sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

CUIDAR DOS NOSSOS VÍNCULOS, SEM ESQUECER O VÍNCULO PRINCIPAL

Missa da Sagrada Família de Nazaré. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses 3,12-21; Lucas 2,22-40.

            Começo esta reflexão sobre o Evangelho da Sagrada Família de Nazaré lembrando duas afirmações do Papa Francisco: 1) “Querer formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história de construir um mundo onde ninguém se sinta só” (AL n.322*). Deus ama a família e nos convida a cultivá-la e a protegê-la, porque ela é necessária para que nenhum ser humano se sinta só. 2) “Nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar” (AL n.325). Portanto, não existe família ideal, assim como não existem relacionamentos ideais. Toda família é chamada a aprender com seus erros, a tratar suas feridas e a buscar o amadurecimento dos seus vínculos afetivos.
            A atitude de Maria e José de apresentarem Jesus para ser consagrado a Deus revela a consciência de que “se Deus não constrói a casa, em vão trabalham seus construtores” (Sl 127,1). Se a consciência e o coração da mãe, do pai e dos filhos não se deixar orientar por Deus, todo o esforço que fazemos por construir um relacionamento e por realizar nosso sonho de felicidade cai no vazio, é vencido pelas dificuldades e abandonado no meio do caminho. Além disso, a consagração de Jesus no Templo nos lembra que a pessoa mais importante de uma família não é o pai, nem a mãe, nem qualquer um dos filhos; a pessoa mais importante de uma família é Deus. Em outras palavras, o vínculo mais importante e urgente a ser cultivado não é o vínculo entre o casal, nem o vínculo entre pais e filhos, mas o vínculo de todos – pais e filhos – com Deus. Só a comunhão com Deus, o Rochedo da nossa salvação (cf. Sl 95,1) – uma comunhão alimentada pela Palavra, pela Eucaristia e pela oração diária –, pode fazer com que nossa casa resista às tempestades e não seja destruída por elas (cf. Mt 7,24-25). 
            O livro do Eclesiástico nos lembra que a nossa comunhão com Deus está diretamente relacionada com a nossa comunhão com os nossos pais (cf. Eclo 3,6.14-16). Sempre que descuidamos do nosso relacionamento com os nossos pais, nos omitindo nas nossas responsabilidades de filhos, distanciando-nos afetivamente deles ou falhando no cuidado para que eles tenham uma velhice digna, estamos nos afastando do Pai Altíssimo, que nos deu o mandamento de honrar pai e mãe. Neste sentido, também o genro e a nora precisam se questionar o quanto as suas possíveis dificuldades de convivência com o sogro e a sogra colaboram para que o marido ou a esposa acabe falhando no seu papel de filho ou filha, por não conseguir administrar as “cobranças” dos dois vínculos – aquele com o cônjuge e aquele com os pais. Aqui é preciso lembrar que os dois vínculos são sagrados aos olhos de Deus e ambos precisam ser cuidados.       
            O apóstolo Paulo nos lembra que “o amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3,14). A nós, que nos acostumamos a reduzir o amor a uma simples emoção, a um sentimento egoísta e passageiro, o apóstolo nos propõe amadurecer em nossa capacidade de amar, de forma que o nosso amor se traduza em “misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência” (Cl 3,12), um amor que aprenda a suportar as dificuldades do relacionamento e a nos perdoar uns aos outros (cf. Cl 3,13), pois não somos anjos, mas pessoas de carne e osso, e os nossos relacionamentos dependem basicamente disso: que cada um de nós cuide daquilo que convém ao nosso relacionamento familiar e não daquilo que convém a si mesmo. Aqui mais uma vez são oportunas as palavras do Papa Francisco: “Se a família consegue concentrar-se em Cristo, Ele unifica e ilumina toda a vida familiar. Os sofrimentos e os problemas são vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar os piores momentos” (AL 317).
            Por falar em Cruz do Senhor, eis as palavras de Simeão a Maria, no momento em que ela consagrava a Deus seu filho Jesus: “Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma” (Lc 2,35). Hoje em dia, cresce sempre mais o número de casais que escolhem não ter filhos porque não querem que sua alma seja ferida por uma espada de dor chamada “preocupação”, “orientação”, “trabalho” em formar a consciência dos filhos neste mundo tão cheio de contra-valores. Por outro lado, é cada vez maior o número de pais que rejeitam essa “espada de dor” omitindo-se em relação à educação dos filhos, não se dando ao trabalho de impor-lhes limites porque não querem se indispor com os filhos. O resultado disso todos nós conhecemos: filhos que crescem sem limites, tratados por seus pais como “príncipes” e “princesas”, excessivamente mimados, se tornam pessoas profundamente mal resolvidas, pessoas que, além de entregarem os pontos diante de qualquer dificuldade que a vida lhes apresenta, costumam multiplicar as “espadas de dor” em nossa sociedade, com seu comportamento imaturo, inconstante e inconsequente.      
            As palavras de Simeão a Maria nos lembram que não existe vida sem dor; não existe relacionamento sem dor; não existe família sem dor. Quem escolhe amar deve ter consciência de que corre o risco de sofrer, assim como quem decide não mais amar por medo de sofrer, terá que lidar com outro tipo de dor. É claro que a vida não é somente dor, mas a dor faz parte da vida de qualquer ser humano. Por isso, a maior herança que os pais podem deixar para os filhos é ensiná-los a lidar de maneira consciente e madura com a dor, e o maior desserviço que os pais podem prestar aos seus filhos e à humanidade é querer poupá-los de toda e qualquer dor, colaborando para que cresçam como pessoas imaturas, adultos mimados e eternamente infantilizados, pessoas incapazes de assumir responsabilidades e de fazer escolhas que sejam duradouras, sobretudo na vida afetiva.
            “(...) eu dobro os joelhos diante do Pai, de quem toda família recebe o nome nos céus e na terra” (Ef 3,14). Neste dia da Sagrada Família de Nazaré dobramos os nossos joelhos para suplicar ao Pai por todas as famílias que estão dobradas diante da dor; feridas por causa da violência; destruídas por causa das guerras; entristecidas por causa do luto; separadas por causa do adultério; desestruturadas por causa da bebida, das drogas e de comportamentos agressivos; famílias empobrecidas pela desigualdade social, atingidas pelo desemprego; famílias financeiramente muito bem amparadas, mas cujos filhos se alimentam de “pão sujo”, porque seus pais ganham dinheiro de maneira desonesta...
                Rezemos pela grande maioria das famílias, atualmente afastadas da nossa Igreja, seja porque seus membros foram batizados, mas não evangelizados, seja porque alguns pastores da nossa Igreja não acolhem o apelo do Espírito que diz: “É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano... É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem descuidar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares” (Papa Francisco, AL 304). “Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas... Lembremo-nos de que um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades” (Papa Francisco, AL 305).
   
*AL – Exortação Apostólica Amoris laetitia (A alegria do amor). Os números se referem aos parágrafos da referida Exortação.


Pe. Paulo Cezar Mazzi 

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