sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

LIBERTOS DO MAL

 Missa do 4. dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 18,15-20; 1Coríntios 7,32-35; Marcos 1,21-28

 

Algumas pessoas duvidam da existência de Deus, mas ninguém duvida da existência do mal. Algumas pessoas, ainda que acreditem na existência de Deus, não acreditam no seu amor e no seu interesse por aquilo que acontece com a humanidade, mas ninguém duvida da presença atuante do mal na história humana. Enquanto o mal é “gritante”, Deus parece calado; enquanto o mal age explicitamente, Deus parece agir de maneira muito sutil; enquanto o mal se impõe pela força, Deus parece se manifestar e agir nas coisas fracas e pequenas.

Ninguém duvida da existência do mal e do estrago que ele faz no ser humano. Até mesmo a Sagrada Escritura fala da sua existência, desde o livro do Gênesis (serpente), até o livro do Apocalipse (dragão). No entanto, o mal não é uma força estranha que se apodera de nós quando e como quer, sem o nosso consentimento. Ele entra onde nós permitimos que ele entre. Se ele causa estragos em nossa vida, é com o nosso consentimento e, em alguns casos, com a nossa colaboração. Além disso, o mal não é “abstrato”, mas muito concreto. Ele tem nome, endereço e firma reconhecida. Ele age concretamente, através de políticas que favorecem o desmatamento e atentam contra o meio ambiente; ele se manifesta no mercado financeiro mundial, que controla todos os países; ele vende suas ideias e faz a cabeça de muitos através dos meios de comunicação – em especial, das mídias sociais; ele age na política, na economia e das religiões, porque age no coração das pessoas que organizam a política, a economia e a religião.

Sem dúvida nenhuma, nos assusta perceber o quanto o mal é real e destrutivo no mundo em que vivemos. Mas o Evangelho de hoje nos traz uma boa notícia: Jesus é mais forte que o mal. Por escolher viver debaixo da autoridade do Pai, Jesus nunca se submeteu à autoridade espiritual do maligno; por escolher orientar-se pela verdade do Pai, Jesus nunca se deixou enganar pelas mentiras do maligno; por esforçar-se em ordenar diariamente os seus afetos para viver segundo a vontade do Pai, Jesus nunca foi uma pessoa dispersiva; nunca se tornou um joguete nas mãos dos seus afetos desordenados, permitindo que o mal se apossasse dos seus pensamentos, dos seus sentimentos e da sua vontade.

A cena do exorcismo na sinagoga de Cafarnaum nos coloca diante de dois homens: Jesus – um homem inteiro, senhor de si –, e um homem possesso por um espírito impuro – um homem quebrado, desorientado, escravo da sua própria desordem interior. No momento em que Jesus ensina a Palavra de Deus na sinagoga, o homem reage – literalmente, “grita” com Jesus. As trevas se incomodam com a luz. Toda pessoa que se habituou a viver na escuridão se incomoda e fica agressiva quando a luz se aproxima dela.

A reação agressiva desse homem diante do ensinamento de Jesus precisa nos ajudar a perceber os movimentos interiores que se dão em nós quando nos colocamos diante de Deus e da sua Palavra. Quem se habitua com a voz do maligno dentro de si vai perceber como estranha a voz de Deus em sua consciência, e vai rejeitar essa voz. Da mesma forma, a pessoa que se habituou a orientar-se pela voz de Deus em sua consciência vai detectar imediatamente quando a voz do maligno falar com ela, tentando confundi-la e afastá-la da vontade de Deus.

Se acontecer alguma vez de a Palavra de Deus nos incomodar, o melhor a fazer é não rejeitá-la agressivamente, mas nos perguntar qual a razão daquele incômodo. O nosso coração é um abismo e o mal sabe onde se esconder dentro dele. Mas Deus conhece as profundezas do coração humano. Seus olhos enxergam onde o mal está escondido dentro de nós e a luz da sua Palavra precisa iluminar aquele espaço escuro onde o mal se sente confortável dentro de nós. Todos nós precisamos, vez ou outra, ser “exorcizados”. Todos nós precisamos nos sentir incomodados não com a presença de Jesus, mas com a presença do maligno, que tem se alojado ou em nossas ideias e pensamentos, ou em nossos sentimentos e afetos, influenciando algumas das nossas atitudes. O pior que pode nos acontecer é nos identificar com o mal, de modo que a sua presença dentro de nós não mais nos incomode. 

Na sinagoga de Cafarnaum, o espírito impuro gritou com Jesus, seja para tentar intimidá-lo, seja para não ouvir a sua Palavra, mas Jesus nunca se intimida e nem se cala diante do maligno. Ele lhe disse firmemente: “Cale-se e saia desse homem!” (Mc 1,?). Porque o Pai deu ao seu Filho o poder de libertar, curar e salvar todo ser humano, Jesus não precisou fazer nenhuma oração de exorcismo sobre o possesso: bastou ordenar ao espírito maligno que se calasse e saísse daquele homem, e o espírito obedeceu a Jesus. Seja qual for o mal que nos afeta hoje – se é uma doença que “nos possui”, se é um vício, um desvio de caráter, uma obsessão, uma compulsão etc. – precisamos confiar que Jesus tem o poder de nos livrar e de nos dar autonomia, para que recuperemos a nossa capacidade de nos responsabilizar pela vida e de não admitir que o maligno se aposse da nossa liberdade de escolha.

Uma última palavra. “Ninguém se livra de um vício atirando-o pela janela, mas fazendo-o descer degrau por degrau” (autor desconhecido). Muitas pessoas desistiram de readquirem autonomia sobre si mesmas por serem imediatistas e desejarem ser libertas instantaneamente do mal que se alojou dentro delas. Acontece que a desintoxicação é um processo custoso, que exige daquele que está intoxicado perseverança e seriedade no seu desejo de se libertar. Ninguém se liberta da “possessão” que o adoece e destrói recorrendo a um simples passe de mágica ou a um ritual de exorcismo “prático, instantâneo e barato”. Quem se habitou com sua doença ou seu vício precisa, primeiro, convencer-se de que não vale a pena viver assim; além disso, precisa aos poucos voltar a se habituar com sua saúde e com sua autonomia diante das escolhas que tem para fazer em relação à sua própria vida, responsabilizando-se perante sua existência, ao invés de transferir essa responsabilidade para um suposto espírito maligno que a domina (se a domina, é com seu consentimento).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi          

Um comentário:

  1. Há muito venho acompanhando as interessantes e bem elaboradas reflexões do Pe. Paulo, a quem admiro pela facilidade de se exprimir e com uma capacidade intelectual a dar inveja a muitos padres e bispos por aí.
    Continue, padre, enriquecendo- nos com suas reflexões teologais, fundamentadas nas Sagradas Escrituras.
    PARABÉNS!!! NÃO NOS ABANDONE NUNCA! OK? Sua bênção presbiteral!

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