terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A SUA BÊNÇÃO, PAI!

Missa de Ano Novo. Palavra de Deus: Números 6,22-27; Gálatas 4,4-7; Lc 2,16-21.

Ouve-se dizer que 2014 foi um ano difícil para muitas pessoas, sobretudo no campo econômico. Ora, um ano não é nem bom, nem ruim em si mesmo; ele é o resultado das escolhas que as pessoas vão fazendo e das decisões que elas vão tomando nas várias áreas da vida: profissional, financeira, emocional etc. É claro que vale lembrar que não se trata somente de escolhas e decisões pessoais, mas também das escolhas e decisões que aqueles que nós escolhemos para nos representar (Senado e Congresso) e nos governar tomam, sobretudo em relação à economia, saúde, educação, transporte público etc.  
Nesta noite estamos virando mais uma página do nosso tempo, entrando num novo ano. Antes, porém, de virar a página, é importante refletir sobre a maneira como conduzimos a nossa vida, pessoal e social, para que os possíveis erros do ano que termina não se repitam no ano que se inicia. Mais do que isso, é importante nos perguntar se a maneira como conduzimos nossa vida até aqui está de acordo com o desígnio de Deus para nós: “Sim, eu conheço os desígnios que formei a vosso respeito..., desígnios de paz e não de desgraça, para vos dar um futuro e uma esperança” (Jr 29,11).
Eis a atitude de Maria, mencionada no Evangelho desta noite: ela “conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração” (Lc 2,19). Nenhum acontecimento é obra do acaso ou de um destino cego: ele sempre tem algo a nos dizer, a nos ensinar, e a pergunta principal diante de cada acontecimento que marcou a nossa história em 2014 não é POR QUÊ?, mas PARA QUE? Quando perguntamos “por quê?”, estamos procurando o culpado por aquilo que nos aconteceu, e nos colocando no papel de vítimas. Quando perguntamos “para que?”, estamos entendendo que tudo tem um propósito dentro do desígnio de Deus; todo acontecimento tem algo a nos ensinar, a nos corrigir, a nos alertar, e ao invés de perdermos tempo procurando pelo culpado, podemos nos lembrar de que, se nós nem sempre somos responsáveis por aquilo que nos acontece, nós sempre somos responsáveis pela maneira como lidamos com o que nos aconteceu. Em outras palavras, nós temos liberdade de escolha, até mesmo diante dos acontecimentos mais dramáticos e dolorosos que nos atingem.
SAÚDE e PAZ talvez sejam as palavras mais usadas ao se cumprimentar as pessoas na entrada do Ano Novo. Interessante como essas duas bênçãos não dependem somente de fatores externos, como vida digna; relações mais humanas e baseadas na justiça – “O fruto da justiça será a paz” (Is 32,17), o que significa que onde há injustiça não tem como haver paz; acesso igualitário aos serviços públicos etc. Saúde e paz dependem também de um fator interno: a sintonia, a coerência com a nossa essência, com a nossa verdade. Mais uma vez é importante lembrar: quanto mais distantes da nossa essência, da nossa verdade, mais doentes ficamos (física e emocionalmente falando) e mais sem paz nos sentimos.  
Um chavão para todo novo ano que nasce é este: PRÓSPERO ANO NOVO! Na noite do dia 31 de dezembro, milhares de fiéis lotam igrejas para clamar ao Senhor por prosperidade. A respeito disso, duas palavras bíblicas podem nos dar discernimento. A primeira é do livro dos Provérbios: “Afasta de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem riqueza e nem pobreza, concede-me o meu pedaço de pão; não seja eu saciado, e te renegue, dizendo: ‘Quem é o Senhor?’ Não seja eu necessitado e roube e blasfeme o nome de meu Deus” (Pr 30,8-9). A segunda é do apóstolo Paulo: “Aprendi a viver em toda e qualquer situação: viver saciado e passar fome; ter abundância e sofrer necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4,11-13). Essas indicações bíblicas falam por si só...
O livro dos Números nos ensina a invocar por três vezes o nome do Senhor, pedindo que Ele nos proteja, nos abençoe, nos guarde, nos ilumine, nos seja favorável, nos mostre a Sua face e nos conceda a paz. Tão importante quanto pedir a bênção de Deus para o novo ano é abraçar a nossa vocação de portadores da bênção de Deus para as outras pessoas: “Seja uma bênção” (Gn 12,2d); “Abençoai os que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis” (Rm 12,14). Da mesma forma, o apóstolo Paulo nos convida a viver a cada dia do novo ano como filhos livres e não como escravos – escravos presos ao ressentimento, ao luto, ao passado, ao rancor, ao sentimento de vingança. Deixemos com que o Espírito Santo confirme a nossa filiação divina e nos lembre em toda e qualquer situação que temos a Deus por Pai. Não estamos neste mundo como órfãos! Deixemo-nos educar, conduzir e proteger pelo nosso Pai.
O Espírito Santo nos foi dado não para nos livrar das dificuldades, mas para nos dar força para enfrentá-las. Permitamos que Ele realize a circuncisão do nosso coração, dando-nos o sentido de pertença total a Deus. Igualmente, que Ele testemunhe ao nosso coração que temos a Jesus como Salvador. Enfim, que ao virarmos a última página do ano de 2014, possamos dizer: Graças, Pai!

                                                                  Pe. Paulo Cezar Mazzi  


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

SOZINHO(A) OU EM COMUNHÃO?

Missa da Sagrada Família. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a.; Colossenses 3,12-21; Lucas 2,22-40.

            A vida nasce da comunhão, não da solidão. Cada um de nós nasceu porque houve uma comunhão entre duas pessoas, entre um homem e uma mulher. É verdade que essa comunhão às vezes acontece apenas na carne, não no espírito; uma comunhão imperfeita, incompleta, parcial, movida pelo instinto, sem a presença do amor; uma comunhão reduzida ao desejo sexual, mas não aberta ao afeto. Seja como for, nossa existência nasceu de uma comunhão, e a questão é saber se nossa sobrevivência também depende disso.
Sobreviver sem comunhão pode até ser possível. Não são poucas as pessoas que hoje escolheram viver sozinhas, que romperam com sua família, que escolheram a rua como lar, porque sua casa nunca foi um lar para elas. Não são poucas as pessoas para as quais “família” é uma palavra sem sentido, ou então sinônimo de conflito, de desentendimento, de rejeição. Infelizmente, para algumas pessoas viver na família se tornou insustentável, e a única forma que encontraram de sobreviver foi vivendo sozinhas.
São marcantes as palavras da serpente ao Pequeno Príncipe: “Onde estão os homens?”, perguntou o principezinho. “A gente está um pouco só no deserto”. “Entre os homens também”, disse a serpente (Exupéry, O Pequeno Príncipe, p.60). Sim. É possível sentir-se só, mesmo estando entre as pessoas, mesmo tendo uma família. Estar no seio de uma família por si só não significa não experimentar solidão. No entanto, quando nos sentimos sós, mesmo dentro de casa, precisamos nos perguntar: até que ponto eu estou sendo responsável pelo meu isolamento, pela minha solidão?
Muitas vezes, por trás do isolamento e da solidão de um dos membros da família está a comunhão com um alguém estranho à família: a “colega” de trabalho ou de faculdade do pai, o “colega” de trabalho ou de faculdade da mãe, a namorada do filho ou o namorado da filha, pessoas que, com a sua personalidade dominadora e com seu psiquismo doentio, transformam o outro num fantoche em sua mãos, quebrando a saudável comunhão que ele tinha com sua família.
O livro do Eclesiástico deixou claro que a presença do outro é benéfica na minha vida na medida em que respeita as minhas raízes: honrar o pai, respeitar a mãe, ampará-los na velhice, ser compreensivo com eles, sobretudo se vierem a perder a lucidez. Quando damos um corte em nossa convivência familiar para agradar à outra pessoa, estamos sendo tão insensatos quanto uma árvore que decide cortar as suas raízes porque se julga crescida e forte o bastante para se sustentar por si só.
Sabendo que a convivência em família é desafiadora, o apóstolo Paulo nos lembra as atitudes que precisam estar presentes em nosso dia a dia, sobretudo com as pessoas de casa: misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência; a esposa dedicando-se ao marido, o marido amando a esposa e não sendo grosseiro com ela, os filhos obedecendo em tudo aos pais, e os pais não intimidando os filhos. No fundo, trata-se de um cuidado para com o relacionamento com o outro, cuidado que nasce do amor. Quem ama, cuida.
O Evangelho de hoje nos revela que a Pessoa principal da nossa casa é Deus, e que o relacionamento que mais precisa ser cuidado é com Ele. Com quarenta dias de vida, José e Maria vão ao templo consagrar o filho a Deus, um sinal claro de que todo filho é um dom de Deus e não um direito dos pais, um dom que precisa ser diariamente colocado, consagrado, restituído às Mãos d’Aquele que confiou este filho aos cuidados provisórios dos pais. A presença de Simeão e Ana, duas pessoas idosas, questiona o lugar que os idosos ocupam em nossa casa. São cuidados, ouvidos, amados? A comunhão do novo com o velho é necessária e saudável, para nos lembrar que todos nós um dia envelheceremos, e a vida costuma devolver a nós a maneira como tratamos os outros.
Simeão faz duas profecias, uma a respeito de Jesus, e outra, de Maria. Eis a primeira profecia: “Este menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos...”. O mesmo Evangelho que pode reerguer uma família que nele crê e por ele dirige sua vida, pode também derrubar a família que decide afastar-se dos seus conselhos e guiar-se segundo a mídia. A segunda profecia é esta: “Quanto a ti, uma espada de dor te traspassará a alma”. Tanto a pessoa que decide conviver, se casar e ter filhos, quanto aquela que decide ficar só, o faz para ser feliz e não para ter dor. No entanto, viver dói. Quem se contenta em apenas sobreviver, provavelmente enfrentará menos dor, mas quem decide viver intensa e profundamente terá que lidar com a dor. Aliás, só sente dor quem está vivo.
Se existe um problema que afeta muitas famílias hoje, a questão não é o relacionamento em si, mas a dor que ele pode gerar na pessoa. Inúmeras propagandas de produtos mostram famílias onde todos estão sorrindo. É a falsa ideia de que uma vida feliz não tem espaço para a dor. Ora, se nenhuma vida humana é gerada sem comunhão, nenhuma vida nasce sem dor. No seio de uma família, a dor só aparece quando algo novo quer nascer, quando uma pessoa ou todas daquela casa precisam aprender algo que ainda não sabem a respeito de si mesmos ou do outro. “O homem é um aprendiz; a dor é o seu mestre” (Alfred de Musset).  
Hoje pedimos que o Espírito de Deus visite cada família, cada ser humano, ajudando-o a revisitar as suas raízes (pais, avós), derramando Seu bálsamo sobre todo relacionamento ferido, restaurando o que foi rompido, transformando o muro da solidão na ponte da comunhão, voltando o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais, do marido para a esposa e da esposa para o marido, aproximando as gerações (avós e netos), reerguendo cada família que tombou por ter se afastado do Evangelho, fortalecendo-nos e dando-nos sabedoria para lidar com a dor que é inerente ao bem estar do relacionamento e, sobretudo, direcionando o coração de cada família para Deus, o Pai. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi



quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

NASCEU PARA NÓS, NASCEU PARA TODO SER HUMANO

Missa do Natal do Senhor. Palavra de Deus: Isaías 9,1-6; Tito 2,11-14; Lucas 2,1-14.

Uma frase do Evangelho resume para nós o sentido de estarmos reunidos esta noite para celebrar o Natal: “Nasceu para vós um salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11). Para quem não sente a necessidade de um salvador, para quem não sente que precisa ser salvo, não há porque celebrar o Natal. O Natal só tem sentido em ser celebrado por quem tem consciência de que precisa de um Salvador.
Nós precisamos ser salvos: salvos do nosso egoísmo e do nosso individualismo; salvos dos nossos medos, dos nossos vícios e dos nossos pecados; salvos da nossa cegueira, dos nossos enganos, das nossas mentiras; salvos das injustiças que cometemos contra o próximo e que contribuem para a desumanização à nossa volta. Nossas famílias precisam ser salvas: salvas do desemprego, das doenças, do distanciamento, dos desentendimentos ou do esfriamento nos relacionamentos; salvas das agressões e das brigas; salvas dos tormentos causados pela bebida e pelas drogas. A humanidade precisa igualmente ser salva: salva do mercado desumano que tudo reduz ao lucro; salva do terrorismo, da fome, das epidemias, das guerras etc.
“Nasceu para vós um salvador”. Jesus nasceu como Salvador de todo ser humano. Isso está claro nas palavras do apóstolo Paulo, ao nos afirmar nesta noite que “a graça de Deus se manifestou, trazendo salvação para todos os homens” (Tt 2,11), isto é, para todas as pessoas. Jesus nasceu para todos porque o Pai ama e quer salvar a todos (cf. 1Tm 2,4). Mas o próprio Evangelho desta noite, ao narrar o nascimento de Jesus, afirma que “não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7). Muitas pessoas não têm consciência da salvação que é o próprio Jesus porque ainda não foram alcançadas pela luz e pela alegria do seu Evangelho. Além disso, não é no coração de todos que Jesus encontra lugar para nascer e se manifestar como Salvador.
Santo Agostinho disse: “Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti”. Se não há lugar em nossa vida para Jesus nascer a cada dia, nunca O sentiremos como nosso verdadeiro e único Salvador. É por isso que o apóstolo Paulo afirma que, a mesma graça de Deus, que veio trazer a salvação para todos os homens, “nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões mundanas e a viver neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade” (Tt 2,12). Abraçar a salvação que o Pai nos oferece na pessoa de seu Filho Jesus implica em modificar aquilo que em nossa vida está em contradição com o Evangelho, que “é força de Deus para a salvação para todo aquele que crê” (Rm 1,16).
“Para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,1). Essas palavras do profeta Isaías, escritas oito séculos antes de Jesus nascer, foram retomadas por Zacarias, pai de João Batista, ao anunciar o nascimento de Jesus como “Sol nascente que nos veio visitar, para iluminar os que se encontram nas trevas e na sombra da morte estão sentados” (Lc 1,78-79). Nós não podemos celebrar o Natal ignorando tantas pessoas à nossa volta que se encontram nas trevas e na sombra da morte: idosos esquecidos por seus próprios familiares, inúmeros irmãos nossos que se encontram desempregados, pessoas enfermas em suas casas ou nos hospitais, adolescentes e jovens que se encontram debaixo da sombra das drogas, famílias feridas pela separação ou pela violência do mundo moderno, inúmeras pessoas massacradas pelo terrorismo etc.
Todo Natal traz consigo um apelo: para que aqueles que se encontram nas trevas e na sombra da morte sejam visitados pela luz de Cristo, para que as botas de tropa de assalto e os trajes manchados de sangue sejam queimados e devorados pelas chamas (cf. Is 9,4), é preciso que cada um de nós se torne portador da luz de Cristo, portador da chama do seu amor pela humanidade, amor capaz amar até o fim, de curar toda e qualquer ferida, de derrubar muros e construir pontes, de procurar e salvar o que estava perdido; numa palavra, amor capaz de fazer passar da morte para a vida. Então, todo ser humano saberá que nasceu para si um Salvador, que é o Cristo Senhor. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

DEUS NÃO DESISTE DO SER HUMANO

Missa do 4º. dom. do advento – Palavra de Deus: 2Samuel 7,1-5.8b-12.14a.16; Romanos 16,25-27; Lucas 1,26-38.


No último dia 16, nove integrantes do Talibã, movimento fundamentalista islâmico, entraram numa escola do Paquistão administrada pelo Exército e mataram 132 crianças e adolescentes. O porta-voz do Talibã justificou o ataque, dizendo: “Queremos que eles (os pais) sintam a nossa dor”. Nós não precisamos visitar o Oriente Médio para nos dar conta do quanto o ser humano tem se desumanizado, seja por causa das injustiças sociais, da luta pelo poder ou do fanatismo religioso. Aqui mesmo no Brasil, devido à violência, à injustiça, à impunidade e à corrupção, é cada vez maior o número de pessoas que dizem não acreditar mais no ser humano.  
Embora a própria Escritura afirme que Deus também chegou ao ponto de ter se arrependido de criar o ser humano (cf. Gn 6,6), porque “viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo projeto de seu coração” (Gn 6,5), o Evangelho deste 4º. domingo do advento narra o momento na história da salvação em que Deus decide enviar seu Filho ao mundo, permitindo que Ele se fizesse pessoa humana no seio de Maria. Se por estar ferido e querer se vingar o ser humano quer que o seu semelhante sinta a sua dor, Deus escolheu se fazer humano por dois motivos: primeiro, para mostrar que Ele veio redimir o ser humano da sua dor; segundo, porque Ele quis assumir em Si mesmo a dor de cada ser humano. Decidindo gerar seu Filho no ventre de Maria, Deus revela que nunca desistirá do ser humano, quem quer que seja ele.
“O anjo Gabriel foi enviado por Deus... a uma virgem” (Lc 1,26). A iniciativa de salvar a humanidade é sempre de Deus, e o caminho que Ele escolhe para realizar a salvação é sempre surpreendente: uma virgem se tornará mãe, sem ter tido relação com um homem. A ausência do homem é proposital: Deus quer deixar claro que a obra é d’Ele e não nossa. Por isso, logo que assumiu seu ministério, o Papa Francisco disse que nós precisamos nos deixar surpreender por Deus. Ele entra em nosso cotidiano, como entrou no de Maria, e sua proposta provoca uma reviravolta em nossa vida, em nossos planos humanos, limitados pela visão estreita que temos de nós mesmos e da vida.
Diante da perturbação de Maria com essa visita inesperada de Deus em sua vida, o anjo lhe diz: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,30). O medo tem tomado cada vez mais conta do nosso coração. O termômetro do medo se chama ansiedade, uma ansiedade que surge em nós sempre que, consciente ou inconscientemente, nos sentimos ameaçados por algum perigo, real ou imaginário. Sentimos medo do ser humano, medo do mundo em que vivemos, medo do futuro, medo de fracassarmos, de não darmos conta da vida. Mas o Evangelho diz que Deus está conosco, que Ele acredita em nós, que Ele não desistiu da humanidade, mas quer salvá-la a partir da nossa abertura à Sua graça.
            “Eis que conceberás e darás à luz um filho...” (Lc 1,31). Apesar da ideologia do aborto, a qual afirma que cabe à mulher decidir sobre o seu corpo – como se o filho que ela está gerando fosse um órgão do seu corpo e não uma vida, uma pessoa; apesar da esterilidade; apesar de tantos filhos desejados, mas nunca gerados e de tantos filhos gerados, mas não desejados; apesar do medo de se gerar filhos num mundo como o nosso; apesar de todos os entraves físicos, psicológicos ou emocionais que estancam a vida dentro de nós, Deus acredita em nossa fecundidade; Ele sabe que somos capazes de ir além, de transcender o momento presente e de nos tornar grávidos de um futuro que ainda não se pode ver, mas que se deve esperar.
“O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (Lc 1,35). Quanto mais nos sentimos cobertos pela sombra do terrorismo, da violência, da injustiça e da maldade dos homens, mais precisamos nos refugiar em Deus, como faz o salmista: “Piedade de mim, ó Deus, tem piedade de mim, pois eu me abrigo em ti; eu me abrigo à sombra de tuas asas, até que passe o perigo” (Sl 57,2). O Espírito Santo é espírito de força, de fecundidade, de luz, de alegria, de vida. Ele nos faz experimentar que, verdadeiramente, “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37). Ele nos faz cantar: Por que tenho medo, se nada é impossível para ti? (3x) Por que ficar triste, se nada é impossível para ti? (3x) Nada é impossível para ti! (2x) Porque duvidar, se nada é impossível para ti? (3x) Nada é impossível para ti! (2x) (Adriana, Nada é impossível para ti).
            Enfim, se a iniciativa é de Deus, a resposta é nossa. E Maria responde: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” (Lc 1,38). Nós estamos aqui como servos do Senhor ou como pessoas que querem se servir do Senhor? Quando ouvimos a sua Palavra, esperamos até que ela se cumpra em nós? Permitimos que a Palavra se cumpra em nós? O Pai poderia ter enviado seu Filho já adulto, mas escolheu este longo caminho da Encarnação: a fecundação, a gestação, o parto etc., até que Jesus se tornasse adulto e começasse o anúncio do Evangelho. Todo esse longo e demorado processo é um questionamento para cada um de nós: Eu confio no tempo de Deus para mim? Deixo-me surpreender por Ele? O que fala mais alto em mim: a crença de que a humanidade não tem mais jeito ou a certeza de que Deus nunca desiste do ser humano? Permito que o Espírito Santo me fecunde com a Sua graça? Aceito ficar debaixo da Sua sombra o tempo que for necessário? Acolho a Palavra de Deus de modo a esperar nela e a permitir que se realize em minha vida

                                            Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

MAIS PERTO DA SUA VERDADE, MAIS PERTO DA SUA ESSÊNCIA

Missa do 3º. dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 61,1-2a.10-11; 1Tessalonicenses 5,16-24; João 1,6-8.19-28.

“Quem é você?... O que você diz de si mesmo?” (Jo 1,19.22). As mesmas perguntas que os sacerdotes e levitas dirigiram a João Batista hoje são dirigidas a cada um de nós: ‘Quem é você?’ ‘Como você se vê?’ ‘O que você pensa de si mesmo(a)?’ Porém, considerando que nenhuma pessoa nasce pronta, mas vai se fazendo a cada dia, essas perguntas se desdobram em outras: ‘O que você tem se tornado?’ ‘Você se tornou a pessoa que gostaria de ser?’ ‘Você é feliz em ser quem é?’ ‘Você é a mesma pessoa dentro e fora de casa, dentro e fora da Igreja, quando está com os outros e quando está só?’.
Antes de João Batista ser questionado sobre a sua identidade, uma afirmação bíblica foi feita a respeito dele: “um homem enviado por Deus” (Jo 1,6). Esta afirmação diz que a nossa existência não é fruto do acaso. Você e eu existimos porque fomos enviados por Deus. Mas, enviados para quê? “Ele veio... para dar testemunho da luz, para que todos chegassem à fé por meio dele” (Jo 1,7). Cada um de nós é único e está no mundo para ser um sinal único que aponta para a luz, que é Cristo, para que as outras pessoas que convivem conosco possam se encontrar com a Verdade, que é o próprio Cristo, Verdade que liberta o ser humano das mentiras do mundo e do seu próprio autoengano: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).
Se, por acaso, neste momento você se pergunta: ‘Por que estou aqui, nesta casa, neste local de trabalho, nesta escola ou faculdade, nesta cidade etc.?’ lembre-se: é para que as pessoas que convivem com você possam chegar à fé, possam encontrar-se com a verdade de Cristo que liberta da mentira e do autoengano, e faz com que cada ser humano aproxime-se da sua verdadeira essência.
Antes de responder quem ele era, João precisou tomar consciência de quem ele não era: “Eu não sou o Messias” (Jo 1,20). Quantos de nós desconhecemos nossa própria essência, e nos vemos a partir dos olhos dos outros: dos pais, dos amigos, do pregador, da mídia etc.? Quantos têm uma imagem distorcida de si, ou no sentido de engrandecer-se, ou no sentido de diminuir-se? Quantos se definem a partir de um aspecto da vida, sem considerar o todo? Nós começamos a descobrir nossa verdadeira identidade quando começamos a ter coragem de questionar a ideia errada que temos de nós mesmos, ou que os outros sempre tiveram de nós: ‘Eu sou o que eu quero ser ou sou o que os outros querem que eu seja?’ ‘O que determina o rumo da minha vida é o meu passado ou as escolhas que eu faço no meu presente?’ ‘Eu sou doente ou estou doente?’ ‘Eu sou uma pessoa problemática ou estou com problemas, com os quais preciso lidar?’.
“O que você diz de si mesmo(a)?” A nossa cura, a nossa libertação, a nossa paz e a nossa alegria dependem da resposta a esta pergunta tão fundamental, pergunta que nos amedronta e diante da qual fazemos de tudo para não nos colocar... Mas esta pergunta quer apenas nos ajudar a dar passos na direção da nossa verdadeira essência. Talvez você se pergunte: ‘Qual é a minha essência?’ ‘Qual é a minha verdade?’ A resposta está aqui: quanto mais você se sente alegre e em paz com as suas atitudes e com as suas escolhas, mais você está próximo(a) da sua essência, da sua verdade.  
João entendeu qual era a sua essência, a sua verdade: “Eu sou a voz...”. Ser voz é ser canal para que a Palavra possa chegar aos ouvidos e ao coração dos que precisam ouvi-La. Jesus é, por excelência, o Enviado do Pai, o Ungido do Senhor, Aquele que veio trazer “a boa notícia aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção para os cativos e a liberdade para os que estão presos” (Is 61,1). Mas você e eu somos cristãos, ungidos pelo mesmo espírito de Cristo. Apesar das nossas imperfeições, precisamos fazer o que está ao nosso alcance para que as pessoas cheguem à fé por meio de nós (cf. Jo 1,7).
Terminemos esta reflexão considerando alguns apelos do apóstolo Paulo para nós: “Não apagueis o espírito!” (1Ts 5,19). O Espírito de Deus é o “Espírito da Verdade” (Jo 14,17; 15,26; 16,13). Não apagá-Lo significa não nos afastar da nossa verdade, por mais que nos custe permanecer nela. Não apagar o espírito significa também não esfriar em nossa vida de oração. “Examinai tudo e guardai o que for bom” (1Ts 5,21). A Verdade do Espírito deve ser o critério para nos guiar em nossas escolhas e decisões, a fim de nos mantermos fiéis à nossa essência. “Afastai-vos de toda espécie de maldade!” (1Ts 5,22), não apenas daquilo que é mal aos nossos olhos, mas sobretudo daquilo que é mal aos olhos de Deus. “(...) que tudo aquilo que sois – espírito, alma, corpo – seja conservado sem mancha alguma para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo!” (1Ts 5,23). Que todo o nosso ser permita-se ser curado, redimido e liberto pelo Espírito de Deus, a fim de irradiarmos a luz da sua Verdade aos que convivem conosco.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O CAMINHO EXISTE, MAS PRECISA SER DESOBSTRUÍDO

Missa do 2º. dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 40,1-5.9-11; 2Pedro 3,8-14; Marcos 1,1-8.

            Quantas vezes você já se encontrou numa rua sem saída? Quantas vezes, no labirinto da vida, você pensou que havia achado a saída, mas se deparou com uma nova parede? Talvez você tenha desistido de caminhar, porque chegou à conclusão de que não existe saída ou possibilidade de mudança, não existe mais caminho a ser percorrido. No entanto, neste segundo domingo do advento, a Palavra do Senhor afirma que existe um caminho para a cura e para a libertação; um caminho para o reencontro e para a restauração; um caminho para a mudança e para a transformação. Existe um caminho pelo qual Deus pode vir a nós, mas este caminho deve ser preparado por nós.
            “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada do nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas” (Is 40,3-4a). Deserto e solidão são situações onde temos que nos deparar conosco mesmos, reconhecendo que o mal e a perversão também moram em nós. Deserto e solidão são situações onde não podemos fugir de nós mesmos, daquela verdade que à primeira vista parece insuportável, mas que temos que aceitar que é a nossa verdade. Deserto e solidão representam tudo aquilo com o qual eu devo lidar, eu e não outra pessoa.
            Para uma geração como a nossa, que tem se habituado não tanto a buscar Deus, mas apenas as consolações de Deus, Isaías nos lembra que a consolação só é alcançada depois do confronto com a desolação. O nosso encontro com Deus só se dá quando temos a coragem de descer ao porão da nossa casa interior, visitar o deserto da nossa desolação e suportar o medo, o vazio e a dor da nossa solidão. Por quê? Porque a nossa ferida é profunda, e não há outra forma de Deus curá-la, a não ser fazendo uma intervenção “agressiva”, dolorosa, em nós.  
Isaías nos propõe lançar um olhar realista para a estrada da nossa vida. Quantos vales foram abertos e quantos montes foram erguidos nela? Vales são buracos que foram se abrindo e se tornando profundos em nossa vida porque, nos nossos relacionamentos, só retiramos, consumimos, usufruímos e não tivemos o cuidado de repor, de preservar, de revitalizar a relação. Quantos vales hoje separam marido e mulher, pais e filhos, nós e o próximo, nós e Deus? Já os montes são tudo aquilo que pedia para ser enfrentado, mas nós deixamos que se acumulasse dentro de nós – raiva, ódio, ira, mágoa, ressentimento, sede de justiça etc. – e tudo isso acabou por formar um monte que não apenas nos separa do outro, mas nos impede inclusive de vê-lo.  
Para que haja um verdadeiro encontro entre o Senhor e nós, é necessário pôr em ordem a própria vida, endireitando o que está torto e alisando o que está áspero (cf. Is 40,4b). Alguém nasce torto? Alguém nasce áspero? Não. Nós podemos nos tornar tortos ou ásperos pela forma como lidamos com os acontecimentos que marcaram a nossa história de vida. A tortuosidade começa a surgir quando abandonamos a orientação da Palavra de Deus, quando desistimos de pagar o preço da fidelidade e decidimos deixar a vida nos levar para onde ela quiser. A aspereza, por sua vez, é a consequência do fato de termos nos recusado a nos deixar conduzir pelo Espírito de Deus e passado a nos deixar arrastar pela vontade cega do nosso próprio ego, que nos embrutece.  
João Batista foi enviado por Deus como mensageiro, para preparar a humanidade para a primeira vinda de Jesus. Ouvindo João, as pessoas confessavam os seus pecados e eram batizadas. Mas o próprio João disse que Jesus viria realizar não mais um batismo com água, mas o batismo como o Espírito Santo. Se a água pode apenas nos lavar de uma sujeira exterior, o fogo do Espírito tem o poder de penetrar nas profundezas do coração humano e purificá-lo a partir de dentro (cf. Ml 3,1-3). A imagem deste fogo foi mencionada por Pedro ao falar da segunda vinda de Cristo: “(...) os elementos, devorados pelas chamas, se dissolverão, e a terra será consumida com tudo o que nela se fez” (2Pd 3,10).
Todas as estruturas injustas que produzem opressão, sofrimento, humilhação e morte serão consumidas pelo fogo do julgamento de Deus, realizado na pessoa de seu Filho Jesus, que vem para cumprir a promessa do Pai de criar “novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). Por isso, a cada um de nós é dirigido este apelo: não abandonar a esperança na promessa de Deus; se ela ainda não se cumpriu é porque Deus está usando de paciência, pois ele não deseja que alguém se perca, mas quer que todos venham a se converter (cf. 2Pd 3,9). O importante é manter o nosso esforço diário em voltar para o Senhor o nosso coração, esforçando-nos por viver uma vida santa, piedosa, pura e pacífica. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi