Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Palavra de Deus: Isaías 52,13 – 53,12, Hebreus 4,14-16; 5,7-9; João 18,1 – 19,42.
Desde que o mundo é mundo, o
sofrimento e a morte sempre existiram, sempre se fizeram presentes na história
humana. Mas, devido à pandemia do novo coronavírus, o sofrimento e a morte se
impuseram sobre nós de uma maneira muito mais intensa e abrangente, de modo que
nós, influenciados pela cultura do bem estar, da negação do sofrimento e da
fuga da dor, estamos sendo obrigados a lidar com a cruz, exatamente com a cruz
em relação à qual fazemos questão de nos manter distantes.
“Olharão para aquele que
transpassaram” (Jo 19,37). Nesta tarde não olhamos apenas para a cruz, mas para
o Crucificado, para Aquele que nela foi pregado: um homem “tão desfigurado que
não parecia ter aspecto humano” (Is 52,14); um homem que “não tinha aparência
que nos agradasse” (Is 53,2); um “homem coberto de dores, cheio de sofrimentos”
(Is 53,3). Através de seu Filho crucificado, o Pai nos convida a enxergar o que
acontece à nossa volta, a não negarmos a realidade só porque ela não nos
agrada, só porque ela escapa das nossas respostas.
O alto número de pessoas que têm morrido diariamente
em nosso País deveria nos fazer repensar a nossa vida e os nossos valores. No
entanto, muitos assumiram uma postura de indiferença e de negação da realidade,
como se essas mortes fossem notícias falsas, inventadas pela imprensa. No
fundo, nós não aceitamos reconhecer que somos responsáveis direta ou
indiretamente pela dor do outro, como nos revela o profeta: “ele foi ferido por
causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes” (Is 53,5). A
morte não é provocada somente quando se faz o mal, mas também quando não se faz
o bem que se pode fazer. Quando colocamos nosso bem estar e nossos interesses
financeiros acima da vida das outras pessoas, nós as expomos a situações de
morte.
Consideremos o salmo dessa sexta-feira santa: “Em
vossas mãos, Senhor, entrego o meu espírito” (Sl 31,6). Nessa oração aparece
uma palavra que traduz a vida de Jesus: “entrega”. Ele fez de sua vida uma
constante entrega aos homens, especialmente às pessoas necessitadas de
salvação. Antes de ser entregue à cruz, ele entregou seu Corpo e seu Sangue em
alimento para os seus discípulos. No momento em que está crucificado, ele se
entrega ao Pai com toda a confiança: “Em vossas mãos, Senhor, entrego o meu
espírito, porque vós me salvareis, ó Deus fiel! (...) Eu entrego em vossas mãos
o meu destino; libertai-me do inimigo e do opressor!” (Sl 31,6.16). Desse modo,
Jesus nos ensina a confiar ao Pai tudo aquilo que nos atinge e a nos entregar a
cada instante em Suas mãos. “Fortalecei os corações, tende coragem, todos vós
que ao Senhor vos confiais!” (Sl 31,25).
Não
são poucos os ventos contrários que têm soprado em nossa direção. Por isso,
precisamos lançar nossas raízes nesta Palavra: “Fortaleça seu coração! Tenha
coragem!” Quanto mais o vento sopra contrário, mais a árvore aprofunda suas
raízes para se manter em pé e não tombar. Esse aprofundar as raízes se traduz
na carta aos Hebreus com essas palavras: “Permaneçamos firmes na fé que
professamos. Com efeito, temos um sumo sacerdote capaz de se compadecer de
nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do
pecado. Aproximemo-nos então, com toda a confiança, do trono da graça, para
conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento
oportuno” (Hb 4,14-16). O Crucificado é o Ressuscitado! Aquele que esteve na
cruz está agora vivo e ressuscitado diante do Pai. Nós nos agarramos à sua cruz
sabendo que ela se transformou no trono da graça, onde podemos alcançar
misericórdia e salvação. Fazendo nossa própria experiência de cruz, nós
permanecemos firmes na fé que professamos, pois sabemos em quem depositamos a
nossa fé: n’Aquele que se compadece da nossa fraqueza. Ele se tornou “causa de
salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (Hb 5,9).
A
narrativa da Paixão nos recorda que nós não somos discípulos somente do
Ressuscitado, mas do Ressuscitado que foi Crucificado. Com Ele queremos
aprender a beber o cálice que o Pai nos dá (cf. Jo 18,12), isto é, enfrentar o
sofrimento e a cruz que nos cabem enfrentar neste momento da história. Por mais
que seja difícil lidar com a nossa cruz, não queremos negar a nossa fé; não
queremos deixar de ser discípulos do Crucificado (cf. Jo 18,18). Pelo
contrário, suplicamos ao Pai que se estabeleça na face da terra o Reino de seu
Filho, Reino que não é deste mundo e que não se apoia na força da violência,
mas do amor que se faz serviço em favor da vida (cf. Jo 18,36).
Vivendo
num país infectado por fake news e por uma política proposital de
desinformação, nós confiamos na força da verdade que é o próprio Jesus (Jo 18,37).
A sua verdade fará cair as máscaras dos falsos messias do nosso tempo, de todos
aqueles que usam da religião unicamente para seus interesses políticos. Se são
muitas as pessoas que são indiferentes à cruz do seu semelhante, nós nos
colocamos junto à cruz daqueles que estão à nossa volta como o discípulo amado
junto à cruz de Jesus (cf. Jo 19,26-27). Ali está também Maria Santíssima, que
nos ensina a ser uma presença solidária junto de quem sofre.
Enfim,
como Nicodemos, queremos espalhar perfume onde existe o mau cheiro da morte: o
perfume da esperança onde há o mau cheiro do desespero; o perfume da consolação
onde há o mau cheiro da desolação; o perfume da solidariedade onde há o mau
cheiro da indiferença; o perfume do alimento onde há o mau cheiro da fome; o
perfume da palavra de conforto onde há o mau cheiro do abatimento; o perfume do
diálogo onde há o mau cheiro do confronto; o perfume da reconciliação onde há o
mau cheiro da inimizade...
A enorme
quantidade de perfume que Nicodemos trouxe para ungir o corpo de Jesus (30 kg!),
revela o quanto Jesus significava para ele (cf. Jo 19,39). De uma certa forma,
esse perfume aponta para a ressurreição, para a vitória da vida sobre a morte. Se
o mau cheiro da morte está espalhado por todos os lugares do nosso Brasil, espalhemos
nesses lugares o perfume da nossa fé na ressurreição, o perfume da nossa esperança
de vida eterna, o perfume da nossa confiança de que toda situação de cruz se
converterá em uma vida transformada, ressuscitada.
Pe. Paulo
Cezar Mazzi