Missa do 2. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 22,1-1.9a.10-13.15-18; Romanos 8,31b-34; Marcos 9,2-10.
O
Evangelho do primeiro domingo da Quaresma nos falou das tentações que tanto
Jesus quanto nós temos que enfrentar ao longo da vida. Neste segundo domingo,
ele nos fala das provações. Enquanto as tentações vêm do espírito do mal e procuram
nos afastar da vontade de Deus, as provações vêm do próprio Deus e visam nos
confirmar na sua vontade. Enquanto as tentações tendem a nos desfigurar,
sobretudo se cedemos a elas e pecamos, as provações podem nos transfigurar,
quando saímos delas mais decididos ainda a viver segundo a vontade de Deus.
O
grande relato da provação está no sacrifício de Isaac, quando Deus pediu a
Abraão que lhe devolvesse seu único filho, a garantia de que ele seria pai de
uma multidão de pessoas. Por trás desse relato está a necessidade de Abraão
conhecer melhor a Deus, pois naquela época alguns povos pagãos tinham o costume
de sacrificar crianças para obterem favores dos deuses aos quais cultuavam. Quando
o anjo do Senhor segura a mão de Abraão e impede o sacrifício de Isaac, deve
ficar claro para todos nós, filhos de Abraão, pai da nossa fé, que Deus não é
um monstro que exige sacrifícios de vidas humanas para nos dar suas bênçãos.
Muitos séculos mais tarde, quando Israel perguntar: “Darei eu meu primogênito
pelo meu crime, o fruto de minhas entranhas pelo meu pecado?” (Mq 6,7), o
profeta Miqueias responderá: “Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom e o que
Deus exige de ti: nada mais do que praticar a justiça, amar a bondade e
caminhar humildemente com teu Deus!” (Mq 6,8).
Se
as tentações são difíceis, igualmente o são as provações. Quando estamos sendo
provados em nossa fé, não enxergamos a presença de Deus junto a nós. Pelo
contrário, parece não só que Ele escondeu de nós o seu rosto, como também se
tornou como que nosso Inimigo, pois sentimos que é d’Ele que está vindo o mal
sobre nós, justamente d’Ele, o Deus que é Pai e que é amor! Esse é o grande
desafio da provação: continuar a confiar no amor de Deus por nós quando Ele
está permitindo que tanta coisa ruim nos aconteça. O mal nunca vem de Deus, mas
nenhum mal nos atinge sem que Deus permita. É isso que coloca em crise a nossa
fé: como continuar a crer e a confiar que o Pai nos ama como filhos, mesmo
quando permite que algo ruim nos aconteça?
Toda
provação nos joga dentro de uma noite escura, e nós só poderemos atravessar
essa noite escura se mantivermos o nosso olhar fixo nesta Palavra: “Deus que
não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós, como não nos daria
tudo junto com ele?” (Rm 8,32). Se no momento da provação sentimos que parece
que Deus se voltou contra nós, o apóstolo Paulo corrige essa ideia errada: como
poderia estar contra nós o Pai que nos deu seu Filho único como Salvador? Como
você poderia pensar que está sozinho(a) nessa provação e que Jesus ignora a sua
situação, quando, na verdade, Ele está ressuscitado à direita de Deus,
intercedendo por você?
Do
Monte Moriá, lugar do sacrifício de Isaac, passamos para o Monte Tabor, lugar
onde Jesus se transfigurou diante de três discípulos. Nossa vida tem momentos
de planície: é o nosso contato diário com a realidade, uma realidade que questiona
a nossa fé e desafia os nossos valores cristãos. Essa realidade que nos cerca
tem um rosto desfigurado pelo pecado, pelas injustiças, por uma sociedade que
se guia por contravalores. Jesus nos ensina que precisamos, em alguns momentos,
sair da planície e subir a montanha para nos encontrar com o Pai, na oração, e
receber d’Ele uma interpretação correta da realidade, descendo depois para
junto dela a fim de ajudá-la a se transfigurar.
Os
grupos que nas redes sociais têm combatido a Campanha da Fraternidade deste ano
não aceitam enxergar o que a realidade está mostrando a todos nós. Como ela
desafia a nossa fé e os nossos valores cristãos, esses grupos escolhem negá-la.
Quando a realidade se mostra desfigurada no desmatamento da Amazônia, na
violência social, nos discursos de ódio disseminados nas redes sociais e na
política de morte instaurada em nosso País, eles negam tal desfiguração
afirmando que “isso é pauta esquerdista”, quando, na verdade, é pauta de todo
discípulo de Jesus chamado a transfigurar a realidade que à sua volta se
encontra desfigurada.
Neste
momento em que a polarização política foi trazida para dentro da nossa Igreja
por pessoas que desejam viver sua vida cristã permanentemente sobre o monte da
Transfiguração, sem descer à realidade que as desafia e as questiona, o
Evangelho nos convida a manter nossos olhos fixos em Jesus. “Este é o meu Filho
amado. Escutai o que ele diz!” (Mc 9,7). Jesus nunca fugiu do confronto com a
realidade do seu tempo, mas fez questão de tocar nela e de transfigurá-la. Ele
nos ensina que deixar-nos afetar por aquilo que está desfigurado à nossa volta é
o que se espera de todo verdadeiro discípulo seu. Mantenhamos nossos olhos
fixos n’Ele, e não naqueles que se encontram num extremo ou noutro da
polarização que tem desfigurado o rosto da nossa Igreja no Brasil.
Oração:
Senhor Jesus Cristo, queremos entregar a ti a realidade do nosso tempo,
desfigurada pelo pecado pessoal e social, pela violência, pelas injustiças e
pela desigualdade social. Permanece conosco em nossos momentos de provação. Que
eles possam comprovar a verdade da nossa fé, da nossa esperança e do nosso amor.
Livra-nos das imagens erradas e doentias que temos de Deus. Revela-nos o
verdadeiro rosto do Pai. Que as nossas palavras e as nossas atitudes de
verdadeiros discípulos teus ajudem a transfigurar os ambientes em que nos
encontramos no dia a dia e o mundo em que vivemos. Enfim, que possamos aguardar
com plena confiança o dia da tua vinda, quando nosso corpo, desfigurado pela
morte, será transfigurado e se tornará semelhante ao teu. Amém!
Pe.
Paulo Cezar Mazzi