quinta-feira, 31 de agosto de 2023

FELICIDADE DIABÓLICA

 Missa do 22º dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 20,7-9; Romanos 12,1-2; Mateus 16,21-27.

 

            “A dor e o sofrimento, assim como a morte, devem ser eliminados da existência humana”. Esse tipo de discurso está presente na ciência, nas propagandas mentirosas de novos medicamentos da indústria farmacêutica, nas teorias de psicologias baratas de felicidade e, sobretudo, nas pregações de muitos falsos profetas do nosso tempo. A verdade é que todo ser humano tem uma repulsa natural diante da dor, do sofrimento e da morte. Sabendo disso, o mercado vende livros, remédios, aparelhos e qualquer coisa que possa manter as pessoas escravas da ilusão de que é possível passar pela vida sem terem que sofrer. E, no entanto, nunca como hoje tivemos uma humanidade tão doente, uma vida tão atribulada e pessoas tão incapazes de lidar com a dor e o sofrimento. 

            O evangelho da semana passada terminou com essas palavras: “Jesus proibiu severamente aos discípulos de falarem que ele era o Cristo (Messias)” (Mt 16,20). Qual a razão dessa proibição “severa” por parte de Jesus? Uma só: a expectativa ilusória de que o Messias viria ao mundo para libertar definitivamente o seu povo de todo tipo de sofrimento. Essa expectativa aparece hoje claramente na pessoa de Pedro que, ao tomar consciência de que Jesus, o Cristo, devia “sofrer muito, ser morto e ressuscitar no terceiro dia”, rejeitou imediatamente essa verdade: “Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo, dizendo: ‘Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isso nunca te aconteça!’” (Mt 16,22).

            Os papéis se inverteram! Ao invés de Pedro orientar-se na vida pela palavra de Jesus, achou-se no direito de “repreender Jesus”! “Por acaso dirá a argila àquele que a molda: ‘Que estás fazendo? A tua obra não está completa!”? (Is 45,9). Não foram poucas as vezes – e nem o serão! – em que nós repreendemos Deus por Ele não impedir a dor em nossa vida. A versão moderna da repreensão de Pedro: “Deus não permita tal coisa!” é: ‘Deus criou você para ser feliz, para vencer, para ser uma pessoa bem sucedida!’. Mas, será mesmo que a única razão pela qual nascemos é para sermos felizes, entendendo felicidade como ausência total de dor, de sofrimento e de morte? Deixemos Jesus responder...

            “Vai para longe, satanás!” (Mt 16,23). Segundo Jesus, toda pessoa que entende que a vida só vale a pena quando se pode ser feliz e não se tem que lidar com nenhum tipo de sofrimento, essa pessoa é satânica, diabólica, justamente porque o diabo é o pai da mentira, e a maior mentira que existe é fazer propaganda de uma vida em que não haja possiblidade alguma de dor ou de sofrimento. Portanto, tudo o que o mundo vende como promessa de felicidade constante e ausência de dor – remédio, tecnologia, igreja ou religião – é satânico, diabólico, porque mentiroso!

            O grande erro de Pedro, e da maioria de nós, é este: “Tu não pensas as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens!” (Mt 16,23). Os homens entendem a vida como busca de prazer e de felicidade, vivendo em função de si mesmos, sem se importarem com os outros; Deus entende a vida como doação, como o abraçar uma tarefa em função do bem da humanidade, ainda que tal tarefa comporte algum tipo de dor, de sofrimento. A pergunta que move o ego do ser humano é: “Onde está a minha felicidade?”. A pergunta que move o coração de Deus é: “Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9). Enquanto os homens entendem que a vida só vale a pena se não houver nela nenhum tipo de sofrimento, Deus entende que o sentido da vida está em você aprender a enfrentar o sofrimento que faz parte da sua vocação, isto é, da tarefa para a qual você nasceu: tornar a humanidade melhor com a sua própria existência.

            Tenhamos consciência disso: o mundo em que vivemos nos colocou a todos debaixo da ditadura da felicidade, segundo a qual, você tem que estar feliz 24 horas por dia. Em nome dessa ditadura, os pais procuram agradar os filhos, ao invés de educá-los. Esses filhos, por sua vez, sendo constantemente poupados de frustração, se tornarão adultos incapazes de lidar com a vida, o que fará deles pessoas potencialmente suicidas. Tenhamos consciência de que a dor e o sofrimento nem sempre serão uma opção em nossa vida; opção será sempre a liberdade que temos de escolher como vamos lidar com eles. Enfim, tenhamos consciência do que acabou de nos dizer o apóstolo Paulo: “Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus” (Rm 12,2). A vontade de Deus não é que você sofra, mas que você não fuja do sofrimento que lhe cabe enfrentar como parte da sua história de vida; sobretudo, como consequência da sua fidelidade à verdade, à justiça e à sua própria vocação.  

Pe. Paulo Cezar Mazzi 


quinta-feira, 24 de agosto de 2023

A PERGUNTA FUNDAMENTAL

Missa do 21º dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 22,19-23; Romanos 11,33-36; Mateus 16,13-20.

 

“Quem eu sou, para vocês?”. Essa é a pergunta central da nossa fé: Qual lugar Jesus ocupa em minha vida e qual o significado que ele tem para mim?

Muitas pessoas já conviveram com Jesus por um tempo, na Igreja, mas hoje não estão mais entre nós: algumas abandonaram qualquer tipo de igreja ou religião; outras foram buscar respostas em alguma igreja evangélica, no espiritismo, no islamismo ou em alguma religião oriental. “Tal como sucedeu com os contemporâneos de Jesus, os homens de nosso tempo passaram a seu lado sem compreender seu mistério, e continuam até hoje buscando um Salvador” (Fernando Montes, As perguntas de Jesus, p.71).

Se você digitar no Google a pergunta: “Quem é Jesus?”, ele vai te apresentar cerca de 287 milhões de resultados. Mas a resposta a essa pergunta não está sendo dirigida a um Buscador na Internet, e sim a cada um de nós: “Quem eu sou, para você?”, e tal resposta passa necessariamente pela nossa inteligência, pelos nossos afetos e, sobretudo, pela nossa história de vida. “Quem é Jesus, para mim?”. Qual ideia eu tenho dele? Como eu me relaciono com ele? O que eu espero dele?

Diante da resposta de Pedro: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16), Jesus afirmou: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (Mt 16,17). Em outras palavras, nenhum de nós pode fazer uma experiência profunda de Jesus Cristo em sua vida se tal experiência não nos for dada pelo Pai. Só o Pai pode nos revelar o Filho; só o Pai pode transformar a letra do Evangelho em espírito que faz arder o nosso coração e colocar nossos pés a caminho, seguindo os passos de seu Filho Jesus. “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair” (Jo 6,44). Essa graça de sermos atraídos para a pessoa de Jesus Cristo é algo que necessitamos pedir ao Pai todos os dias.

Pedro respondeu corretamente: Jesus é o Cristo, o Messias, o Salvador do mundo! Mas, não nos enganemos. O evangelho do próximo domingo demonstrará o quanto Pedro está enganado sobre o tipo de Messias que Jesus é. Assim como Pedro, nós também precisamos ser corrigidos em nossa visão sobre Jesus; sobretudo, em nossas expectativas a respeito dele. Em outras palavras, nossa fé na pessoa de Cristo não está isenta de projeções nossas e de expectativas mundanas. Mas isso será assunto para o próximo domingo.

 Onde encontrar a resposta sobre quem é Jesus? Primeiramente, nos evangelhos segundo Mateus, Marcos, Lucas e João. Cada evangelho foi escrito na fé de quem se encontrou com o Filho do Deus vivo para falar à fé de quem hoje está lendo ou ouvindo tal evangelho (cf. Jo 20,31). Em segundo lugar, cada um de nós responderá sobre quem é Jesus para si mesmo olhando sua própria história de vida. Jesus não apenas se fez pessoa humana historicamente, como também prometeu estar conosco todos os dias, até o fim dos tempos (cf. Mt 28,20). Olhando para a nossa história de vida, poderemos perceber a sua presença misteriosa nos orientando, nos corrigindo, nos amparando, nos salvando, através do Espírito Santo.     

 

Oração: Senhor Jesus, tu és para mim a Fonte de Água viva, que me convida a abandonar as minhas cisternas furadas, que não podem conter água (cf. Jr 2,13). Tu és para mim o Vinho novo, capaz de trazer à minha vida uma alegria muito mais profunda do que aquela que experimentei antes de passar por uma grande crise (cf. Jo 2,10). Tu és para mim o verdadeiro Esposo que minha alma busca (cf. Jo 4,29). Tu és para mim o único que pode abrir meus olhos e me fazer enxergar o que preciso enxergar, em vista da minha libertação (cf. Jo 9,38). Tu és para mim a única Porta que me dá acesso ao Pai e à vida plena que Ele quer para todo ser humano (Jo 10,9-10). Tu és para mim Aquele que desafia a minha fé a suportar o silêncio de Deus diante das minhas súplicas (cf. Lc 18,7-8). Tu és para mim Aquele que questiona a minha inversão de valores e me pergunta se a minha fonte de segurança é Deus ou o Dinheiro? (cf. Mt 6,24). Tu és para mim o único que pode me libertar da escravidão do meu pecado (cf. Jo 8,34-36). Tu és para mim Aquele que me tira da indiferença para com quem sofre e me ensina que a verdadeira religião é ter compaixão para com quem sofre (cf. Lc 10,25-37). Tu és para mim Aquele que, mesmo depois da minha infidelidade, não desiste da vocação que me confiou e me convida novamente a Te seguir (cf. Jo 21,15-17.19). Tu és para mim, Senhor Jesus, o único e suficiente Salvador (cf. At 4,12). Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi    

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

ABRAÇAR O COMBATE QUE NOS É PROPOSTO

 Missa da Assunção de Nossa Senhora. Palavra de Deus: Apocalipse 11,19a; 12,1.3-6a.10ab; 1Coríntios 15,20-27a; Lucas 1,39-56.

 

            Existem dois movimentos básicos: subir e descer. De segunda a sexta, as notícias nos falam das Bolsas de Valores do mundo: “Tal Bolsa subiu”, “Tal Bolsa caiu”; “As ações de determinada empresa subiram”, “As ações de determinada empresa caíram”. No campo pessoal, nós gostaríamos sempre de “subir” e nunca “cair”, mas a vida de todo ser humano tem momentos de subida e de descida, de caída. Por isso, é importante nos lembrarmos do Salmo 139,7-8: “Para onde ir, longo do teu espírito? Para onde fugir, longe da tua presença? Se subo aos céus, tu lá estás; se desço ao abismo, ali também te encontro”. Se a nossa vida, sobretudo no campo emocional, se alterna entre subida e descida, precisamos ter a certeza de que, quer nos sintamos fortes e vencedores (subida), quer nos sintamos fracos e derrotados (descida), Deus está conosco em cada momento.

            Embora existam propagandas enganadoras a respeito de Deus como Aquele que quer você sempre subindo na vida, fazendo sucesso e prosperando, a Sagrada Escritura nos fala de Deus como Aquele que tanto pode nos levantar, como nos derrubar, se esse derrubar for necessário para nos corrigir, em vista da nossa salvação: “É o Senhor quem nos humilha e nos exalta” (1Sm 2,7); “Eu, o Senhor, abaixo a árvore alta e elevo a árvore baixa” (Ez 17,24). Enfim, como Nossa Senhora acabou de proclamar: “O Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor... Ele mostrou a força de seu braço... Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes” (Lc 1,49.51.52).

            Manter-nos fiéis a Deus enquanto estamos surfando em cima da onda é muito fácil. O problema é quando somos derrubados pelo próprio Deus do trono da nossa arrogância, porque a nossa subida se deu por meio de métodos sujos, desleais e injustos. Sempre que a nossa subida nos tornar desumanos, presunçosos, nos achando melhores do que os outros, distantes dos que sofrem, colocando nossa segurança em nós mesmos, a vida irá nos derrubar: “Quanto mais alto, maior é a queda” (Harvey Specter). Ser derrubado do trono da nossa presunção é o único remédio amargo que pode nos salvar, porque nos devolve ao Deus que se fez humano, simples e humilde em seu Filho Jesus.

            Ao celebrarmos hoje a elevação de Maria em corpo e alma ao céu, nos recordamos de que não podemos querer subir na vida a qualquer preço, enquanto perdemos a nossa alma, excluindo-nos do céu. Além disso, só é elevado ao céu aquele que, a exemplo de Nossa Senhora, soube descer às profundezas de si mesmo (humildade) e às profundezas sociais, onde se encontravam pessoas que foram sistematicamente derrubadas na vida pelo mundo injusto e desigual em que vivemos.

            A imagem da “mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas” (Ap 12,1) é a imagem nossa enquanto Igreja, destinados à ressurreição (vestidos de sol), à vida eterna (ter lua debaixo dos pés significa viver acima do tempo terreno), chamados a receber a coroa da glória, conforme a Palavra: “Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual você foi chamado” (1Tm 6,12); “Mostre-se fiel até à morte, e eu lhe darei a coroa da vida” (Ap 2,10). Exatamente como a mulher do Apocalipse, nós, cristãos, temos um combate a combater: gerar vida e esperança em um mundo cada vez mais sujeito ao Dragão do mal, que dissemina violência e morte.

            Mas, perguntarão alguns: Que chance nós temos de vencer o Dragão do mal? A resposta está no próprio Apocalipse: a mulher “deu à luz um filho homem”. Antes que o Dragão o atacasse, “o Filho foi levado para junto de Deus e do seu trono” enquanto que “a mulher fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um lugar”. Portanto mulher e filho salvos por Deus! Nós, Igreja, temos a missão de gerar fé em um mundo que deixou de crer não só no poder de Deus perante o mal, mas de crer em valores como bondade, justiça, solidariedade, cuidado com o bem comum etc. Também é missão nossa, enquanto Igreja, gerarmos esperança no coração das pessoas que, cada vez mais facilidade, deixam de esperar, contagiando-se mutuamente com uma doença chamada desesperança, o que também significa falta de sentido para a vida. Se nos é proposto um combate, precisamos abraçá-lo por um único motivo: “Se nós trabalhamos e lutamos é porque pomos a nossa esperança no Deus vivo, Salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé” (1Tm 4,10).  

O corpo que trabalha e luta na terra em favor da justiça, vida e da esperança está destinado à ressurreição (cf. 1Cor 15,43-44). Assim aconteceu com Nossa Senhora, assim acontecerá conosco, se perseverarmos até o fim na prática do bem. Confiemos o nosso combate diário à intercessão daquela que fez a experiência da força do braço de Deus em sua vida e na vida do seu povo: “À Vossa Proteção recorremos, Santa Mãe de Deus. Não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades, mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita. Amém”.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

O PROBLEMA NÃO ESTÁ NA FORÇA DO VENTO CONTRÁRIO, MAS NA FRAQUEZA DE UMA FÉ INCONSISTENTE

 Missa do 19º dom. comum. Palavra de Deus: 1Reis 19,9a.11-13a; Romanos 9,1-5; Mateus 14,22-33.

 

            Na Bíblia, o mar simboliza as forças do mal, forças que o ser humano não consegue dominar. A ordem que Jesus dá aos discípulos, de entrarem na barca e atravessarem o mar até a outra margem, se repete em nossa história pessoal e social toda vez que a vida, por meio de algum acontecimento inesperado, nos tira da nossa acomodação e nos diz que está na hora de fazer uma travessia. Atravessar o mar da vida significa crescer, tornar-se melhor, amadurecer, libertar-se de vícios ou de situações que estão nos fazendo mal, aprofundar a nossa fé, conhecer Deus de uma maneira nova e mais profunda etc.

            Qual travessia a vida está desafiando você a fazer nesse momento?

            Sempre que tomamos a decisão de fazer o que é certo, de enfrentarmos determinado desafio, de resolvermos determinado problema, precisamos estar preparados para lidar com obstáculos, com ventos contrários. Às vezes esses ventos contrários sopram dentro de nós: é a voz do nosso medo. Outras vezes, eles sopram fora de nós: pessoas ou situações externas se levantam para tentar nos convencer de que a travessia não dará certo. Quando, então, somamos o nosso medo interno com as “pressões externas”, a fome se junta com a vontade de comer e o estrago está feito: permanecemos na margem em que estamos, e a nossa vida fica estagnada, paralisada, vazia de sentido.

           Se não queremos sabotar nosso próprio crescimento e se não queremos interromper a obra que a graça de Deus está realizando em nós, precisamos obedecer à voz de Jesus e fazer a travessia que nos foi proposta, sabendo que, enquanto atravessamos o mar da vida, o próprio Jesus está em oração diante do Pai, intercedendo dia e noite em nosso favor (cf. Hb 7,25; 9,24). Contudo, como acabou de nos mostrar o Evangelho, a intercessão de Jesus por nós não significa que nenhum vento contrário virá em nossa direção. Ventos contrários sempre surgirão, provocando agitação no mar da nossa vida, e isso acontecerá para que cada um de nós verifique o quanto está levando a sério a travessia que foi chamado a fazer. Além disso, quanto mais o vento sopra contrário, mais precisamos nos deixar impulsionar para a frente pelo sopro do Espírito de Deus, que nos capacita a enfrentar o que fomos chamados a enfrentar.   

Pelas três horas da manhã, Jesus veio até os discípulos, andando sobre o mar... ‘Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!’” (Mt 14,25.27). Se o mar representa as forças do mal que nenhum ser humano domina, Jesus “anda sobre o mar”, pois ele é maior do que todo e qualquer mal que tente nos fazer retroceder em nosso caminho de fé. Portanto, nossos olhos não devem se fixar no vento que sopra contrário a nós, mas em Jesus, que tem o poder se fazer calar os ventos contrários e acalmar o mar agitado da nossa vida. Enquanto Pedro mantinha os olhos fixos em Jesus, conseguiu caminhar sobre o mar agitado, mas ao desviar os olhos, alimentando dentro de si mais o medo diante do vento contrário do que a fé em Jesus, começou a afundar.

“Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro, e lhe disse: ‘Homem fraco na fé, por que duvidaste?’” (Mt 14,23). Aquilo que nos derruba não são os ventos contrários, mas uma fé fraca, sem profundidade nem convicção, uma fé mais pautada na emoção do que na inteligência, uma fé que não se aprofunda no conhecimento da Sagrada Escritura, mas se alimenta de devoções superficiais e supersticiosas. Nossa fé precisa urgentemente ser purificada, como aconteceu com o profeta Elias. Esse profeta só conseguia “sentir” Deus quando experimentava fortes emoções, comparadas ao furacão, ao terremoto e ao incêndio. “Mas o Senhor não estava” em nenhuma dessas experiências intensas com as quais Elias estava habituado. Somente quando o seu interior foi capaz de silenciar a ponto de ele “ouvir o murmúrio de uma leve brisa”, é que se encontrou com a presença de Deus. Em outras palavras, só uma fé que aprendeu a suportar o silêncio de Deus pode ser considerada verdadeira, comprovada e capaz de enfrentar o barulho vazio dos ventos contrários.   

“O vento sopra o quanto quer; a montanha jamais se curva diante dele” (provérbio chinês). “Os que estavam no barco, prostraram-se diante dele, dizendo: ‘Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!’” (Mt 14,31). Não são poucas as pessoas que, por muito ou por pouco, se dobram e se quebram diante dos ventos contrários. Não é diante deles que devemos nos dobrar, mas diante do Filho de Deus que nos quer firmes e fiéis em nossa travessia, enfrentando o mal que há no mundo, olhando sempre para a frente, cheios de coragem e confiantes, seja na sua intercessão em nosso favor, seja na sua presença no barco da nossa vida.

Oremos pelos pais! Mais da metade das famílias brasileiras não tem o pai dentro de casa. Além disso, muitos homens estão dobrados diante do vento da desorientação, da descrença, do pessimismo, do vitimismo, dos vícios, de comportamentos autodestrutivos; são homens cuja alegria depende da bebida alcoólica, cuja igreja é o bar, cuja religião é o time de futebol; homens marcadamente ausentes das nossas celebrações, talvez devido a uma Igreja pouco masculina, excessivamente efeminada, com cujas linguagem e postura não se identificam. Rezemos pelo pai empresário, pelo pai trabalhador, pelo pai desempregado e, de modo especial, pelo pai que busca no Evangelho e na Eucaristia a força para enfrentar os ventos contrários e continuar a conduzir sua família para a outra margem, em vista da salvação dos que foram confiados aos seus cuidados.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

O TESOURO DA TRANSFIGURAÇÃO FOI COLOCADO DENTRO DE VASOS DE BARRO

 Missa da Transfiguração do Senhor. Palavra de Deus: Daniel 7,9-10.13-14; 2Pedro 1,16-19; Mateus 17,1-9.

 

            A cada dia que nos olhamos no espelho, nos damos conta dos sinais de desfiguração. Sim; com o passar do tempo, vamos nos desfigurando: os cabelos vão ficando brancos, as rugas vão surgindo, os neurônios vão morrendo, as forças vão diminuindo, os limites vão aparecendo. A ciência, a tecnologia e a indústria dos cosméticos inventam uma série de produtos e técnicas para, quem sabe, retardar – muito mais do que isso, disfarçar, na tentativa de negar – o processo de desfiguração em nós. Mas não há nada que impeça a desfiguração de nos atingir.

            Mas a desfiguração física, corporal ou biológica não é nada, quando nos recordamos de que, “embora em nós, o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior se renova dia a dia...; pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno” (2Cor 4,16.18). Em outras palavras, não é com a desfiguração externa que devemos nos preocupar, mas com a interna: a desfiguração da nossa fé, da nossa esperança, do nosso amor, do nosso sentido de vida; a desfiguração de valores como fidelidade, honestidade, solidariedade, decência, empatia, compaixão etc.  

            Não há dúvida de que existem fatos que nos desfiguram emocional e espiritualmente: a doença ou a morte de uma pessoa que amamos, os conflitos na vida familiar ou no ambiente de trabalho, as más notícias, as injustiças sociais, a violência e a criminalidade etc. Resumindo, toda experiência de sofrimento pode gerar desfiguração em nossa alma. Para quantos de nós a imagem de Deus se desfigurou, depois de um acontecimento doloroso? “Nos momentos mais felizes eu dizia: ‘Jamais hei de sofrer qualquer desgraça!’ Honra e poder me concedia a vossa graça, mas escondestes vossa face e perturbei-me” (Sl 29,7-8 – versão Liturgia das Horas). Uma dor intensa costuma “esconder” a face de Deus de nós; é quando a imagem que tínhamos d’Ele se desfigura dentro de nós.

            Mas os textos bíblicos de hoje não nos falam de desfiguração, e sim de transfiguração. Se toda e qualquer experiência de desfiguração joga uma sombra escura em nossa vida, devemos olhar para a face luminosa de Cristo, nosso Senhor; sua face transfigurada, resplandecente da glória de Deus. Assim como fez com o profeta Daniel, Deus Pai nos faz enxergar a história humana para além da sua atual desfiguração. Enquanto os reinos humanos desfiguram a Terra e a vida de muitas pessoas, o Pai nos convida a erguer os olhos e contemplar o seu trono, confiando que é Ele quem dirige a história. Enquanto os reinos humanos agridem a vida, como animais brutais e selvagens, o Pai entrega ao seu Filho o poder de humanizar a Terra. Justamente por isso, Jesus vai assumir para si o título de “Filho do homem”, Aquele que vem transfigurar as relações humanas.

               Enquanto “Filho do homem”, Jesus entrou em contato com todo tipo de dor que desfigura a vida do ser humano neste mundo. Ele se deixou afetar pela desfiguração dos doentes, dos pecadores, dos desesperados, dos condenados pela política e pela religião da sua época. Ao mesmo tempo, Jesus sofreu a desfiguração suprema da morte de cruz: “(...) ele não tinha mais figura humana e sua aparência não era mais a de um homem” (Is 52,14). Eis aí a descrição de extrema desfiguração que Jesus sofreu na cruz. Consciente de que deveria enfrentar tal desfiguração, Jesus subiu à montanha para rezar, levando consigo Pedro, Tiago e João, os mesmos apóstolos que, mais tarde, veriam o rosto de Jesus desfigurado de agonia, no horto das Oliveiras (cf. Mt 26,36-46).  

“E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz” (Mt 17,2). A transfiguração que se operou em Jesus não foi provocada por ele, mas pelo Pai. O Pai quis que seu Filho experimentasse antecipadamente a força da Páscoa, para dar ao próprio Jesus e a nós, seus discípulos, a certeza de que aquilo que nos aguarda no final do nosso caminho terreno não é a desfiguração da morte, mas a transfiguração da ressurreição. Se hoje celebramos a transfiguração de Jesus é para nos lembrar que “o mesmo Deus que disse: ‘Do meio das trevas brilhe a luz!’, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo. Trazemos, porém, esse tesouro em vasos de barro” (2Cor 4,6-7).

Nós, discípulos de Jesus, carregamos a luz da sua transfiguração dentro de vasos de barro. Quem olha para nós vê apenas o vaso de barro que somos, enquanto ignora o tesouro da transfiguração que portamos conosco, garantia da nossa ressurreição corporal (cf. Fl 3,20-21). Quem não deve ignorar esse tesouro somos nós, que ainda temos um combate a combater, enquanto percorremos trechos escuros em nossa vida pessoal e social, situações de desfiguração, tendo o Evangelho da transfiguração de Jesus “como lâmpada que brilha em lugar escuro, até clarear o dia e levantar-se a estrela da manhã” (2Pd 1,19) em nossos corações!

Ao final dessa reflexão, podemos nos perguntar: quais atitudes nossas desfiguram a vida à nossa volta e quais a transfiguram? Atitudes que desfiguram: isolamento, egoísmo, indiferença para com os outros, a decisão de silenciar ao invés de dialogar, fugir daquilo que nos cabe enfrentar, tempo excessivo nas redes sociais, a decisão em não perdoar etc. Atitudes que transfiguram: a decisão em dialogar e em perdoar, aproximar-se e estar com os outros, envolver-se em causas sociais, confiar ao Pai nossas angústias e preocupações diariamente pela oração, não girar em torno de si, interessar-se em ajudar os outros etc.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi