igreja também o será. E é aí nós entramos! Quem de nós está disposto a manter-se fundamentado sobre a rocha que é Cristo? Quem de nós está disposto não só a crer no Evangelho, mas também a sofrer por causa dele, como Pedro e Paulo sofreram? Quem de nós deseja lutar para manter-se firme na fé que recebeu dos apóstolos, como testemunhou Paulo agora a pouco: “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé” (2Tm 4,7)? Ser cristão católico, pertencer à Igreja de Jesus Cristo, comporta um combate, o percorrer um caminho, cuidando para não perder a fé.

Jesus conferiu a Pedro, o primeiro Papa, uma missão específica: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19). Muitas pessoas decidiram se desligar da Igreja por causa das suas imperfeições humanas. Elas acabaram por jogar fora o bebê junto com a água do banho. Nós, católicos, vivemos em ambientes cada vez mais pagãos e/ou anticatólicos, ou até mesmo anticristãos. Nossa missão é ser uma chave que abre a porta e dá acesso ao sagrado. Nossa missão é ligar – religião significa “religar” – as pessoas a Deus, aos valores do Evangelho, à pessoa de Jesus Cristo, salvador de todos os homens. Não se trata de nos portar entre as pessoas como “nós, os bons, e vocês, os maus”; “nós, os que estão na luz, e vocês, os que estão nas trevas”. Não nos esqueçamos da advertência de Santo Agostinho: “Existem aqueles que estão dentro (da Igreja), mas vivem como se estivessem fora; existem aqueles que estão fora, mas vivem como se estivessem dentro”.

O tempo da presunção já passou. O fato de Jesus ser o Fundador da nossa Igreja não significa que Ele ou o Evangelho sejam monopólios nossos. A Igreja é de Jesus e não Jesus da Igreja. A Igreja será julgada pelo Evangelho e não o contrário. Aprendamos com Jesus a dialogar com a diversidade. Ele sempre se colocou junto às pessoas a partir da realidade em que se encontravam, respeitando as diferenças e convidando as pessoas a buscarem aquela Verdade que é inesgotável e que transcende toda crença, toda igreja, toda religião. Busquemos viver segundo o Evangelho, de modo que as nossas atitudes jamais afastem as pessoas de Jesus Cristo. Pelo contrário, que nossa vida desperte nelas o encanto por Jesus, por seu Evangelho e por sua Igreja.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi