quinta-feira, 28 de outubro de 2021

UMA GOTA DE AMOR VALE MAIS DO QUE UMA TONELADA DE SACRIFÍCIOS

 Missa do 31. dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 6,2-6; Hebreus 7,23-28; Marcos 12,28b-34.

 

    Como identificar uma pessoa que acredita em Deus? O que distingue uma pessoa que crê em Deus de outra que não crê? A resposta não está na roupa que ela usa, nem nas palavras que ela diz, nem na fé que ela professa com a boca, nem mesmo na frequência com que ela vai à igreja ou ao local de culto e de oração. A resposta está nas atitudes da pessoa. Se essas atitudes expressam amor, ela crê verdadeiramente em Deus. Portanto, toda pessoa que afirma crer em Deus, mas não ama, está enganando a si mesma. Toda pessoa que, em nome de Deus e da sua religião, discrimina, odeia ou deseja a morte de alguém, não chegou a conhecer a Deus: “Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é Amor” (1Jo 4,8).

    Se Deus é Amor, o nosso relacionamento com Ele só é verdadeiro quando pautado pelo amor. Muito antigamente, o povo de Israel se relacionava com Deus pautado no oferecimento de sacrifícios de animais. Mas o próprio Deus afirmou: “É amor que eu quero e não sacrifícios” (Os 6,6). O próprio Jesus retomou essa verdade ao se dirigir aos fariseus, que se consideravam homens religiosos exemplares: “Vão e aprendam o que significa: ‘Misericórdia quero, e não sacrifício’” (Mt 9,13). Misericórdia – um coração capaz de ser afetado pela miséria do outro – é o amor colocado em prática. O que Jesus está dizendo é que uma gota de amor vale mais do que uma tonelada de sacrifícios.

    Como é o nosso relacionamento com Deus? É um relacionamento movido pelo amor ou pelo medo? Por muito tempo, o relacionamento das pessoas com Deus funcionou na base do medo: medo do castigo, medo de que as coisas não dessem certo, medo de perder a proteção e o cuidado de Deus. Hoje, esse medo foi substituído pela indiferença. É cada vez maior o número de pessoas que seguem pela vida indiferentes a Deus, sobretudo porque O sentem indiferente a elas, ao que acontece na vida delas. Quem vai se interessar – pior ainda, quem vai amar – um Deus que permite o sofrimento e a morte na vida de Seus filhos? Para muitas pessoas, antes de se pensar em amar a Deus, é preciso digerir a raiva que têm d’Ele, raiva que desemboca na indiferença para com Ele.

    Em nome da verdade, precisamos reconhecer também que tanto a Igreja quanto nós, cristãos, temos uma parcela de responsabilidade no distanciamento que as pessoas do nosso tempo vão tomando de Deus. Nossas atitudes testemunham que Deus é amor e que Ele ama indistintamente as pessoas – todas as pessoas? Nossas atitudes ajudam as pessoas a desejarem conhecer o Pai que “faz nascer o sol sobre bons e maus e derrama a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,48), ou seja, o Deus que ama incondicionalmente todo ser humano?

    Deus não procura por pessoas que O sirvam como um escravo serve ao seu senhor; Ele procura por filhos que se deixem amar por Ele: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Dt 6,5). Assim como nós ocupamos o centro do Seu coração, Ele deseja ocupar o centro do nosso. Assim como Ele nos ama gratuita e incondicionalmente, Ele deseja nos libertar de um relacionamento “comercial”, pautado na necessidade, para um relacionamento orientado pelo amor que nos faz buscar a Deus por quem Ele é e não por algo que Ele possa nos dar. Dessa forma, nós poderíamos rezar como o salmista: “Eu vos amo, ó Senhor! Sois minha força, minha rocha, meu refúgio e Salvador!” (Sl 17,2-3).

    Após fazermos essa passagem da necessidade de Deus para o amor a Ele, somos convidados por Jesus a trazer de volta para a nossa relação com o Pai a pessoa do nosso irmão: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo!” (Mc 12,31), uma vez que amar a Deus “de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força, e amar o próximo como a si mesmo é melhor do que todos os holocaustos e sacrifícios” (Mc 12,33). Para a Sagrada Escritura, não é possível amar a Deus sem interessar-se pelo ser humano. O amor a Deus é inseparável do amor ao próximo. “Quem não ama seu irmão que vê, não pode amar a Deus que não vê... Quem ama a Deus, ame também o seu irmão” (1Jo 4,20s). Portanto, toda religião só é verdadeira quando torna o ser humano melhor, mais humano, no sentido de levá-lo a amar o seu semelhante.

    A religião cristã é a religião da cruz, feita de dois traços: um vertical, e outro horizontal. O esforço que nos é pedido em amar a Deus é o mesmo que nos é pedido em amar o próximo, sabendo que amar não é um sentimento, mas uma atitude: “Tudo o que vocês quiserem que os outros lhes façam, tomem a iniciativa de fazê-lo a eles, pois nisso consiste toda a Sagrada Escritura” (citação livre de Mt 7,12). Tomar a iniciativa de tratar as pessoas como gostaríamos que elas nos tratassem – esta é a chave, a maneira de colocarmos em prática o amor para com o próximo.

     Oração: Pai de amor, minha busca por Ti ainda não é movida unicamente por amor, mas pela necessidade que tenho de Ti. Quero aprender a Te buscar não por algo que Tu possas me conceder, mas unicamente por quem Tu és, o Pai que me ama, o Pai que ama incondicionalmente todo ser humano. Que as minhas atitudes ajudem as pessoas a não serem indiferentes ao Teu amor. Retira do meu coração toda raiva, mágoa ou ressentimento, para que eu ame verdadeiramente todo ser humano. Ensina-me a tomar a iniciativa de tratar cada pessoa como eu desejaria ser tratado(a) por ela, pois assim estarei vivendo segundo o Teu amor para comigo. Em nome de Jesus, no amor do Espírito Santo. Amém.

     Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

É MUITO MELHOR UMA VERDADE DOLORIDA DO QUE UMA MENTIRA CONFORTADORA

 Missa do 30. dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 31,7-9; Hebreus 5,1-6; Marcos 10,46-52.

 

            Alguns não conseguem ver saída para seus problemas, não veem horizonte para a sua vida; outros não aceitam ver aquilo que a vida insiste em lhes mostrar, não aceitam ver e reconhecer o que há dentro de si mesmos. Alguns não enxergam suas capacidades, suas potencialidades, mas apenas suas fraquezas; outros são cegos sendo guiados por outros cegos, no campo da política e da religião (cf. Mt 15,14). Alguns católicos recusam a visão de Igreja do Concílio Vaticano II, do Papa Francisco e dos nossos bispos (CNBB), mas aceitam cegamente a visão de Igreja de um padre da mídia ou de líderes Movimentos Religiosos Tradicionalistas.

São muitos os tipos de cegueira no mundo atual. Além de a Covid desencadear um processo de cegueira em muitas pessoas diabéticas, nós temos hoje a cegueira ideológica promovida pelas redes sociais; a cegueira que ocorre dentro de casa – um se recusa a ver o que se passa com o outro – ; a cegueira produzida pelo vício do celular, que impede enxergar o que acontece à volta da pessoa; a cegueira provocada pelas fake news (política de desinformação) – a pessoa nunca leu um livro de Paulo Freire, mas o odeia, rotulando-o de “comunista”. Aliás, qualquer pessoa que se posicione contrária a alguma atitude do atual governo é atacada com discursos de ódio nas redes sociais, inclusive por católicos que se julgam guardiães da “sã doutrina”.

O que fazer quando não enxergamos um caminho, uma saída, uma possibilidade de reconstruir aquilo que foi destruído em nossa vida? Exatamente nessa situação, o profeta Jeremias convidou o povo de Israel a clamar: “Salva, Senhor, teu povo, o resto de Israel” (Jr 31,7). Diante desse clamor, Deus prometeu abrir um caminho, para que o povo voltasse do exílio da Babilônia para o seu país de origem. E o Senhor especificou quais eram as pessoas que percorreriam esse caminho: “entre eles há cegos e aleijados, mulheres grávidas e parturientes: são uma grande multidão os que retornam” (Jr 31,8). Ao longo da vida, todos nós precisamos percorrer diversas vezes esse caminho de volta para o Senhor, de volta para os braços do nosso Pai.

Qualquer que seja a nossa cegueira neste momento, a nossa impossibilidade de ver uma saída, precisamos fazer nossas as palavras do salmista: “Mudai a nossa sorte, ó Senhor, como torrentes no deserto. Os que lançam as sementes entre lágrimas, ceifarão com alegria” (Sl 126,4-5). A tristeza não pode nos impedir de lançar sementes. Justamente porque está escuro, precisamos semear luz; porque é tempo de intolerância, precisamos semear tolerância; porque é tempo em que nossa Igreja é acusada de ser composta por “safados e pedófilos”, precisamos semear discernimento e ajudar as pessoas a enxergarem que aqueles que desejam desacreditar a nossa Igreja são os mesmos que promovem as desigualdades sociais e lucram com a consequente violência que tanto mata em nosso País. Em suma, numa época em que se procura passar a visão distorcida de uma Igreja onde ninguém presta, é preciso ajudar as pessoas a enxergarem e distinguirem o bebê da água do banho, para não se jogar tudo fora.

Olhemos para Bartimeu: cego e mendigo; mendigo porque cego. Interessa à elite brasileira, que manda nos políticos, manter o nosso povo cego, com baixa escolaridade e com baixa capacidade de reflexão. Todo cego se contenta em sobreviver com esmolas, com migalhas; um povo cego “sai barato” para o governo. Mas Bartimeu deseja sair dessa sua condição e, ouvindo falar que Jesus estava passando por ali, grita incessantemente por ele: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!” (Mc 10,47). O problema é que o grito de Bartimeu era repreendido por muitos. Quantos “católicos” usam as redes sociais para “repreenderem” nossos bispos ou o Papa Francisco quando eles gritam contra as injustiças sociais, a fome, o desmatamento na Amazônia, a violência que tanto mata em nosso País?

Mas Bartimeu não se intimida e grita ainda mais. Assim também deve ser a nossa fé: gritar, até sermos ouvidos; gritar, até que Deus volte o seu rosto para nós e nos salve; gritar, como Israel foi aconselhado a gritar no exílio da Babilônia: “Salva, Senhor, teu povo, o resto de Israel” (Jr 31,7); gritar, a exemplo do salmista que afirmou: “Este infeliz gritou a Deus e foi ouvido, e o Senhor o libertou de toda angústia” (Sl 34,7). E foi assim que o grito de Bartimeu chegou aos ouvidos de Jesus: “Filho de Davi, tem piedade de mim!” Então Jesus parou e mandou chamar Bartimeu, que por sua vez jogou o manto, deu um pulo e foi até Jesus. Jesus lhe perguntou: “O que queres que eu te faça?” Bartimeu respondeu: “Mestre, que eu veja!” (Mc 10,51).

Os Evangelhos foram escritos em grego, e a tradução mais precisa da resposta de Bartimeu a Jesus é: “que eu veja novamente!” Bartimeu não era cego de nascença. Ele ficou cego em algum momento de sua vida e agora deseja “voltar a ver”. Jesus hoje nos faz a mesma pergunta que fez a Bartimeu: “O que você deseja que eu lhe faça? O que você realmente quer? Você tem consciência de que é muito melhor uma verdade dolorida do que uma mentira confortadora? Você quer uma cura profunda, que faça você enxergar a verdade, ou quer apenas um remendo provisório para aliviar a sua dor? Você quer voltar a ver, o que vai exigir que você não viva mais da compaixão dos outros? Você quer enxergar a vida a partir dos seus próprios olhos, ao invés de ficar repetindo discursos dos seus guias cegos?

Diante do sincero desejo de Bartimeu que voltar a ver, Jesus lhe restituiu a visão, dizendo: “Vai, a sua fé curou você” (Mc 10,52). A sua coragem em desejar voltar a ver modificou a sua forma de ver a si, aos outros e à vida. Graças à teimosia do seu grito, graças à persistência de sua fé, você não precisa mais viver como mendigo, mas pode fazer por si, assumindo a responsabilidade por sua própria vida.

Para surpresa de Jesus, após recuperar a visão, Bartimeu não foi embora para casa, mas passou a seguir Jesus, exatamente na etapa final da sua viagem para Jerusalém, onde ele se confrontaria com a cruz. Essa decisão de Bartimeu em seguir Jesus revela uma fé contínua, um seguimento que não é temporário, nem sustentado pela emoção do momento, mas um seguimento que se tornou compromisso de vida. Enquanto os doze discípulos estavam seguindo Jesus com medo de enfrentarem a cruz, Bartimeu tomou a firme decisão de permanecer com Jesus, até o fim.

 

Oração:  Senhor Jesus, eu quero sinceramente voltar a ver; quero confrontar-me com a verdade. Livra-me de ser orientado(a) na vida por guias cegos. Estou consciente de que é muito melhor uma verdade dolorida do que uma mentira confortadora. Quero levantar-me da minha condição de mendigo(a), de quem vive esperando compaixão dos outros, para assumir a responsabilidade perante minha própria vida. Assim como Bartimeu, não quero apenas receber de ti uma graça, um milagre; quero tornar-me verdadeiramente discípulo(a), seguindo-te incondicionalmente, deixando-me provocar pela verdade do teu Evangelho que cura a cegueira do meu coração. Faça-me ver, Senhor, aquilo que eu preciso ver, para ser curado(a), liberto(a) e salvo(a). Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

DO DESEMPENHO QUE ADOECE E ESVAZIA PARA O SERVIÇO QUE DÁ SENTIDO À VIDA

Missa do 29. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 53,10-11, Hebreus 4,14-16; Marcos 10,35-45.

 

            Ninguém gosta de sentir-se fraco ou de perder; todos querem sentir-se fortes e vencer. Ninguém gosta de ficar por último; todos gostam de estar entre os primeiros. O pedido que Tiago e João fizeram a Jesus – “Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!” (Mc 10,37) – nos parece bastante sensato e “normal”. Nós também queremos a vitória e não a derrota, a fama e não o anonimato, o estar em evidência e não o ser ignorado, sentir-nos grandes e não pequenos.

            No entanto, Jesus afirma: “Vocês não sabem o que estão pedindo” (Mc 10,38). Vocês não entenderam que o que faz a vida valer a pena não é o poder que vocês podem concentrar nas mãos, mas o serviço que vocês podem prestar à humanidade. Vocês não entenderam que a realização de vocês como seres humanos não se dará pela negação das fraquezas de vocês, mas pelo reconhecimento e aceitação delas, e também pela reconciliação com elas. Além do mais, a primeira pergunta a ser feita não é se você tem capacidade ou mérito de alcançar o primeiro lugar, mas se você tem consciência dos desafios que precisa enfrentar e do processo doloroso de crescimento que deve abraçar, até que alcance seus objetivos.  

            O mundo em que vivemos está cada vez mais exigente. Somos constantemente cobrados quanto ao nosso desempenho. É um mundo centrado no bem estar individual e no alcançar uma vida garantida pelo dinheiro, pelo poder e pelo sucesso. Mas isso nunca acontece, porque as metas são colocadas cada vez mais alto, uma vez que a “máquina” do sistema competitivo não para, e o lugar ao qual ontem nós conseguimos chegar hoje perdeu o sentido, e nos é apresentado uma outra meta a alcançar, um outro lugar a almejar. O que não percebemos é que a constante cobrança por desempenho nos adoece, porque desrespeita os nossos limites, e aí somos obrigados a tomar remédios para aguentar o nível de cobrança desumano que nós mesmos nos impomos ou que a meta do desempenho nos impõe.

             Jesus quer nos ajudar a nos libertar desse sistema de vida que nos adoece constantemente. Ele, que foi “um homem familiarizado com o sofrimento” (Is 53,3), nos ensina que a vida vale a pena não quando evitamos sofrer, mas quando temos um motivo para sofrer, e o motivo não pode ser a busca pela glória, mas a fidelidade a um serviço, à tarefa que nos foi confiada a partir da nossa própria existência. Todo ser humano que tem uma razão para viver, que tem uma tarefa a cumprir, uma missão à qual ser fiel, tem um cálice a beber e um batismo a receber: é o preço pela coerência, o preço por vivermos de acordo com a fé que professamos e com os valores que dão sentido à nossa vida, sabendo que “se com Cristo sofremos, com Cristo reinaremos” (2Tm 2,12).  

            Tão importante quanto nos vermos na busca por reconhecimento de Tiago e João é nos vermos igualmente na aparente “indignação” dos outros dez discípulos (cf. Mc 10,41). Essa indignação se chama “projeção”: aquilo que eu não gosto em mim eu enxergo no outro e critico, rejeito, abomino. A indignação dos dez discípulos escondia atrás dela o mesmo desejo inconfessado e não reconhecido de que também eles estavam sendo movidos pelo “desempenho” em vista do reconhecimento (assentar-se ao lado de Jesus, em sua glória). Sabendo disso, Jesus alertou os doze discípulos: “entre vocês, não deve ser assim: quem quiser ser grande, seja servo de vocês; e quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos” (Mc 10,43-44).

            “Entre vocês – Igreja – não deve ser assim”. A Igreja não pode adoecer junto com o mundo, buscando autoglorificação e afastando-se da imensa multidão de pessoas ignoradas por não ocuparem os lugares de destaque neste mundo onde quem pode mais chora menos. A Igreja não existe para ser reverenciada pelo mundo, mas para fazer como Jesus: colocar-se a serviço dos que não são vistos como importantes e necessários, exatamente daqueles que ficam para trás nesta corrida insana por lugares de destaque. Jesus deixou claro que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para muitos” (Mc 10,45). Não caiamos na armadilha de querer ocupar um lugar de poder e de dominação sobre os outros. Isso, além de custar a nossa saúde física e emocional, e de fazer perder a nossa alma diante de Deus, se tornará uma constante fonte de vazio e de frustração.

Ouçamos a nossa consciência; detectemos o serviço que a vida está nos pedindo para abraçar neste momento; peçamos ao Espírito Santo que nos descontamine do espírito de ambição e de poder e revele a cada um de nós o seu próprio “para isso eu vim”; é este serviço que me realiza e enche de sentido a minha vida; é ele que me faz encarar com realismo e serenidade espiritual o cálice que sou chamado a beber e o batismo que sou chamado a receber, à semelhança de Jesus.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi     

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

NÃO BASTA TER MEIOS PARA VIVER; É PRECISO QUE A VIDA TENHA SENTIDO

 Missa do 28. Dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 7,7-11; Hebreus 4,12-13; Marcos 10,17-27.

 

            No ano de 1968 os cantores Roberto Carlos e Erasmo Carlos escreveram a música “É preciso saber viver”, regravada nos anos 80 pelo grupo Titãs: “É preciso ter cuidado pra mais tarde não sofrer. É preciso saber viver... Se o bem e o mal existem você pode escolher. É preciso saber viver”.

            Por que é preciso saber viver? Porque a nossa existência é única e nunca mais se repetirá; porque “aquilo que fazemos nesta vida ecoa na eternidade” (do filme Gladiador). É preciso saber viver para não incorrermos no erro mencionado por Dalai Lama anos atrás: “As pessoas perdem a saúde correndo atrás de dinheiro, e depois perdem dinheiro tentando recuperar a saúde. Vivem como se não fossem morrer e morrem como se não tivessem vivido”.

            Não basta sobreviver; é preciso viver com sentido. Analisando os benefícios que a ciência e a tecnologia trouxeram à humanidade, Victor Frankl percebeu uma lacuna em tudo isso: “Cada vez mais os homens têm um ‘como’ viver (dinheiro, bens materiais), mas eles não têm um ‘porque’ viver”. Diante do suicídio da filha, o pai desabafou: “Eu não entendo o por quê ela fez isso; ela sempre teve tudo”. Não é o dinheiro, não são as coisas materiais que dão sentido à minha existência. Eu preciso ir em busca do sentido da minha vida.    

Justamente porque “é preciso saber viver”, um homem ora a Deus pedindo sabedoria: “Supliquei, e veio a mim o espírito da sabedoria... Em comparação com ela, julguei sem valor a riqueza... A seu lado, todo o ouro do mundo é um punhado de areia e diante dela, a prata, será como a lama... Todos os bens me vieram com ela” (Sb 7,7.8.9.11). Nós precisamos de sabedoria para distinguir o bem real do bem aparente, o essencial do supérfluo, o que dura para a vida eterna daquilo que se estraga.

            O grande problema do nosso mundo atual é que ele retirou da nossa vida a perspectiva de futuro, o horizonte da esperança, a certeza da vida eterna. Tudo se resume no aqui e no agora. Se você não estiver feliz aqui e agora, que sentido tem viver? No entanto, um jovem procurou Jesus e perguntou: “O que devo fazer para possuir a vida eterna?” Qual jovem hoje perguntaria isso a Jesus? Quem de nós tem consciência de que “aquilo que fazemos nesta vida ecoa para a eternidade”? Quem de nós não somente crê, de fato, na existência da vida eterna, mas também a deseja de todo o coração?

            A vida eterna é não somente a resposta de Deus à insatisfação do coração humano, como também a constatação de que as injustiças e as desigualdades deste mundo exigem uma resposta, clamam por justiça, e Deus fará justiça, julgando cada ser humano e fazendo-o confrontar-se com a consequência das suas escolhas, das suas decisões e das suas atitudes enquanto viveu sua existência terrena (cf. 2Cor 5,10; Rm 14,12). É por isso que precisamos pedir ao Senhor o mesmo que o salmista pediu: “Ensinai-nos a contar os nossos dias, e dai ao nosso coração sabedoria!” (Sl 90,12). Os nossos dias passam rápido e escapam como água por entre os nossos dedos. Diante da brevidade da nossa existência neste mundo, precisamos que o Senhor nos ensine a viver como pessoas destinadas à vida eterna.

            O jovem que procurou por Jesus era um ser humano de coração bom, que vivia sua vida segundo a vontade de Deus (praticava os mandamentos, principalmente os que se referiam ao próximo!). Por isso, “Jesus olhou para ele com amor”, mas quis desafiá-lo a dar mais um passo no seu crescimento espiritual: “Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!' Mas quando ele ouviu isso, ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico (Mc 10,21-22).

            Quando ouvimos a Palavra de Deus, pode acontecer que, ao invés de ela nos trazer paz, traz inquietação; ao invés de nos encher de alegria, nos enche de tristeza. Isso é muito importante! Significa que Deus está querendo nos livrar de uma falsa segurança, uma segurança que está nos impedindo de sermos totalmente d’Ele. No fundo, Jesus desafiou aquele jovem a libertar-se da falsa segurança das suas riquezas, mas ele não teve essa coragem. Diante disso, Jesus constatou: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!... É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (Mc 10,23.25).

            Talvez essas sejam as palavras mais “escandalosas” de Jesus no Evangelho. Para atenuar o “escândalo”, várias tentativas foram feitas para “interpretar” de maneira mais suave o que Jesus disse, alegando que o camelo é uma corda e a agulha é uma porta estreita que existia em Jerusalém, na época de Jesus. No entanto, Jesus não admite ser “domesticado” pela nossa falta de coragem em viver com radicalidade seu Evangelho. Camelo é camelo e agulha é agulha! Não existe nada mais perigoso para nos afastar da vida eterna do que o dinheiro, simplesmente porque ele é garantia para uma vida tranquila aqui e agora. A única maneira de torná-lo uma ponte que nos conduza para a vida eterna é usá-lo para socorrer os pobres em suas necessidades (cf. Lc 16,9).  

            Neste mundo que idolatra o dinheiro e que privilegia os ricos em detrimento dos pobres, “é preciso saber viver”. Neste mundo onde o amor ao dinheiro contaminou igrejas e pregadores através da “teologia da prosperidade”, um mundo onde filhos de classe média e alta têm cada vez mais “como” viver, mas não têm “por que” viver (não encontram um sentido para a vida), “é preciso saber viver”. Neste mundo onde os valores estão invertidos, de cujo horizonte foi desfeita a crença na vida eterna, precisamos aprender a pedir a Deus sabedoria para viver nossa vida com sentido:

“Senhor, meu Deus, não te peço nem riqueza, nem pobreza; concede-me apenas o meu pedaço de pão de cada dia. Que eu não me torne cheio de bens materiais a ponto de achar que não preciso de Ti e que não me importa a vida eterna. Que eu também não seja tão pobre, tão miserável, a ponto de ter que roubar para sobreviver, e acabar profanando o nome do meu Deus” (citação livre de Provérbios 30,8-9). Torna-me consciente de que, se a minha maneira de viver a minha vida presente neste mundo me levar a perder a vida eterna, eu terei perdido tudo. Amém.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

terça-feira, 5 de outubro de 2021

POR QUE ESSA TEMPESTADE NA MINHA VIDA?

  

Quando Jonas decidiu fugir da missão que Deus lhe havia confiado – pregar a necessidade de conversão à cidade de Nínive, capital da Assíria – embarcou num navio que ia para a cidade de Társis, direção oposta a Nínive. “Mas o Senhor mandou um vento violento sobre o mar, levantando uma grande tempestade, que ameaçava destruir o navio” (Jn 1,4). Diante do desespero dos marinheiros, Jonas confessou que estava “fugindo da presença do Senhor”, isto é, estava caminhando na direção contrária à vontade de Deus e que a única forma de acalmar aquela tempestade seria jogá-lo no mar. “Então, pegaram em Jonas e atiraram-no ao mar; e cessou a fúria do mar” (Jn 1,15).

Quantas vezes se levanta dentro de você uma tempestade? A angústia toma conta da sua alma; as preocupações enchem sua mente; você perde sua paz interior e não consegue saber qual decisão tomar na sua vida... Nesta situação, é muito importante que você pare e se pergunte: O que está desencadeando essa tempestade na minha vida?

Aos prestar atenção às emoções do seu interior, Santo Inácio de Loyola percebeu que todas as vezes que ele conduzia seus pensamentos segundo a vontade de Deus, seu coração se enchia de paz. No entanto, todas as vezes em que ele pensava em se afastar da vontade de Deus e seguir a voz do seu ego, sua alma se enchia de perturbação. Foi então que ele fez esse importante discernimento: quando estamos conduzindo nossa vida segundo a vontade de Deus, podemos até sofrer dificuldades e privações, mas nosso coração está em paz.

Até que ponto a tempestade que está na minha vida não é um sinal evidente de que eu estou brigando com a vontade de Deus? Até que ponto essa angústia, essa inquietação que não passa não é consequência da minha recusa em viver segundo aquilo que Deus está me pedindo, para o meu próprio bem?

A verdade é uma só: se a minha tempestade interior é consequência da minha teimosia em conduzir minha vida na direção contrária do que Deus deseja para mim, eu vou continuar me debatendo com os ventos contrários, e a tempestade tenderá a se tornar cada vez mais violenta. Somente quando eu decidir ajustar minha vida à vontade de Deus e fazer aquilo que estou sendo chamado a fazer neste momento é que os ventos contrários cessarão e eu experimentarei uma profunda paz interior.

Pe. Paulo Cezar Mazzi