Missa da Sagrada
Família de Nazaré. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses
3,12-21; Lucas 2,22-40.
Começo esta
reflexão sobre o Evangelho da Sagrada Família de Nazaré lembrando duas
afirmações do Papa Francisco: 1) “Querer
formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem
de sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele
nesta história de construir um mundo onde ninguém se sinta só” (AL n.322*).
Deus ama a família e nos convida a cultivá-la e a protegê-la, porque ela é
necessária para que nenhum ser humano se sinta só. 2) “Nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para
sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar”
(AL n.325). Portanto, não existe família ideal, assim como não existem
relacionamentos ideais. Toda família é chamada a aprender com seus erros, a
tratar suas feridas e a buscar o amadurecimento dos seus vínculos afetivos.
A atitude de Maria e José de
apresentarem Jesus para ser consagrado a Deus revela a consciência de que “se
Deus não constrói a casa, em vão trabalham seus construtores” (Sl 127,1). Se a
consciência e o coração da mãe, do pai e dos filhos não se deixar orientar por
Deus, todo o esforço que fazemos por construir um relacionamento e por realizar
nosso sonho de felicidade cai no vazio, é vencido pelas dificuldades e
abandonado no meio do caminho. Além disso, a consagração de Jesus no Templo nos
lembra que a pessoa mais importante de uma família não é o pai, nem a mãe, nem
qualquer um dos filhos; a pessoa mais
importante de uma família é Deus. Em outras palavras, o vínculo mais
importante e urgente a ser cultivado não é o vínculo entre o casal, nem o
vínculo entre pais e filhos, mas o vínculo de todos – pais e filhos – com Deus.
Só a comunhão com Deus, o Rochedo da nossa salvação (cf. Sl 95,1) – uma
comunhão alimentada pela Palavra, pela Eucaristia e pela oração diária –, pode
fazer com que nossa casa resista às tempestades e não seja destruída por elas
(cf. Mt 7,24-25).
O livro do Eclesiástico nos lembra
que a nossa comunhão com Deus está diretamente relacionada com a nossa comunhão
com os nossos pais (cf. Eclo 3,6.14-16). Sempre que descuidamos do nosso
relacionamento com os nossos pais, nos omitindo nas nossas responsabilidades de
filhos, distanciando-nos afetivamente deles ou falhando no cuidado para que
eles tenham uma velhice digna, estamos nos afastando do Pai Altíssimo, que nos
deu o mandamento de honrar pai e mãe. Neste sentido, também o genro e a nora
precisam se questionar o quanto as suas possíveis dificuldades de convivência
com o sogro e a sogra colaboram para que o marido ou a esposa acabe falhando no
seu papel de filho ou filha, por não conseguir administrar as “cobranças”
dos dois vínculos – aquele com o cônjuge e aquele com os pais. Aqui é preciso
lembrar que os dois vínculos são sagrados aos olhos de Deus e ambos precisam
ser cuidados.
O apóstolo Paulo nos lembra que “o
amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3,14). A nós, que nos acostumamos a reduzir
o amor a uma simples emoção, a um sentimento egoísta e passageiro, o apóstolo
nos propõe amadurecer em nossa capacidade de amar, de forma que o nosso amor se
traduza em “misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência” (Cl 3,12),
um amor que aprenda a suportar as dificuldades do relacionamento e a nos
perdoar uns aos outros (cf. Cl 3,13), pois não somos anjos, mas pessoas de
carne e osso, e os nossos relacionamentos dependem basicamente disso: que cada
um de nós cuide daquilo que convém ao nosso relacionamento familiar e não
daquilo que convém a si mesmo. Aqui mais uma vez são oportunas as palavras
do Papa Francisco: “Se a família consegue
concentrar-se em Cristo, Ele unifica e ilumina toda a vida familiar. Os
sofrimentos e os problemas são vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e,
abraçados a Ele, pode-se suportar os piores momentos” (AL 317).
Por falar em Cruz do Senhor, eis as
palavras de Simeão a Maria, no momento em que ela consagrava a Deus seu filho
Jesus: “Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma” (Lc 2,35). Hoje em dia,
cresce sempre mais o número de casais que escolhem não ter filhos porque não
querem que sua alma seja ferida por uma espada de dor chamada “preocupação”, “orientação”,
“trabalho” em formar a consciência dos filhos neste mundo tão cheio de contra-valores.
Por outro lado, é cada vez maior o número de pais que rejeitam essa “espada de
dor” omitindo-se em relação à educação dos filhos, não se dando ao trabalho de impor-lhes
limites porque não querem se indispor com os filhos. O resultado disso todos
nós conhecemos: filhos que crescem sem limites, tratados por seus pais como
“príncipes” e “princesas”, excessivamente mimados, se tornam pessoas
profundamente mal resolvidas, pessoas que, além de entregarem os pontos diante
de qualquer dificuldade que a vida lhes apresenta, costumam multiplicar as “espadas
de dor” em nossa sociedade, com seu comportamento imaturo, inconstante e inconsequente.
As palavras de Simeão a Maria nos
lembram que não existe vida sem dor; não existe relacionamento sem dor; não
existe família sem dor. Quem escolhe amar deve ter consciência de que corre o
risco de sofrer, assim como quem decide não mais amar por medo de sofrer, terá
que lidar com outro tipo de dor. É claro que a vida não é somente dor, mas a
dor faz parte da vida de qualquer ser humano. Por isso, a maior herança que os
pais podem deixar para os filhos é ensiná-los a lidar de maneira consciente e
madura com a dor, e o maior desserviço que os pais podem prestar aos seus
filhos e à humanidade é querer poupá-los de toda e qualquer dor, colaborando
para que cresçam como pessoas imaturas, adultos mimados e eternamente
infantilizados, pessoas incapazes de assumir responsabilidades e de fazer
escolhas que sejam duradouras, sobretudo na vida afetiva.
“(...) eu dobro os joelhos diante do
Pai, de quem toda família recebe o nome nos céus e na terra” (Ef 3,14). Neste
dia da Sagrada Família de Nazaré dobramos os nossos joelhos para suplicar ao
Pai por todas as famílias que estão dobradas diante da dor; feridas por causa
da violência; destruídas por causa das guerras; entristecidas por causa do
luto; separadas por causa do adultério; desestruturadas por causa da bebida,
das drogas e de comportamentos agressivos; famílias empobrecidas pela desigualdade
social, atingidas pelo desemprego; famílias financeiramente muito bem
amparadas, mas cujos filhos se alimentam de “pão sujo”, porque seus pais ganham
dinheiro de maneira desonesta...
Rezemos pela grande maioria das
famílias, atualmente afastadas da nossa Igreja, seja porque seus membros foram
batizados, mas não evangelizados, seja porque alguns pastores da nossa Igreja não
acolhem o apelo do Espírito que diz: “É
mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não
a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma
plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano... É verdade que
as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem descuidar,
mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações
particulares” (Papa Francisco, AL 304). “Por
isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles
que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram
contra a vida das pessoas... Lembremo-nos de que um pequeno passo, no meio de
grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida
externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias
dificuldades” (Papa Francisco, AL 305).
*AL – Exortação
Apostólica Amoris laetitia (A alegria do amor). Os números se referem aos
parágrafos da referida Exortação.
Pe. Paulo Cezar Mazzi
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