quinta-feira, 12 de setembro de 2024

ALIMENTAR REPULSA DIANTE DA DOR OU OUVIR O QUE ELA TEM A DIZER?

 Missa do 24º. Dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 50,5-9a; Tiago 2,14-18; Marcos 8,27-35.

Entre duas possibilidades – ganhar ou perder, ser feliz ou sofrer, ser forte como um leão ou frágil como um cordeiro – dificilmente alguém escolheria a segunda opção. A coisa mais natural do ser humano é fugir da dor, desviar-se de dificuldades e desejar uma vida longe de problemas. No entanto, para cada um de nós, a vida se apresenta como ela é, e não como nós gostaríamos que ela fosse. Viver é lidar com dor, e a melhor forma de entender isso é estar consciente de que “se não está em suas mãos mudar uma situação que te causa dor, sempre poderá escolher a atitude com que encara esse sofrimento” (Victor Frankl).  

Jesus foi uma pessoa feliz e, no entanto, a sua vida nunca foi vivida a partir de uma estratégia calculada para se manter o mais distante possível da dor. Muito pelo contrário; ele sempre foi de encontro à dor de quem sofria – “homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento” (Is 53,3) – e não se desviou da dor que lhe coube enfrentar. Isso fica claro na expressão “eu devo”. Diferente de nós, que na busca do próprio bem-estar nos movemos quase sempre na direção do “eu quero”, Jesus entendeu que o sentido da sua vida estava na fidelidade à missão para a qual Ele veio ao mundo. Por isso, sempre que foi necessário, Ele submeteu o “eu quero” ao “eu devo”.

Sempre que a dor entra em nossa vida, é para nos ensinar algo. O Servo do Senhor entendeu isso, ao afirmar: “O Senhor abriu-me os ouvidos; não lhe resisti nem voltei atrás” (Is 50,5). Quanto mais nós resistimos em aprender, mais a dor se intensifica em nós, e o nosso grande desafio é não voltar atrás, isto é, não abandonar a missão que somos simplesmente porque a fidelidade a essa missão está doendo neste momento. Assim como o Servo do Senhor, precisamos fortalecer a nossa confiança no fato de que “o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo” (Is 50,7). Assim como o salmista, devemos nos manter firmes na oração, repetindo quantas vezes for preciso: “Prendiam-me as cordas da morte, apertavam-me os laços do abismo; invadiam-me angústia e tristeza: eu então invoquei o Senhor ‘Salvai, ó Senhor, minha vida!’... Libertou minha vida da morte, enxugou de meus olhos o pranto e livrou os meus pés do tropeço” (Sl 115,3-4.8).

Sempre que a dor entra em nossa vida, traz consigo uma pergunta: “Quem é Jesus, para você?”: ele é o Leão no qual você se espelha para ser uma pessoa forte e vencedora, ou o Cordeiro que te convida a abraçar o seu “eu devo”? Quando Jesus tornou os discípulos conscientes do seu “eu devo”, Pedro o tomou “à parte e começou a repreendê-lo” (Mc 8,32). Nós também repreendemos Deus, quando Ele permite a dor em nossa vida. Quem Ele pensa que é, para nos tirar aquilo que nos deu? Por que Ele não elimina o mal do mundo uma vez por todas? Como pode um Deus que é amor deixar a humanidade exposta a tanta dor, como atualmente? Por que Ele escolheu deixar o seu Filho único morrer numa cruz, ao invés de destruir todo tipo de cruz que faz a humanidade sofrer?   

Diante da atitude de Pedro, que estava dizendo indiretamente aos outros discípulos que é preciso desviar-se da dor da cruz o quanto for possível, Jesus foi firme com ele: “Vá para trás de mim, Satanás!” – o lugar do discípulo não é na frente do Mestre, dizendo como Ele deve proceder, mas atrás, aprendendo com Ele como lidar com a dor da cruz. Desviar-se do seu “eu devo” em nome de uma felicidade egoísta, de um prazer momentâneo, de um bem-estar ilusório, é cair nas mentiras de Satanás, o qual nos promete uma vida sem dor. Toda propaganda de uma vida sempre feliz, sem nenhuma dor, é satânica, diabólica, mentirosa.

Jesus nos deixa perplexos, ao dizer para Pedro: “Tu não pensas como Deus, e sim como os homens” (Mc 8,33). Para Deus, a vida comporta luz e sombra, alegria e tristeza, ganho e perda, vitória e fracasso; para nós, homens, a vida só vale a pena quando o polo negativo é eliminado e só desfrutamos do positivo. Para Deus, mais importante do que ter um “como” viver – o máximo de facilidade e o mínimo de dificuldade – é ter uma “razão” para viver. Em outras palavras, o sentido da vida não está em não sofrer, mas em manter-se fiel à tarefa que a vida está lhe pedindo para abraçar neste momento, ainda que isso comporte dor para você. Parafraseando Nietzsche, quem tem uma razão para viver, quem tem uma missão a cumprir, quem tem um sentido para viver, suporta qualquer dor que essa missão comporte. Foi assim que Jesus enfrentou a cruz. É assim que Ele convida você a enfrentar a sua.  

            

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

FECHAR-SE É ADOECER; ABRIR-SE É CURAR-SE!

 Missa do 23º dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 35,4-7a; Tiago 2,1-5; Marcos 7,31-37.

 

É muito conhecida a figura dos três macaquinhos: um tapando os olhos; outro, os ouvidos, e o outro, a boca. Ela representa um provérbio budista: “Não veja o mal, não ouça o mal, não fale o mal”. Se esse ensinamento tem validade para não sermos propagadores do mal na sociedade humana, a imagem dos três macaquinhos pode hoje representar também o mal do individualismo, do fechamento sobre si mesmo e da indiferença para com o próximo: “Não veja o próximo, não ouça o próximo, não fale com o próximo”, uma atitude que nos adoece e nos desumaniza.

A cura deste homem surdo, que falava com dificuldade, nos recorda que há uma relação direta entre ouvir e falar: só aprende a falar quem consegue ouvir. Exatamente porque estamos no mês da Bíblia, é oportuno recordar que o discípulo é aquele que primeiro escuta a Palavra de Deus, para depois se tornar capaz de levar uma palavra de conforto à pessoa abatida: “O Senhor Deus me deu língua de discípulo para que soubesse levar ao cansado uma palavra de conforto. Toda manhã ele me desperta, sim, desperta o meu ouvido para que eu ouça como os discípulos” (Is 50,4).

Já foi dito que, no mundo atual, ninguém escuta ninguém. Consequentemente, cada vez mais ninguém fala com ninguém. O maior estrago acontece nas famílias: seja devido aos horários de trabalho e de estudo, seja devido à correria da vida, não existe tempo dedicado à escuta: pais não escutam seus filhos e estes não escutam seus pais, mesmo porque cada um, no momento em que poderiam dialogar, “vai” para o seu celular, substituindo o escutar e o falar com aquele que está no mesmo ambiente por escutar e falar com quem está fora do ambiente.

A primeira cura de que necessitamos é aquela que se refere à escuta: escutar nossa própria consciência, onde Deus nos fala; escutar os sentimentos que habitam em nosso coração; escutar o nosso corpo, que quando não é ouvido por bem, se faz ouvir por mal (doença); escutar as pessoas com as quais convivemos, cujas atitudes comunicam muito mais do que as palavras; enfim, escutar a vida que nos fala por meio dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, precisamos tapar os ouvidos para tantas coisas que nos adoecem, nos fazem mal e nos afastam da nossa própria verdade.  

A segunda cura de que necessitamos é aquela que se refere ao falar. Se é verdade que as palavras podem ferir, também é verdade que podem curar. Às vezes o silêncio é uma forma de agredir o outro. Alguém disse: “Conversem! Conversem sempre! Sobre tudo! Porque o silêncio são pedras, e pedras se tornam muros, e muros dividem”. É preciso comunicar o que se sente, e não esperar que o outro adivinhe o que estamos sentindo. “A cura vem pela fala” (Freud). Importante lembrar também que o falar não é feito somente através de palavras, mas de gestos, atitudes, toques: abraçar, beijar, tocar, acariciar...

            Para curar o homem surdo, que falava com dificuldade, “Jesus afastou-se com o homem, para fora da multidão” (Mc 7,33). Embora o motivo principal seja o fato de que Jesus não queria transformar aquela cura num “espetáculo” para chamar a atenção sobre si mesmo, há aqui uma indicação importante para nós: a cura da minha surdez começa quando eu me afasto do barulho externo da multidão de vozes que fala comigo, impedindo-me de ouvir o meu próprio interior. A multidão de mensagens, de imagens e de vídeos das redes sociais, além de nos intoxicar, nos torna surdos para a voz da sanidade que precisa ser ouvida dentro de nós e nos ajudar a nos concentrar naquilo que de fato é essencial para a nossa vida.   

            Após afastar-se da multidão com o homem, Jesus “colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele” (Mc 7,33). Jesus tocou nos ouvidos e na língua do homem que não ouvia e praticamente não falava. A vida de um relacionamento começa a morrer, começa a atrofiar, quando não existe mais o toque. Nunca como hoje nossos dedos tocam tanto em telas, mas não nas pessoas com as quais convivemos. Nós nos esquecemos de que precisamos ser tocados para saber que existimos.

Eis a terceira atitude de Jesus: “Olhando para o céu, suspirou e disse: ‘Efatá!’, que quer dizer: ‘Abre-te!’ Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade” (Mc 7,34-35). O olhar de Jesus para o céu nos lembra que para Deus nada é impossível. Como afirmou o salmista hoje: o nosso Deus “faz justiça aos que são oprimidos; ele dá alimento aos famintos, é o Senhor quem liberta os cativos. O Senhor abre os olhos aos cegos o Senhor faz erguer-se o caído” (Sl 146,7-8). Através de seu Filho Jesus, o Pai veio sanar a criação, adoecida pelo pecado; Ele veio pronunciar sobre tudo o que está fechado em nós o seu “Abra-se!”.

“Efatá!”; “Abra-se!”. Não se feche na sua dor, na sua solidão, no seu isolamento. Abra-se àquilo que Deus está lhe dizendo, àquilo que a vida está lhe chamando a realizar! Abra-se para ouvir as pessoas à sua volta! Abra-se para falar não só o que você sente, mas também para levar palavras de conforto à pessoa cansada, abatida, deprimida: “Dizei às pessoas deprimidas: ‘Criai ânimo, não tenhais medo!’” (Is 35,4). Abra-se ao amanhã, ao futuro, à esperança, àquilo que Deus deseja realizar em você! Não se feche na sua dor, mas mantenha o seu horizonte aberto àquilo que a vida está lhe trazendo. Não se feche em si mesmo, mas abra-se a tantas pessoas que estão precisando dos seus ouvidos e das suas palavras!

  

Pe. Paulo Cezar Mazzi