quinta-feira, 29 de setembro de 2022

SÓ A FÉ QUE PASSA PELO FOGO DA CRISE TORNA-SE PURA

 Missa do 27. dom. comum. Palavra de Deus: Habacuc 1,2-3; 2,2-4; 2Timóteo 1,6-8.13-14; Lucas 17,5-10.

 

“Aumenta a nossa fé!” (Lc 17,5). Quem de nós não se identifica com esse pedido dos discípulos a Jesus? Quem de nós não sente falta de fé? Se, por um lado, a Escritura diz que “a vitória que venceu o mundo é a nossa fé” (1Jo 5,4), por outro lado devemos reconhecer que cada vez mais o mundo moderno tem derrotado a nossa fé; cada vez mais as pessoas deixam de ter fé. E isso é compreensível. Como ter fé em Deus, quando ele silencia diante das inúmeras injustiças que atentam contra a vida humana? Como ter fé no seu amor e na sua providência, quando ele parece ter abandonado muitas pessoas a si mesmas? Como ter fé no seu interesse pela humanidade e na sua bondade, quando ele permite que o mal corra solto pelo mundo e faça os estragos que bem deseja?

No seu livro “A noite do confessor”, o Pe. Tomás Halík nos propõe a seguinte reflexão: “O mistério do mal e do sofrimento tem conduzido pessoas para Deus, mas também as afastado d’Ele. Que sentido tem um Deus que não sabe o que fazer do sofrimento, ou, se o sabe, não nos quer ajudar? Mas se nós Lhe viramos as costas, será que isso ajuda a nos livrar do sofrimento, ou será que, pelo contrário, nos privará da força para confrontarmos e fazermos frente ao mal e ao sofrimento?” (pp.156-157).

Atualmente, muitas perguntas estão dentro de nós sem resposta, exatamente como estavam no coração do profeta Habacuc: “Senhor, até quando clamarei, sem me atenderes? Até quando devo gritar a ti: ‘Violência!’, sem me socorreres?” (Hab 1,2). Até quando pessoas boas vão morrer e pessoas ruins vão prosperar? Até quando a ganância financeira vai continuar a destruir nosso Planeta? Até quando a violência dos traficantes, dos milicianos e dos maus policiais vai continuar matando jovens negros e pobres em nosso País? Até quando teremos a sensação de que trabalhar para tornar o nosso mundo melhor é uma tarefa ingrata e inútil?  

A resposta que Deus oferece a essas e outras tantas perguntas que nos angustiam não é uma resposta fácil: “A visão refere-se a um prazo definido, mas tende para um desfecho, e não falhará; se demorar, espera, pois ela virá com certeza, e não tardará” (Hab 2,3). As nossas urgências não têm o poder de forçar Deus a se manifestar, nem a agir. Ele o fará no tempo dele, na hora dele. Sua resposta às nossas urgências fala de “prazo definido”, de “desfecho”, de “espera”. Em outras palavras, nossa fé só poderá sobreviver se aprender a esperar. Sem a capacidade de esperar, a fé morre asfixiada. O oxigênio da fé é a esperança.  

O problema é que esperar em Deus e esperar por ele significa dependência, e o ser humano moderno detesta depender do outro. Ele tem sede de autonomia, e quer fazer as coisas por si mesmo. Mas há uma contradição nessa pseudo-autonomia: o ser humano moderno não quer depender de Deus, mas sujeita-se a depender de dinheiro, de afeto, de aceitação, de aprovação, de reconhecimento etc. No fundo, a verdade é uma só: quando não se escolhe livremente depender de Deus, sofre-se uma dependência imposta a partir de fora, pelos ídolos modernos.

No diálogo com o profeta Habacuc, Deus afirma que chegará um tempo em que só será possível viver pela força da fé: “Quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (Hab 2,4). Quem abandonar a sua fé e decidir livremente sair das mãos de Deus, passará a se destruir com suas próprias mãos. Quem abandonar valores importantes como verdade, justiça, retidão, criará destruição para si e para os outros. Só quem permanecer firme em Deus poderá sobreviver a um mundo que adoece e destrói a si mesmo. Quem não usar a luz da fé para interpretar os acontecimentos que afetam sua existência, acabará por não ver mais sentido em existir.

Portanto, ter fé é crer que não existimos por acaso, mas que nossa existência tem um para que, uma finalidade, um sentido, uma razão de ser. Ter fé é confiar que “Deus pode usar dos ventos contrários para nos conduzir ao porto” (autor desconhecido). Ter fé é desenvolver a capacidade de suportar a ferida não curada, a pergunta não respondida, o problema não resolvido, sabendo que há um tempo para que tudo isso aconteça. Ter fé é dizer “não” ao fatalismo, ao desespero, ao vazio e à perda de sentido. Ter fé é ter a convicção de que você é filho, não órfão, e que a única coisa que o Pai lhe pede é que você confie nele.

Segundo o missal dominical, fé é confiança absoluta em Deus, contra todo cálculo humano. Crer é dar-se a Deus, exatamente a Ele, que parece ausente da história humana. Crer é esperar no seu amor, sabendo que sua Palavra não nos engana, não nos ilude. Já o Pe. Pagola, no seu livro “Jesus, aproximação histórica”, nos propõe ter a mesma fé que Jesus tinha no Pai, sabendo que “Deus é transcendente. Ninguém o pode ver nem experimentar diretamente, mas ele atua no mais profundo dos acontecimentos” (p.365); “Deus é amor para com os que sofrem e, precisamente por isso, é juízo contra toda injustiça que desumaniza e faz sofrer” (p.367); e, ainda, “Deus é para aqueles que têm necessidade de que ele seja bom” (p.387). Resumindo, ter fé é escolher viver como filho, numa confiança diária no Pai.

Enfim, a fé não é somente um dom que recebemos de Deus, mas também uma tarefa: somos chamados a “reavivar a chama do dom de Deus”, que é a fé, sabendo que ele “não nos deu um espírito de timidez, mas de fortaleza, de amor e sobriedade” (2Tm 1,6.7). Uma fé que não se alimenta de oração morre por desnutrição. Além disso, Jesus compara a pessoa que tem fé a um servo, um empregado que, após o seu trabalho, não espera por reconhecimento, mas mantém-se fiel à sua tarefa por amor à própria verdade e à própria razão de ser da sua existência. Neste sentido, nossa fé deve passar da atitude do filho que tem interesse no que possa ganhar do pai para o estar com o Pai por amor, a exemplo do próprio Jesus.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

NOSSO DESTINO APÓS A MORTE ESTÁ SENDO ESCRITO AGORA

 Missa do 26. dom. comum. Palavra de Deus: Amós 6,1a.4-7; 1Timóteo 6,11-16; Lucas 16,19-31.   

 

            Existe vida após a morte? Alguns acreditam que sim; outros, que não. Embora essa crença pareça ser algo muito particular, de cada pessoa, o fato é que crer ou não crer na vida após a morte influencia a maneira como vivemos a nossa vida presente. Para quem não crê na vida após a morte, a vida presente tem que ser desfrutada ao máximo. Já que amanhã iremos todos morrer, devemos aproveitar a vida hoje. Ela é tudo o que temos. Mas o fato de não se crer na vida após a morte também leva os homens a não se preocuparem em serem justos: “sua maldade os cega”. Eles abandonam o caminho do bem porque “não esperam o prêmio pela santidade, não creem na recompensa das almas puras” (Sb 2,21.22). Em resumo, não crer na vida após a morte nos desumaniza e nos torna profundamente egoístas, entendendo o mundo presente como um lugar onde “quem pode mais, chora menos”.  

            A parábola que Jesus nos conta deixa claro três coisas: primeiro, existe vida após a morte; segundo, o nosso destino após a morte está sendo escrito ou construído agora, neste mundo, neste momento, sobretudo pela maneira como lidamos com os bens materiais e como nos posicionamos diante dos pobres e necessitados; terceiro, a vida após a morte inverte a situação presente, justamente porque os valores do mundo atual estão invertidos.

            Para o mundo presente, felizes são os ricos e infelizes são os pobres. Em relação à vida após a morte, Jesus proclama: “ai dos ricos” (Lc 6,24) e “felizes os pobres” (Lc 6,20). Mas aqui é preciso entender que ninguém será salvo ou condenado na vida após a morte devido à sua atual condição financeira. Perante Deus, nem todo rico está condenado e nem todo pobre está salvo. A questão é a maneira como cada um de nós lida com os bens materiais e como se posiciona perante este mundo desigual, que enriquece ainda mais os que já são ricos e empobrece ainda mais os que já são pobres. A título de exemplo, ¼ da população mundial detém 80% da riqueza, enquanto ¾ têm que sobreviver com 20%! Aos olhos de Deus, isso se chama “injustiça”, e a vida após a morte é entendida biblicamente como o restabelecimento da justiça: “O que nós esperamos, conforme sua promessa, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13).

            Toda e qualquer crítica bíblica a respeito do acúmulo de riqueza é um protesto de Deus contra a injusta desigualdade social, que provoca fome, violência e morte em inúmeros seres humanos na face da terra. Aos olhos de Deus, riqueza e pobreza não são coisas “normais”, muito menos acidentais, mas fruto de atitudes humanas e de escolhas políticas, e aqueles que procuram desfrutar da vida esbanjando dinheiro, pensando unicamente em si mesmos e não se preocupando com a ruína dos pobres, estão escrevendo sua própria sentença de condenação perante Deus.

            Na vida após a morte, exemplificada pela parábola que Jesus contou, se fala de um abismo que separa o rico do pobre Lázaro. O evangelho nos pergunta pelos abismos que temos construído para nos manter distantes de quem sofre, de quem precisa da nossa presença, da nossa solidariedade, da nossa justiça. A distância que porventura desejemos manter diante das injustiças sociais reaparecerá na vida após a morte, mantendo-nos distantes de Deus e do seu Reino!

            A parábola que ouvimos deixa claro que a nossa existência é única. Nós nunca mais voltaremos a este mundo para corrigir erros que tenhamos cometido nesta vida. É isso que nos chama à responsabilidade. Somos livres para fazer escolhas e tomar decisões. Essas escolhas e decisões vão diariamente escrevendo o nosso destino, no que diz respeito à vida após a morte. Para nos ajudar a escrever um destino de salvação e não de condenação, Deus nos deixou a sua Palavra: “Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!” (Lc 16,29). E Jesus afirma que quando uma pessoa não crê na verdade da Palavra de Deus, nem mesmo se acontecesse algo milagroso, como a ressurreição de um morto, ela mudaria suas atitudes, deixando de ser egoísta e passando a se preocupar com os que sofrem à sua volta (cf. Lc 16,31).  

            Ao encerramos o mês da Bíblia, celebramos a chegada da primavera. O fruto da vida eterna, que esperamos colher, depende da semente que estamos semeando hoje, isto é, dos valores que estamos cultivando em nossa vida: se são transitórios ou se são definitivos; se visam unicamente o nosso bem ou se visam o bem de toda a humanidade, especialmente dos que mais sofrem. Hoje é o tempo de construirmos pontes sobre os abismos da desigualdade social, de modo que a fraternidade cure as feridas abertas pelo individualismo, e a compaixão fale mais alto ao nosso coração do que a indiferença para com quem sofre.

            Enfim, lembremos as sábias palavras de Beto Guedes, na música “O sal da terra”:

“Vamos precisar de todo mundo pra banir do mundo a opressão; para construir a vida nova vamos precisar de muito amor. A felicidade mora ao lado e quem não é tolo pode ver... Vamos precisar de todo mundo: um mais um é sempre mais que dois. Para melhor construir a vida nova é só repartir melhor o pão; recriar o paraíso agora para merecer quem vem depois”.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

TODO DINHEIRO PODE AFASTAR VOCÊ DE DEUS E DA SUA SALVAÇÃO

 Missa do 25º dom. comum. Palavra de Deus: Amós 8,4-7; 1Timóteo 2,1-8; Lucas 16,1-13.

 

            “A raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6,10). Por causa do dinheiro, os homens fazem guerra. Por causa do dinheiro, o tráfico de drogas se espalha e se intensifica em todos os lugares, destruindo famílias, destruindo vidas. Por causa do dinheiro, a maioria dos alimentos que nós comemos está envenenada por agrotóxicos, hormônios e inúmeras outras substâncias cancerígenas. Por causa do dinheiro, desmata-se, envenenam-se rios, destrói-se a natureza. Por causa do dinheiro, matam-se pessoas para traficar seus órgãos. Por causa do dinheiro, fabricam-se produtos sempre mais descartáveis, aumentando a produção de lixo e causando seríssimos problemas ao meio ambiente. Por causa do dinheiro, manipula-se a Bíblia, e diversos pregadores tornam-se ladrões e assaltantes em nome de Deus. Por causa de dinheiro, a política deixa de ser entendida como o cuidado com o bem comum e passa a ser entendida apenas como chance de enriquecimento rápido e abundante.   

            A crítica ao dinheiro não é uma questão somente política e econômica, mas também bíblica. Deus se pronuncia totalmente contrário a todo tipo de política, de economia e de religião que favorecem a desigualdade social, tornando os ricos sempre mais ricos e os pobres sempre mais pobres: todos aqueles que “pisam sobre os pobres” e “arruínam os necessitados” da terra serão julgados com severidade por Deus, segundo o profeta Amós.

            Nos últimos anos, os preços dos alimentos explodiram no Brasil, o país que mais produz e exporta alimentos no mundo. Quem vai ao supermercado se dá conta de que todos os alimentos da cesta básica – arroz, feijão, óleo, açúcar, café etc. – triplicaram de preço, consequência de uma política econômica que favorece os ricos e prejudica os pobres. Se essa constatação parece fruto de ideologia política, vejamos o que Deus diz a respeito dos produtores, dos fabricantes e dos comerciantes que provocam o aumento abusivo de preços: “Jamais esquecerei coisa alguma do que eles fizeram” (Am 8,7). Deus não é indiferente às questões sociais. Enquanto aqueles que se enriquecem causando empobrecimento e aumentando ainda mais a desigualdade social adesivam seus veículos com a frase: “Meu partido é o Brasil”, Deus deixa claro que seu partido são todos os seres humanos prejudicados pela ganância desmedida daqueles que lucram com a pobreza alheia.  

            Todos nós vivemos numa sociedade onde o dinheiro é “tudo”. O que move o mundo é o dinheiro. Em teoria, existem muitas religiões; na prática, porém, só existe uma: a religião chamada “mercado”, cujo deus é o dinheiro. Na época de Jesus, não era muito diferente. Foi por isso que ele nos fez um alerta: “Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Lc 16,13). “Dinheiro” aqui é designado com “D” maiúsculo porque ele compete com Deus; ele promete nos dar aquilo que somente Deus pode nos dar: segurança e salvação. Todos nós estamos dentro de uma economia de mercado. Ninguém sobrevive sem dinheiro. Com ele, nos sentimos seguros e em paz; sem ele, nos angustiamos e nos desesperamos.

            Mesmo sabendo disso, Jesus afirma que todo dinheiro é injusto; todo dinheiro é sujo e corrompe, porque fecha aquele que o possui no seu próprio egoísmo. Todo dinheiro tem o poder de possuir aquele que o possui. Quanto mais posses uma pessoa tem, mais ela se torna “possuída”. Quanto mais dinheiro uma pessoa possui, menos ela se sente necessitada de Deus e de sua salvação, mais ela se torna crítica da Igreja e do Evangelho. É perfeitamente natural, portanto, que até mesmo homens cristãos ambicionem pertencer a grupos ou movimentos de elite, que ostentam riqueza, do que pertencer a algum serviço de Igreja que tenha como objetivo socorrer os necessitados.

            Conhecendo bem o coração humano, Jesus afirmou que “os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz” (Lc 16,8). Aqui é o caso de perguntar: Você se esforça em cuidar da sua vida espiritual da mesma forma que se esforça em ganhar dinheiro? Você tem consciência de que dinheiro algum pode impedir você de morrer (cf. Sl 49,8-10)? Você tem consciência de que seu julgamento diante de Deus se dará exatamente baseado na forma como você tratou os necessitados e os pobres deste mundo (cf. Mt 25,31-46)?

            Jesus nos lança um desafio: “Usem o dinheiro injusto para fazer amigos, pois, quando acabar, eles receberão vocês nas moradas eternas” (Lc 16,9). Não há dinheiro que compre Deus, que compre a nossa salvação, o nosso lugar no Reino de Deus. No entanto, existe uma forma de usar o dinheiro de maneira que ele nos aproxime de Deus e da sua salvação: socorrendo os necessitados; de maneira mais inteligente, usando o nosso dinheiro para ajudar a diminuir a desigualdade social à nossa volta; aplicando o nosso dinheiro em projetos que gerem algum tipo de renda para quem está desempregado. A nossa entrada nas “moradas eternas” depende exatamente disso, segundo Jesus: da nossa solidariedade para com os pobres. A indiferença a eles sela a nossa condenação perante Deus.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

TRABALHEMOS PARA AJUDAR OS PERDIDOS A SEREM REENCONTRADOS!

 Missa do 24º dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo: 32,7-11.13-14; 1Timóteo 1,12-17; Lucas 15,1-32

            “Não existem pecadores sem futuro” (Cardeal Van Thuan). Essa verdade sintetiza as leituras bíblicas que acabamos de ouvir. Enquanto nós desistimos de certas pessoas, afirmando que “pau que nasce torto, morre torto”, Deus quer nos tornar conscientes de que todo ser humano pode mudar, todo pecador pode se converter. Enquanto nós nos tornamos pessoas cada vez mais intolerantes com os erros dos outros, Deus nos convida a nos espelhar no seu coração misericordioso, para o qual não há nada que esteja morto que não possa voltar a viver; não há nada que tenha se perdido que não possa ser encontrado.

            As parábolas da “ovelha perdida” e da “moeda perdida” nos falam do valor de cada ser humano para Deus. Aos nossos olhos, muitas pessoas não apenas “estão” perdidas, mas “são casos perdidos”: não acreditamos que elas possam ser recuperadas; e porque não acreditamos na sua possibilidade de mudança, deixamos de procurá-las, assim como deixamos de rezar por elas. Uma vez que as vemos como “casos perdidos”, nós as jogamos na lata de lixo do nosso esquecimento, do nosso abandono, da nossa indiferença, de modo que nos acostumamos tranquilamente a não tê-las mais junto a nós.

            A parábola da ovelha perdida nos pergunta se estamos conseguindo nos dar conta das pessoas que não estão mais em nossa comunidade de fé. A massificação, o anonimato e o individualismo não nos deixam perceber que há alguém que não está mais conosco. Tão triste quanto saber que uma pessoa se perdeu é nos dar conta de que ela não nos faz falta! Com ela ou sem ela, nossa Igreja segue seu caminho. A “pastoral de manutenção” das nossas paróquias nos mantém distantes da realidade concreta: a maioria de nós, pastores, dedica seu tempo em cuidar da única ovelha que ficou no rebanho, ao invés de se dar ao trabalho de ir atrás das 99 que estão afastadas ou “perdidas”!    

            A parábola da moeda perdida pode ser lida em chave familiar: algo se perdeu dentro de casa; alguém está se perdendo dentro de casa, mas a família não está se dando conta disso. A vida corrida, o cansaço do trabalho, os olhos voltados frequentemente para a tela de um celular, de um computador ou de uma TV impedem que as pessoas de uma família se deem conta de que alguém lá dentro está caminhando na direção de um abismo. Em alguns casos, existe um “desistir”: desiste-se de procurar outro; desiste-se de dialogar, de buscar saídas, de enfrentar o problema, como se a ferida pudesse se curar sozinha, sem cuidado, sem remédio. Acostuma-se com a tristeza, com a solidão; não se experimenta mais a alegria do reencontro.

            Procurar aqueles que estão se perdendo perto de nós dá trabalho: acender a luz, varrer a casa, sair de si, superar o orgulho ferido, romper o silêncio imposto pela mágoa... Não há como encontrar a moeda se a casa está no escuro; a luz precisa ser acesa. Deus é luz. Ele sempre pode nos dar palavras certas para retomar o diálogo interrompido. Mas, às vezes, só a luz acesa não basta; é preciso varrer a casa; é preciso ser criativo e usar de todos os meios possíveis para alcançarmos a pessoa que está dentro da nossa casa! Varrer a casa é estender os nossos braços até alcançarmos a pessoa que está afastada de nós.  

Por fim, Jesus nos coloca diante da Parábola do Pai Misericordioso. O filho mais novo, que decide não mais viver na casa com o pai, retrata a humanidade atual, na sua decisão de não depender de Deus, de afastar-se da religião (autoridade do pai), decidindo por si mesma o que é o bem e o que é o mal; em alguns casos, de crer em Deus, mas de não aceitar que ele interfira nas suas escolhas e decisões; em outros casos, de viver como se Deus não existisse. O resultado do afastamento de Deus é uma vida autodestrutiva, pois toda pessoa que decide sair de perto das mãos de Deus passa a destruir-se com as próprias mãos.

Felizmente, existe algo no ser humano capaz de fazê-lo voltar: sua consciência. Foi caindo em si que o filho mais novo percebeu o erro que havia cometido e que ainda havia um lugar para o qual voltar: sua casa; ainda havia alguém para quem ele voltar: seu pai! E o rosto do Pai Misericordioso se revela dessa forma: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos... e disse aos empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete’” (Lc 15,20.22-23).

Vivendo no seio de uma humanidade orfã, onde a maioria das pessoas desconhece que Deus é Pai Misericordioso, nós precisamos ser o “abraço do Pai” para essas pessoas. Todos aqueles que estão perdidos precisam saber que podem ser reencontrados! Todos aqueles que estão mortos por dentro precisam saber que podem voltar a viver! Jesus quer a sua Igreja misericordiosa, um lugar onde haja lugar para aqueles que não têm lugar neste mundo. A ação pastoral da nossa Igreja precisa se traduzir em buscar e salvar os que se distanciaram, se extraviaram, se perderam, de modo que cada ser humano possa dizer como o apóstolo Paulo: “Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores. E eu sou o primeiro deles!” (1Tm 1,15).

Hoje, após a comunhão, cada um de nós pode ser perguntar: “De qual pessoa Deus está pedindo que eu vá à procura? Quando é que eu vou me dar conta de que a minha igreja ou religião existe para resgatar as noventa e nove ovelhas perdidas, e não para se acomodar junto à única ovelha que ainda está perto do pastor? Quem está se perdendo dentro da minha própria família? O que eu estou fazendo para “alcançar” esta pessoa e trazê-la de volta? Minha fé se transformou em desilusão ou ainda pulsa viva, na certeza de que aquele que morreu pode voltar a viver e aquele que se perdeu pode ser reencontrado?”.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

JESUS SÓ PODE SER INTEIRO PARA QUEM SE ENTREGA POR INTEIRO A ELE

 Missa do 23º dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 9,13-18; Filêmon 9b-10.12-17; Lucas 14,25-33.

 

            Quem escolhe a roupa que você vai usar? Quem escolhe o que você vai comer no almoço ou no jantar? Quem escolhe os vídeos que você vai ver no Youtube? Quem escolhe aonde você vai, ao sair de casa? Cada vez mais as pessoas rejeitam que os outros decidam por elas. Cada vez mais as pessoas têm como lema de vida: “Eu faço as minhas escolhas!”. No entanto, há uma contradição nessa aparente “autonomia”: as mesmas pessoas que não admitem que os outros escolham por elas fazem suas escolhas não baseadas na própria consciência, mas na pressão da opinião pública, das redes sociais e da aprovação dos outros.

            Religião é escolha. Deus é escolha. Igreja é escolha. Houve um tempo em que ter uma religião, acreditar em Deus e pertencer a uma igreja era questão de tradição: os filhos cresciam religiosos porque seus pais eram religiosos. Mas a religião transmitida por tradição está acabando (em muitos lugares, já acabou!). A primeira razão é que os pais de hoje, na sua maioria, não sentem mais necessidade de pertencerem a uma igreja. A segunda razão é que o mundo, há muito tempo, não gira mais em torno da autoridade religiosa, mas do individualismo e do relativismo, onde cada um faz o que quer. A terceira razão é a conduta pastoral das igrejas tradicionais, mais preocupadas na manutenção das suas próprias doutrinas e tradições do que em se colocar junto às pessoas do nosso tempo para falar-lhes de Deus de uma maneira que lhes seja significativa e que dê sentido à vida delas.

            A grande verdade que a nossa Igreja, em particular, precisa encarar é que ela não significa nada para as novas gerações. Seus dogmas, sua doutrina e suas tradições nada têm a dizer à vida concreta das pessoas, sobretudo daquelas que raramente ou nunca são alcançadas pela ação pastoral da Igreja, a qual privilegia os “católicos tradicionais” e não têm a coragem de se deixar questionar pela imensa maioria de “católicos” que são cada vez mais influenciados pelo paganismo moderno. Mais uma vez é preciso repetir: a insignificância da nossa Igreja para as novas gerações é diretamente proporcional à sua falta de coragem de se colocar junto da realidade das novas gerações, de escutá-las e de se deixar questionar por elas. Em outras palavras, muitos líderes católicos acomodaram-se a ouvir o que o Espírito Santo tem a dizer por meio da Tradição, mas se recusam a ouvir o que esse mesmo Espírito tem a dizer por meio da vida, por meio da realidade do mundo atual.

            Nós estamos aqui, na Igreja. Supostamente, fizemos nossa escolha por Deus e por seu Filho Jesus. Mas essa escolha vem sendo cada vez mais questionada pelo mundo em que vivemos, o qual, distanciando-se dos valores do Evangelho critica, marginaliza, persegue ou rejeita quem escolhe seguir Jesus Cristo. Já refletimos sobre isso dias atrás: escolher Deus, escolher estar na Igreja, significa experimentar o desprezo por parte do mundo. Posicionar-se a favor de Cristo e do Evangelho significa entrar em atrito com pessoas próximas de nós, inclusive nossa própria família! Eis porque Jesus afirma: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26).  

            Se Jesus nos faz uma exigência tão grande é por um único motivo: ele quer criar conosco um relacionamento íntimo e profundo – mais íntimo e mais profundo do que o relacionamento que possamos ter com a pessoa que mais amamos na vida! Jesus deseja ser acolhidos pelos nossos afetos. Normalmente, nossa relação com Ele é pautada pela razão. Sabemos algumas coisas sobre Jesus; conhecemos algo do seu Evangelho, mas Ele não ocupa o centro dos nossos afetos. Quando o procuramos, não é porque o amamos, mas porque precisamos da sua ajuda. Não há como nos tornar discípulos dele tendo-o como Alguém muito importante e necessário em nossa vida, mas não como o mais importante e o único necessário!

            Uma das coisas que mais coloca em crise nossa escolha por Jesus é o confronto com a cruz. Quando o sofrimento atravessa a nossa vida sem pedir licença, fica muito difícil sentir que Jesus nos ama e realmente se importa conosco. Sentimos o mesmo que Ele sentiu em relação ao Pai, na cruz: abandono. Jesus, por sua vez, não nos promete uma vida sem dificuldade, uma existência poupada de dor, um caminho sem cruz. Muito pelo contrário: “Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Assim como Jesus não fugiu das situações dolorosas, mas enfrentou o sofrimento que lhe cabia enfrentar, assim ele quer que façamos.

A cruz não é uma escolha nossa, mas consequência da nossa escolha em sermos cristãos e discípulos daquele que foi odiado pelo mundo. Jamais podemos nos esquecer de que Aquele a quem seguimos foi um homem sujeito à dor e habituado com o sofrimento, um homem que, diante da sua hora de cruz, não disse: “Pai, livra-me dessa hora!”, mas disse: “Foi precisamente para esta hora que eu vim!” (Jo 12,27). Existe uma cruz que cabe a cada um de nós carregar. Existe uma situação de sofrimento que cabe somente a nós enfrentar. Aquela hora de dor é nossa, e não podemos transferi-la para ninguém. Foi precisamente para aquela hora que viemos: a hora de comprovar o quanto levamos a sério a nossa identidade de discípulos d’Aquele que foi crucificado!

Para radicalizar a sua exigência em relação ao nosso seguimento de discípulos, Jesus afirma: “Qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!” (Lc 14,33). Um trapezista só pode ser agarrado pelas mãos de outro trapezista e levado a um lugar mais alto e seguro se ele soltar as mãos da sua barra de segurança. Essa é a exigência que Jesus faz a cada um de nós: “Renuncie à sua barra de segurança; solte as mãos e aceite ficar suspenso no ar, para que minhas mãos segurem as suas e eu possa levar você para uma nova situação de vida”. Jesus só pode ser experimentado como Salvador por aqueles que renunciam às falsas seguranças do mundo e se jogam nos seus braços. Enquanto uma das nossas mãos se estender para Jesus e a outra ficar agarrada à barra de segurança, nada mudará em nossa vida. Jesus só pode ser inteiro para quem se entrega a ele por inteiro.    

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi