quarta-feira, 31 de março de 2021

FORTALECER O CORAÇÃO E TER CORAGEM DIANTE DA CRUZ

 Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Palavra de Deus: Isaías 52,13 – 53,12, Hebreus 4,14-16; 5,7-9; João 18,1 – 19,42.

 

            Desde que o mundo é mundo, o sofrimento e a morte sempre existiram, sempre se fizeram presentes na história humana. Mas, devido à pandemia do novo coronavírus, o sofrimento e a morte se impuseram sobre nós de uma maneira muito mais intensa e abrangente, de modo que nós, influenciados pela cultura do bem estar, da negação do sofrimento e da fuga da dor, estamos sendo obrigados a lidar com a cruz, exatamente com a cruz em relação à qual fazemos questão de nos manter distantes.

            “Olharão para aquele que transpassaram” (Jo 19,37). Nesta tarde não olhamos apenas para a cruz, mas para o Crucificado, para Aquele que nela foi pregado: um homem “tão desfigurado que não parecia ter aspecto humano” (Is 52,14); um homem que “não tinha aparência que nos agradasse” (Is 53,2); um “homem coberto de dores, cheio de sofrimentos” (Is 53,3). Através de seu Filho crucificado, o Pai nos convida a enxergar o que acontece à nossa volta, a não negarmos a realidade só porque ela não nos agrada, só porque ela escapa das nossas respostas.

O alto número de pessoas que têm morrido diariamente em nosso País deveria nos fazer repensar a nossa vida e os nossos valores. No entanto, muitos assumiram uma postura de indiferença e de negação da realidade, como se essas mortes fossem notícias falsas, inventadas pela imprensa. No fundo, nós não aceitamos reconhecer que somos responsáveis direta ou indiretamente pela dor do outro, como nos revela o profeta: “ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes” (Is 53,5). A morte não é provocada somente quando se faz o mal, mas também quando não se faz o bem que se pode fazer. Quando colocamos nosso bem estar e nossos interesses financeiros acima da vida das outras pessoas, nós as expomos a situações de morte.

Consideremos o salmo dessa sexta-feira santa: “Em vossas mãos, Senhor, entrego o meu espírito” (Sl 31,6). Nessa oração aparece uma palavra que traduz a vida de Jesus: “entrega”. Ele fez de sua vida uma constante entrega aos homens, especialmente às pessoas necessitadas de salvação. Antes de ser entregue à cruz, ele entregou seu Corpo e seu Sangue em alimento para os seus discípulos. No momento em que está crucificado, ele se entrega ao Pai com toda a confiança: “Em vossas mãos, Senhor, entrego o meu espírito, porque vós me salvareis, ó Deus fiel! (...) Eu entrego em vossas mãos o meu destino; libertai-me do inimigo e do opressor!” (Sl 31,6.16). Desse modo, Jesus nos ensina a confiar ao Pai tudo aquilo que nos atinge e a nos entregar a cada instante em Suas mãos. “Fortalecei os corações, tende coragem, todos vós que ao Senhor vos confiais!” (Sl 31,25).

Não são poucos os ventos contrários que têm soprado em nossa direção. Por isso, precisamos lançar nossas raízes nesta Palavra: “Fortaleça seu coração! Tenha coragem!” Quanto mais o vento sopra contrário, mais a árvore aprofunda suas raízes para se manter em pé e não tombar. Esse aprofundar as raízes se traduz na carta aos Hebreus com essas palavras: “Permaneçamos firmes na fé que professamos. Com efeito, temos um sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado. Aproximemo-nos então, com toda a confiança, do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno” (Hb 4,14-16). O Crucificado é o Ressuscitado! Aquele que esteve na cruz está agora vivo e ressuscitado diante do Pai. Nós nos agarramos à sua cruz sabendo que ela se transformou no trono da graça, onde podemos alcançar misericórdia e salvação. Fazendo nossa própria experiência de cruz, nós permanecemos firmes na fé que professamos, pois sabemos em quem depositamos a nossa fé: n’Aquele que se compadece da nossa fraqueza. Ele se tornou “causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (Hb 5,9).

A narrativa da Paixão nos recorda que nós não somos discípulos somente do Ressuscitado, mas do Ressuscitado que foi Crucificado. Com Ele queremos aprender a beber o cálice que o Pai nos dá (cf. Jo 18,12), isto é, enfrentar o sofrimento e a cruz que nos cabem enfrentar neste momento da história. Por mais que seja difícil lidar com a nossa cruz, não queremos negar a nossa fé; não queremos deixar de ser discípulos do Crucificado (cf. Jo 18,18). Pelo contrário, suplicamos ao Pai que se estabeleça na face da terra o Reino de seu Filho, Reino que não é deste mundo e que não se apoia na força da violência, mas do amor que se faz serviço em favor da vida (cf. Jo 18,36).

Vivendo num país infectado por fake news e por uma política proposital de desinformação, nós confiamos na força da verdade que é o próprio Jesus (Jo 18,37). A sua verdade fará cair as máscaras dos falsos messias do nosso tempo, de todos aqueles que usam da religião unicamente para seus interesses políticos. Se são muitas as pessoas que são indiferentes à cruz do seu semelhante, nós nos colocamos junto à cruz daqueles que estão à nossa volta como o discípulo amado junto à cruz de Jesus (cf. Jo 19,26-27). Ali está também Maria Santíssima, que nos ensina a ser uma presença solidária junto de quem sofre.       

Enfim, como Nicodemos, queremos espalhar perfume onde existe o mau cheiro da morte: o perfume da esperança onde há o mau cheiro do desespero; o perfume da consolação onde há o mau cheiro da desolação; o perfume da solidariedade onde há o mau cheiro da indiferença; o perfume do alimento onde há o mau cheiro da fome; o perfume da palavra de conforto onde há o mau cheiro do abatimento; o perfume do diálogo onde há o mau cheiro do confronto; o perfume da reconciliação onde há o mau cheiro da inimizade...

A enorme quantidade de perfume que Nicodemos trouxe para ungir o corpo de Jesus (30 kg!), revela o quanto Jesus significava para ele (cf. Jo 19,39). De uma certa forma, esse perfume aponta para a ressurreição, para a vitória da vida sobre a morte. Se o mau cheiro da morte está espalhado por todos os lugares do nosso Brasil, espalhemos nesses lugares o perfume da nossa fé na ressurreição, o perfume da nossa esperança de vida eterna, o perfume da nossa confiança de que toda situação de cruz se converterá em uma vida transformada, ressuscitada.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

terça-feira, 30 de março de 2021

DISCÍPULOS DO CORDEIRO DE DEUS

 Missa da Ceia do Senhor. Palavra de Deus: Êxodo 12,1-8.11-14; 1Coríntios 11,23-26; João 13,1-15.

 

            Esta noite nos fala de duas páscoas: a páscoa dos judeus e a Páscoa de Jesus. A páscoa dos judeus nos foi narrada no texto do Êxodo; a de Jesus, na primeira carta de São Paulo aos Coríntios e no Evangelho segundo João. A páscoa dos judeus tem como personagem principal um animal: o cordeiro; a páscoa de Jesus não tem um cordeiro (animal), mas o próprio Jesus, “o Cordeiro de Deus” (Jo 1,29), entregando seu corpo e dando seu sangue em comida e bebida. Enquanto o sangue do cordeiro serviu para proteger as casas dos hebreus da praga exterminadora que passou pelo Egito, o sangue de Jesus será derramado na cruz para nos dar o perdão dos pecados, libertando-nos da praga exterminadora que é a morte. Jesus morre para nos libertar da morte; ele é condenado para nos libertar de todo tipo de condenação.

            Muito diferente da praga exterminadora que passou pelo Egito e poupou as famílias dos hebreus, por causa do sangue do cordeiro passado nas portas das casas, o novo coronavírus não poupou inúmeras pessoas, inúmeras famílias em nosso país. Portanto, essa páscoa será celebrada em muitas famílias não com gosto de ressurreição, mas com gosto de morte; não com alegria, mas com dor e saudade. Por causa da Covid 19, muitas pessoas passaram deste mundo para o Pai antes da hora. Assim como o Egito há muitos séculos atrás, o Brasil se tornou um imenso cemitério, não porque Deus resolveu punir nosso País, mas porque nosso Governo e parte da população, além de não acreditarem na praga exterminadora, promoveram campanhas de desinformação nas redes sociais, combatendo o uso de máscaras, o distanciamento social e desacreditando as vacinas.     

            Nesta noite temos diante de nós dois tipos de sangue: o sangue de um cordeiro, que morre sem saber a razão (sangue “inconsciente”), e o sangue do Cordeiro de Deus, que livre e conscientemente aceita ser derramado na cruz pela salvação de todo ser humano. Na última Ceia, Jesus se antecipa ao seu sacrifício de cruz e dá seu Corpo e Sangue em alimento, dizendo: “Fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24.25). Fazer memória significa atualizar a presença de Jesus em meio a nós. Seu sacrifício na cruz foi realizado uma vez por todas, mas ele se atualiza em cada Eucaristia para que todos os homens de todos os tempos sejam alcançados pela redenção realizada na cruz. Se a páscoa dos judeus devia ser celebrada todos os anos, muito mais a Páscoa de Jesus deve ser continuamente celebrada até que ele venha: “Todas as vezes... que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha” (1Cor 11,26).

            Em cada Eucaristia, Jesus continua entregando o seu Corpo e derramando o seu Sangue pela Igreja e por toda a humanidade. Em cada Eucaristia, nós anunciamos a morte redentora de Jesus, proclamamos a sua ressurreição e renovamos a nossa esperança na sua vinda definitiva. Em cada Eucaristia, nós nos comprometemos a nos tornar “corpo doado” e “sangue derramado”, pois Jesus disse, ao final da Ceia: “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,14-15).

            Lavar os pés era um serviço realizado pelos escravos, na época de Jesus. Ao nos convidar a imitá-lo, Jesus quer que assumamos o nosso lugar na vida como lugar de serviço. Foi exatamente na última Ceia que ele afirmou: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve” (Lc 22,27). Essa é a memória viva que Jesus quis deixar de si mesmo para a Igreja e para o mundo: ele não apenas desceu do céu, mas também se abaixou até os pés dos homens para perdoar os pecadores, para levantar os caídos, para trazer à mesa todos os excluídos dos banquetes, para alimentar todos os famintos. Jesus quer que todos tenham parte com ele no banquete do Reino de Deus. Ele quer que a Eucaristia traduza o seu desejo de salvar a todos; que ela se torne a festa que celebra a volta do filho que havia se perdido e foi encontrado, a ressurreição do filho que havia morrido e voltou a viver (cf. Lc 15,23.24.32).

            Diante dessa cena do Lava-pés vale a pena lembrarmos o conselho de Jesus: “Deem de esmola o que vocês têm e tudo ficará limpo para vocês” (Lc 11,41). Nossos pés ficam limpos quando caminhamos na direção de quem necessita de nossa ajuda. Nossas mãos ficam limpas quando as estendemos para aqueles que precisam de nós. As mesmas mãos que se estendem para receber a Eucaristia precisam se estender para tocar o Corpo de Cristo na “carne” dos que sofrem. Quantos hoje deveriam ter suas mãos sujas por se contaminarem com a dor do seu semelhante, mas elas estão limpas porque são próprias de pessoas que costumam “lavar as mãos” diante do sofrimento do seu semelhante?  

            Nesta noite, a grande maioria do nosso povo não poderá receber o Corpo e o Sangue de Jesus, devido ao isolamento social. Diante de alguns bispos, padres e leigos negacionistas, precisamos olhar para Jesus. Bem no início do seu ministério, ele esteve num sábado na sinagoga. Ao ver um homem com uma mão deficiente, mandou-o se colocar no meio da sinagoga. Então Jesus perguntou se era permitido salvar uma vida ou deixa-la morrer em dia de sábado. Ninguém respondeu. Jesus mandou o homem estender sua mão deficiente e ela ficou curada (cf. Mc 3,1-6) Embora fosse possível infringir a lei do sábado em caso de risco de morte, Jesus fez questão de curar um homem deficiente, que não corria risco algum de morte, para nos dizer que, no centro da Igreja, no centro do cristianismo, deve estar o cuidado com a vida, inclusive física.

            Católicos que passarão a Semana Santa protestando por não poderem comungar a Eucaristia colocam no centro da sua fé não o bom senso, não o cuidado com a vida alheia, mas o seu “direito” egoísta de receber a Eucaristia. No entanto, o Evangelho fala por si só: essa é uma atitude própria de discípulos de fariseus, não de discípulos de Jesus Cristo, para quem a verdadeira religião deve estar a serviço da vida física, emocional e espiritual das pessoas.           

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 24 de março de 2021

DISCÍPULOS DE JESUS OU DE BARRABÁS?

 Missa do domingo de ramos: Palavra de Deus: Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Marcos 15,1-39

 

            Final de março de 2020: os casos de infecção pela Covid 19 começaram a se alastrar em nosso País e fomos obrigados a nos isolar em casa, para ajudar a diminuir a velocidade da contaminação pelo vírus. Esperava-se que a pandemia nos tornasse pessoas melhores, mas, em muitos casos, não foi o que aconteceu. A pandemia fez vir para fora o que as pessoas têm de pior: o egoísmo, a ignorância, o pouco caso com a vida dos outros, o “dane-se!”. Desse modo, chegamos ao final de março de 2021 vendo o nosso País caído, de joelhos no chão, não porque está orando a Deus, mas porque está sendo vencido pelo novo coronavírus, uma vitória que foi programada ao se negar a gravidade da doença, ao se opor à ciência, ao se combater o uso de máscaras e o distanciamento social e ao se fazer campanha contra as vacinas.  

            “Quem vocês querem que eu solte: Jesus ou Barrabás?”, perguntou Pilatos à multidão. E a multidão, instigada por seus líderes religiosos, gritou: “Barrabás!”. Esta é também a inversão de valores que o Brasil vive atualmente. Uma parcela de líderes religiosos e de brasileiros que se consideram cristãos, defendem a facilitação do porte de armas ao mesmo tempo em que combatem as vacinas; defendem a economia e não se importam com a preservação da vida das pessoas, vida que, neste momento, está exigindo o sacrifício da economia como única forma de ser salva. Triste inversão de valores! Era de se esperar que as religiões tornassem as pessoas mais conscientes e mais comprometidas com a vida que Deus quer para todo ser humano, mas, no Brasil, em muitos casos, alguns líderes religiosos trabalham para manter as pessoas na ignorância, de modo que elas não percebam a contradição entre afirmarem teoricamente que creem em Jesus Cristo, quando, na prática, elas se identificam com Barrabás, um assassino.

            O Evangelho deste domingo de ramos está nos perguntando de quem somos discípulos: de Jesus ou de Barrabás? Somos discípulos d’Aquele que oferece sua vida para que outros tenham vida, ou daquele que não se importa com a vida alheia? O Evangelho deste domingo nos pergunta como estamos respondendo ao mal e ao sofrimento que existem à nossa volta. Como Jesus respondeu ao mal e ao sofrimento que ele encontrou na humanidade? Sendo verdadeiro Servo de Deus, ele não fechou o seu ouvido, nem virou o seu rosto (cf. Is 50,4-7). Pelo contrário, ele abriu seus ouvidos para ouvir o que o Pai tinha a dizer ao ser humano que sofre. No meio de tantas pessoas desoladas, Jesus nos convida a manter nossos ouvidos abertos ao Pai, para que Ele coloque em nossa boca palavras de conforto para as pessoas que estão abatidas à nossa volta. Uma pessoa que serve a Deus não pode ficar calada diante do sofrimento do seu semelhante. Da boca de uma pessoa que sabe que sua vida é uma missão, como foi a de Jesus, jamais deve sair a expressão “dane-se!”, em relação ao que está acontecendo à sua volta.

            Durante todo o seu julgamento, Jesus permaneceu calado. Aquele que passou sua vida toda levando uma palavra de conforto à pessoa abatida não disse uma palavra para se defender, porque colocou sua defesa nas mãos de Deus: “O Senhor Deus é o meu auxiliador” (Is 50,7). Além disso, o silêncio de Jesus é o silêncio de quem sabe que aquele sofrimento deve ser enfrentado, e não combatido, muito menos negado. O que Jesus tinha para falar já havia falado na oração ao Pai: “Abbá, meu querido Pai! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice; porém, não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,36). Se agora ele é condenado à morte, abraça esta hora com dor, mas na mais profunda obediência ao Pai que está permitindo sua condenação e sua morte.

            Há um detalhe importante na hora em que Jesus vai ser crucificado: “Deram-lhe vinho misturado com mirra, mas ele não o tomou” (Mc 15,23). Essa bebida servia como anestésico, para que o que fosse crucificado não sentisse toda a intensidade da dor da crucificação. Jesus rejeita esse anestésico; quer sofrer conscientemente. Como nós nos portamos diante da nossa ou da dor dos outros? Usamos de meios para manter nossa consciência anestesiada? Todos nós somos influenciados por um mundo que não aceita a dor e que oferece uma porção de subterfúgios para não senti-la. As drogas que o digam! Jesus nos desafia a encarar a vida nos olhos e a não fugir daquilo que nos cabe enfrentar. A pandemia está aí para ser enfrentada, não negada. A crise financeira, consequência natural da pandemia, está aí para ser enfrentada, e não para nos jogar nos braços do suicídio, que acaba sendo uma recusa a sofrer “além da conta”.

            Enfim, chega o momento em que Jesus rompe o seu silêncio. Tendo sido crucificado às nove horas da manhã (cf. Mc 15,25), Jesus suporta sua agonia por seis horas, até às três da tarde. Se ele não tivesse sido flagelado com tanta violência, teria suportado por mais tempo, até por dias, como era comum acontecer com alguns condenados. Mas ele já havia sofrido demais! Suas forças haviam se esgotado. Foi então que ele rompeu seu silêncio e gritou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Esse grito de Jesus certamente escandaliza muitas pessoas! Como é possível que aquele que a vida toda confiou no Pai morra sentindo-se abandonado por Ele? Como é possível que o Filho não sinta o Pai junto de si no momento de maior sofrimento?* Certamente, nunca o Pai esteve tão junto do seu Filho como neste momento de cruz, mas Jesus expressa no seu grito a verdade mais profunda que nos habita: na hora mais intensa da dor, nós não sentimos Deus. Ele está ali, nos sustentando nos Seus braços, mas, naquele momento, nós nos sentimos completamente sozinhos, literalmente abandonados!

“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Quantas pessoas que morreram de câncer ou de Covid fizeram essa pergunta na hora da morte? Quantas famílias, esposas, maridos, filhos, pais, fizeram essa mesma pergunta, ao perderam alguém que eles amavam? Essa pergunta precisa ser levada a sério! Ela não pode ser ignorada, não pode ser escondida para não nos escandalizar, porque ela nos habita: para cada ser humano que crê, sempre chegará o momento de questionar Deus. A fé nunca será blindada contra a dúvida, contra o sentimento de abandono por parte de Deus. Então, o melhor que temos a fazer é nos jogar nos braços do Pai dizendo o quanto estamos nos sentindo sozinhos, abandonados, esquecidos, ignorados por Ele!

Se muitas pessoas se escandalizam com o questionamento que o Filho faz do Pai na hora da morte, um homem não se escandaliza; pelo contrário, se abre à fé, ao ver como Jesus morre: “Quando o oficial do exército, que estava bem em frente dele, viu como Jesus havia expirado, disse: 'Na verdade, este homem era Filho de Deus!’” (Mc 15,39). A maneira como lidamos com a nossa cruz, com a dor que atravessa o nosso caminho, com o sofrimento que atinge pessoas à nossa volta, pode levar outros à fé. Quem dera as pessoas, ao nos virem sofrer e até mesmo morrer, dissessem a nosso respeito: “Verdadeiramente, essa pessoa era uma filha de Deus!”. A experiência de cruz não se dá em nossa vida para destruir a nossa fé, mas para comprová-la! O Pai permite que a cruz atravesse o nosso caminho não para nos fazer desistir de sermos discípulos de seu Filho, mas para nos confirmar como tais.

A experiência de cruz sempre será o lugar existencial onde nos definiremos ou como discípulos de Barrabás, ou como discípulos de Jesus; ou como pessoas que se importam com a vida do seu semelhante ou como pessoas que, com suas atitudes inconsequentes, favorecem com que a morte se dissemine e ceife a vida de pessoas antes do tempo previsto pelo Pai.

 

            * O grito de Jesus é o grito “de todos os homens que sofrem neste mundo pela ocultação de Deus. Ele leva perante o coração do próprio Deus o brado de angústia do mundo atormentado pela ausência de Deus” (Bento XVI).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 19 de março de 2021

TER UMA RAZÃO PARA SOFRER O QUE SE SOFRE

 

Missa do 5. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Jeremias 31,31-34; Hebreus 5,7-9; João 12,20-33.

 

            Tudo o que vive – plantas, animais, seres humanos – carrega em si um forte instinto de sobrevivência. Por isso, tudo aquilo que ameaça a nossa vida nos causa angústia. Não queremos morrer; lutamos para viver. No entanto, Jesus nos questiona quanto a essa atitude de evitar a morte a todo custo. Ele nos lembra de que a vida não consiste somente em não morrer. O mais importante não é apenas viver, mas ter um motivo para viver. A vida vale a pena não quando se mantém o máximo possível distante da morte, mas quando se doa, se gasta, se oferece para gerar vida nas outras pessoas e no mundo em que nos encontramos. A vida vale a pena não pelo tempo em que conseguimos nos manter vivos, mas pelos frutos que produzimos enquanto estamos plantados na Terra.

            Somos sementes e, como tais, somos portadores e geradores de vida. Cada um de nós foi semeado em um lugar específico da Terra para produzir frutos, para produzir paz, diálogo, perdão, reconciliação, justiça, esperança, alegria, vida. Assim como a razão de ser do grão de trigo consiste em cair na terra e produzir muito fruto, assim a razão de ser da nossa existência está em permitirmos ser afetados pela realidade à nossa volta – este é o sentido de “cair na terra” – e produzir muito fruto, ou seja, em abraçar a tarefa que a vida nos pede neste momento, para que a realidade à nossa volta se transforme graças à fecundidade que habita em nós, em vista do bem comum.

            Assim como o grão de trigo é um “grão para” se tornar pão e alimentar, assim a vida de todo discípulo de Jesus é chamada a ser uma “vida para” ser doada, gasta, consumida num esforço em fazer o bem a quem precisa de nós, em tornar o mundo melhor com a nossa presença. Jesus nos alerta para o perigo de que a vida pode ser perdida! Perde-se a vida não porque se morre de doença, de acidente ou de velhice; perde-se a vida quando ela é vivida de maneira egoísta e individualista, sem fazer diferença, sem se tornar uma vida que tenha feito a diferença para a humanidade.

            Aquilo que mais nos afasta de uma vida doada, entregue a uma causa, é o sofrer. Ao cair na terra, o grão de trigo sofre o processo do apodrecimento, para que a vida que está guardada dentro dele venha para fora. Como vivemos num mundo que centra tudo no bem estar pessoal, a maioria das pessoas mede sua qualidade de vida pelo tanto de bem estar que sentem e pelo tanto de sofrimento que não sentem. Não foi assim que Jesus escolheu viver. Ele escolheu cair na terra e produzir muito fruto; ele escolheu ocupar o seu lugar neste mundo, aceitando o sofrimento que é próprio de toda pessoa que escolhe defender o bem, a verdade, a justiça, a vida.  

                 A cruz foi a hora de Jesus, o verdadeiro grão de trigo, ser triturado para gerar vida. Como ele vivenciou este momento? Admitindo e posicionando-se diante da angústia que estava sentindo: “Agora sinto-me angustiado. E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora!'? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome!’” (Jo 12,27-28). Enquanto muitas pessoas fogem daquilo que sentem e recusam-se a ocupar o seu lugar na vida, Jesus nos incentiva a não negar a angústia que sentimos diante da nossa hora de cruz. Os sentimentos surgem em nós para serem ouvidos e exigem de nós uma resposta. Enquanto a maioria apenas reage ao que sente, Jesus nos incentiva a responder ao que estamos sentindo, sendo que responder significa responsabilizar-se pelas escolhas que fazemos e pelas decisões que tomamos diante daquilo que estamos sentindo.

            “Foi precisamente para esta hora que eu vim” (Jo 12,27). Quando sentimos repulsa diante de uma situação de cruz, a única coisa que não nos faz acovardar, retroceder e abandonar a nossa missão é a consciência de que aquele sofrimento deve ser enfrentado por nós; aquele sofrimento pode ser consequência do lugar que fomos chamados a ocupar na vida. Todo ser humano tem a sua “hora” de cruz, hora de comprovar se ele é um homem meramente carnal, ou se também é um homem espiritual; hora de testemunhar sua fé e sua esperança; hora de transcender a mera sobrevivência numa vida terrena para desejar entrar na verdadeira vida, a vida eterna.   

            Resumindo, Jesus nos ensina no Evangelho de hoje que todos sofrem, mas a questão é ter uma razão, uma causa para sofrer o que se sofre. Jesus nos desafia a ocupar o nosso lugar na vida e a pagar o preço por estar neste lugar, nesta posição, abraçando a missão de produzir frutos e defendendo os valores que promovem a vida que Deus quer para cada ser humano. Ainda que, como Jesus, muitas vezes nos sintamos angustiados e tenhamos a tendência a rejeitar determinada experiência de cruz, os sentimentos de angústia, de medo, de ameaça e de rejeição não podem tirar o nosso foco da missão. Precisamos fazer como Jesus: abraçar a nossa hora; sermos fiéis à nossa missão, mesmo sentindo o que sentimos.     

 

            Oração: Senhor Jesus, às vezes sinto-me angustiado(a); sinto repulsa diante da minha experiência de cruz. É quando sou tentado(a) a romper com a minha fidelidade, com os meus compromissos, abandonando a minha missão devido ao custo que estou tendo que pagar. Mas o Senhor me convida a não desacreditar da minha fecundidade, a não buscar uma vida egoísta, que se mantenha distante da realidade que sou chamado(a) a transformar com a doação da minha própria vida. O Senhor me convida a aceitar “cair na terra e morrer, para produzir muito fruto”. Ajuda-me a ocupar o lugar que fui chamado(a) a ocupar e a pagar o preço por querer ser um(a) verdadeiro(a) cristão(ã). Quero aprender a abraçar a minha “hora”, a hora de sofrer pela defesa da verdade e da justiça, pela defesa dos valores do Evangelho, pela defesa da vida que o Senhor quer para todo ser humano. Sustenta-me com a tua graça, para que, relativizando esta vida terrena, eu me torne sempre mais destinado(a) à vida eterna. Amém. 


Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 11 de março de 2021

DEUS É VERDADEIRAMENTE AMOR?

 

Missa do 4. dom. da quaresma. Palavra de Deus: 2Crônicas 36,14-16.19-23; Efésios 2,4-10; João 3,14-21.

 

Quantas pessoas ainda creem em Deus? Muitas pessoas deixaram de crer em Deus por causa das imagens deformadas d’Ele que lhes foram mostradas. Muitos deixaram de crer em Deus porque os homens que lhes falavam d’Ele negavam com as atitudes aquilo que anunciavam com a boca. Maior ainda é o número das pessoas que abandonaram a fé em Deus porque Ele não impediu o sofrimento, a dor, a morte, o absurdo e a tragédia na vida da humanidade.

Considerando as pessoas que ainda hoje mantêm sua fé em Deus, precisamos perguntar: em qual Deus as pessoas creem? Alguns creem num Deus juiz, implacável em seu julgamento contra os pecadores. Outros creem num Deus que manda exterminar da face da terra todos os “infiéis”, isto é, todos os que não creem n’Ele. Outros ainda creem num Deus que não se importa com o corpo das pessoas – se passam fome, se estão desempregadas, se são violentadas, se sofrem injustiças – mas apenas com a salvação da alma delas.

“Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único, que está voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer” (Jo 1,18). Somente o Filho pode nos revelar o verdadeiro rosto do Pai. Todas as ideias, conceitos e imagens que possamos ter a respeito de Deus precisamos confrontar com a revelação que o Filho faz do Pai nos evangelhos. Nós só podemos conhecer o Pai se nos aproximarmos do Filho: “Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27). Portanto, se dissemos, com toda a razão, que “Jesus é Deus” – divino como o Pai – precisamos também dizer verdadeiramente que “Deus é Jesus” (José Maria Castillo), isto é, Deus age, fala e se mostra a nós na pessoa de Jesus Cristo.

A maneira como Deus se revela em seu Filho Jesus está expressa no Evangelho de hoje, pela boca do próprio Jesus: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Deus amou; Deus ama. Toda pessoa que faz uma verdadeira experiência de amor, faz uma verdadeira experiência de Deus, porque “Deus é amor” (1Jo 4,8). E Jesus deixa claro que o amor de Deus se manifestou concretamente ao mundo, isto é, à humanidade. Foi por isso que Jesus nos ensinou a orar a Deus chamando-O de “Pai nosso que estais nos céus”; não num determinado templo, não numa determinada religião ou igreja, mas “nos céus”, acima de todos os seres humanos porque Pai de todos os seres humanos.

Deus ama a humanidade, essa mesma humanidade que nós julgamos perdida, na qual a maioria das pessoas vive como se Deus não existisse; essa mesma humanidade que muitas vezes se comporta de maneira contrária à vontade de Deus. Porque ama a humanidade, Deus Pai não tem homens a exterminar, mas filhos a resgatar e salvar. Porque ama a humanidade, o Pai “deu o seu Filho único”; “deu” primeiramente no sentido de enviar o seu Filho “para procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10), mas “deu” também no sentido de “entregar”, de permitir que seu Filho fosse entregue numa cruz. O Pai não enviou o seu Filho para morrer numa cruz, mas para salvar a humanidade. Se a consequência desse desejo do Pai foi a morte de seu Filho único, Ele aceitou essa morte por dois motivos: primeiro, para que o Filho, morrendo como um condenado, nos resgatasse de todo tipo de condenação (cf. Rm 8,1); segundo, para que a humanidade, ao olhar para o Filho crucificado, sempre se lembrasse do quanto o Pai a ama.

Deus não tem imagem, mas Jesus “é a Imagem do Deus invisível” (Cl 1,15). Diante de tantas imagens deformadas de Deus, precisamos olhar para o Filho crucificado e compreender: isso aconteceu porque Deus ama a humanidade. É na cruz que se revela o amor do Pai por todo ser humano. No entanto, é quando as pessoas fazem sua experiência de cruz que elas duvidam não só da existência de Deus, mas sobretudo de que Ele as ama. É verdade que “não podemos entender a frase ‘Deus é amor’ (1Jo 4,8) de um modo muito ingênuo demais, como se Deus dispusesse tudo com amor. A realidade muitas vezes brutal do mundo nos força a não entender ingenuamente Deus como Pai amoroso” (Anselm Grün). Para nós, seres humanos, quem ama não deixa o amado sofrer. Mas para Deus, o amor permite que o amado sofra quando aquele sofrimento é para o seu bem e a sua salvação. Para Deus, o amor aceita receber sobre si o ódio do mundo e ser morto por ele, para que fique claro à humanidade que o ódio só produz morte; o amor é a única coisa que nos faz viver.

“Deus é Jesus”; o Pai escolheu revelar a nós o seu rosto na pessoa do Filho, e o Filho esclarece: “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). Os braços abertos do Filho na cruz são os braços do Pai que abraçam todos os condenados e os feridos da humanidade. Todas as pessoas que sofrem precisam se sentir abraçadas pelo Pai na cruz de seu Filho. Todas as pessoas que neste momento estão crucificadas precisam ser sinceras e corajosas e fazerem ao Pai a mesma pergunta que o Filho lhe fez: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Todas as pessoas que, por diversas situações, estão se sentindo crucificadas precisam se deixar abraçar pelo Pai, como fez o Filho ao dizer: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46); em tuas mãos entrego o meu adoecer, o meu sofrer, o meu perder, o meu morrer.

 

Oração: Deus, nosso Pai, o Senhor disse que as montanhas e as colinas podem até mudar de lugar, mas o teu amor por nós, pela humanidade, não mudará (cf. Is 54,10). Queremos pedir perdão pelas vezes em que duvidamos do teu amor, porque a dor, a injustiça, o sofrimento não nos deixaram sentir a tua presença junto a nós. Pedimos que os braços da cruz de teu Filho possam abraçar todo ser humano; em especial, aquele que sofre neste momento, aquele que precisa voltar a crer em Ti, que precisa se sentir amado por Ti. Liberta a humanidade de todo tipo de condenação. Fortalece a nossa fé em teu Filho Jesus. Ensina-nos a falar corretamente de ti para as pessoas do nosso tempo. Que o teu amor misericordioso e fiel se derrame sobre todo ser humano, curando suas feridas e trazendo-o para junto do teu coração. Em nome de Jesus. Amém!  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

 

quinta-feira, 4 de março de 2021

TEMPLOS PURIFICADOS, DEFENDIDOS E CUIDADOS

 Missa do 3. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Êxodo 20,1-17; 1Coríntios 1,22-25; João 2,13-25.

 

“Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração! Examina-me, e conhece minhas preocupações. Vê se não ando por um caminho fatal e conduze-me pelo caminho eterno” (Sl 139,23-24).  O Evangelho de hoje é um convite a permitir que Jesus visite o templo do nosso corpo, da nossa consciência e do nosso coração. Que Ele, que conhece o ser humano por dentro, possa examinar nossos pensamentos e sentimentos, as intenções que trazemos guardadas em nosso coração, e trazer à luz tudo aquilo que está escondido na sombra, no oculto de nós mesmos. Que Ele nos torne conscientes das motivações que estão por trás de atitudes que nos adoecem, ou que nos levam a pecar, que nos levam a nos comportar de maneira oposta aos seus ensinamentos.     

            Jesus esteve poucas vezes no Templo de Jerusalém. A maior parte da sua vida, ele passou fora dos templos, porque escolheu colocar-se junto daqueles que não podiam entrar nos templos: os pobres, os pecadores, os doentes, aqueles que a religião e política da época de Jesus desprezavam e viam como “gente perdida”. Jesus dedicou toda a sua vida a reconstruir o templo no qual Deus mais deseja habitar: o ser humano. Por isso, ele curou doentes, ressuscitou mortos, expulsou demônios, perdoou pecadores, absolveu culpados e condenados. Por compreender o ser humano no sentido bíblico – corpo, alma e espírito –, Jesus sempre procurou restaurar a vida na sua dimensão física, emocional e espiritual.

            O Evangelho nos coloca diante dessa atitude de Jesus: “Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas” (Jo 2,15). O Jesus manso e humilde de coração, bondoso e misericordioso, se enche de indignação contra uma religião que se converteu em negócio lucrativo, uma religião que se mantém distante dos que sofrem, que se cala diante das injustiças e se apoia no dinheiro daqueles que exploram os mais pobres. A indignação de Jesus é a mesma de Deus na época do profeta Isaías: “Quando estendeis vossas mãos, desvio de vós os meus olhos... Vossas mãos estão cheias de sangue” (Is 1,15). Para Deus, é inconcebível que um cristão seja contra o aborto e a mesmo tempo a favor da pena de morte. É inconcebível que um cristão separe o seu culto a Deus da sua vivência comunitária e social: “Aquele que não pratica a justiça e não ama o seu irmão não é de Deus” (citação livre de 1Jo 3,10).

            Jesus é o verdadeiro e único templo de Deus, um templo de portas abertas para todos, não somente para quem se considera bom cristão. No Templo de Jerusalém havia um muro que separava os judeus dos gentios (pagãos). Mas o apóstolo Paulo afirma que, com o seu corpo pregado na cruz, Jesus derrubou esse muro de inimizade que separava os povos (cf. Ef 2,14): “É por meio dele que todos nós, judeus e gentios, num só Espírito, temos acesso ao Pai” (Ef 2,18). O Pai de Jesus não habita exclusivamente no Templo de Jerusalém, nem em qualquer outro lugar sagrado; Ele é o “Pai nosso que está nos céus”, acima de todos os seres humanos porque Pai de todos eles, sem discriminação nem exclusão alguma.

            Ao purificar o Templo de Jerusalém, Jesus nos deixou uma nova compreensão do Templo onde Deus habita: “Jesus estava falando do Templo do seu corpo” (Jo 2,21). De fato, o apóstolo Paulo afirmará mais tarde que o corpo do cristão é templo do Espírito Santo de Deus (cf. 1Cor 3,16-17; 6,19). A cultura moderna dá muito valor ao corpo, mas não enquanto templo do Espírito de Deus e sim enquanto fonte de sedução e objeto de consumo. De um lado, temos corpos sarados, esteticamente perfeitos, mas habitados por um espírito atrofiado, porque a dedicação com o físico não se dá no campo espiritual. De outro lado, temos corpos profanados pela fome, pelo abuso sexual, pelas drogas, pela prostituição, corpos tomados por doenças e corpos que se tornaram gibis ambulantes, devido às suas inúmeras tatuagens.

            Que compreensão temos do nosso corpo? Enquanto alguns cultuam seu corpo “perfeito”, outros rejeitam o próprio corpo, porque ele está fora dos padrões de estética exigidos pela sociedade da aparência. Quantos precisam reconciliar-se com seu próprio corpo? Quantos precisam parar de agredir o próprio corpo com aquilo que comem, bebem e pela maneira como se vestem? Quantos precisam prestar atenção àquilo que o corpo está lhes comunicando quando “somatiza” doenças emocionais?

            “O zelo (cuidado) por tua casa me consumirá” (Jo 2,17). Que cuidado temos para com nossa Igreja? Quantos de nós temos compartilhado mensagens de ataque à nossa própria Igreja nas redes sociais? Quantos de nós rejeitam o Magistério do Papa Francisco e dos nossos Bispos, representados pela CNBB, mas acolhem sem discernimento doutrinas de sacerdotes e leigos católicos que semeiam discórdia e divisão em nossa Igreja? Quantos de nós estamos conscientes da necessidade de fazermos a nossa doação no Dia Nacional da Coleta da Solidariedade (28 deste mês), por meio da qual a CNBB sustenta diversos trabalhos de amparo, defesa e reconstrução de “templos humanos” em nosso País?

“Vendo os sinais que realizava, muitos creram no seu nome. Mas Jesus não lhes dava crédito, pois ele conhecia a todos; (...) ele conhecia o homem por dentro” (Jo 2,23-25). Muitos se dizem cristãos. Muitos se consideram “verdadeiros” católicos. Mas Jesus conhece cada um de nós. Ele sabe quem se deixa questionar pela incômoda verdade do seu Evangelho e quem faz do Evangelho um verniz para destacar o brilho de sua própria imagem. Jesus conhece quem são os cristãos que trabalham em defesa dos templos agredidos e profanados em nosso País e quem são aqueles que se mantêm distantes desses templos, preocupados unicamente com o templo da sua alma e com a glória mundana da Igreja.   

 

            Oração: Senhor Jesus Cristo, visita-me com a luz da tua verdade. Quero tomar consciência do estado em que se encontra o templo que eu sou. Purifica-me dos meus pecados. Livra-me de pensamentos e sentimentos que adoecem o meu corpo. Faz nascer em mim o desejo de cuidar da tua casa, que é a Igreja. Que eu seja nela não um construtor de muros que separam, mas de pontes que unem e criam comunhão. Cura as feridas de divisão que foram abertas no meio de nós, para nos separar do Papa Francisco e dos nossos Bispos. Sustenta o trabalho de todos os cristãos que lutam pela defesa dos templos agredidos e profanados em nosso País. Que todos sejamos curados em nosso corpo, fortalecidos em nossa alma e reavivados em nosso espírito. Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi