sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

LIBERTOS DO MAL

 Missa do 4. dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 18,15-20; 1Coríntios 7,32-35; Marcos 1,21-28

 

Algumas pessoas duvidam da existência de Deus, mas ninguém duvida da existência do mal. Algumas pessoas, ainda que acreditem na existência de Deus, não acreditam no seu amor e no seu interesse por aquilo que acontece com a humanidade, mas ninguém duvida da presença atuante do mal na história humana. Enquanto o mal é “gritante”, Deus parece calado; enquanto o mal age explicitamente, Deus parece agir de maneira muito sutil; enquanto o mal se impõe pela força, Deus parece se manifestar e agir nas coisas fracas e pequenas.

Ninguém duvida da existência do mal e do estrago que ele faz no ser humano. Até mesmo a Sagrada Escritura fala da sua existência, desde o livro do Gênesis (serpente), até o livro do Apocalipse (dragão). No entanto, o mal não é uma força estranha que se apodera de nós quando e como quer, sem o nosso consentimento. Ele entra onde nós permitimos que ele entre. Se ele causa estragos em nossa vida, é com o nosso consentimento e, em alguns casos, com a nossa colaboração. Além disso, o mal não é “abstrato”, mas muito concreto. Ele tem nome, endereço e firma reconhecida. Ele age concretamente, através de políticas que favorecem o desmatamento e atentam contra o meio ambiente; ele se manifesta no mercado financeiro mundial, que controla todos os países; ele vende suas ideias e faz a cabeça de muitos através dos meios de comunicação – em especial, das mídias sociais; ele age na política, na economia e das religiões, porque age no coração das pessoas que organizam a política, a economia e a religião.

Sem dúvida nenhuma, nos assusta perceber o quanto o mal é real e destrutivo no mundo em que vivemos. Mas o Evangelho de hoje nos traz uma boa notícia: Jesus é mais forte que o mal. Por escolher viver debaixo da autoridade do Pai, Jesus nunca se submeteu à autoridade espiritual do maligno; por escolher orientar-se pela verdade do Pai, Jesus nunca se deixou enganar pelas mentiras do maligno; por esforçar-se em ordenar diariamente os seus afetos para viver segundo a vontade do Pai, Jesus nunca foi uma pessoa dispersiva; nunca se tornou um joguete nas mãos dos seus afetos desordenados, permitindo que o mal se apossasse dos seus pensamentos, dos seus sentimentos e da sua vontade.

A cena do exorcismo na sinagoga de Cafarnaum nos coloca diante de dois homens: Jesus – um homem inteiro, senhor de si –, e um homem possesso por um espírito impuro – um homem quebrado, desorientado, escravo da sua própria desordem interior. No momento em que Jesus ensina a Palavra de Deus na sinagoga, o homem reage – literalmente, “grita” com Jesus. As trevas se incomodam com a luz. Toda pessoa que se habituou a viver na escuridão se incomoda e fica agressiva quando a luz se aproxima dela.

A reação agressiva desse homem diante do ensinamento de Jesus precisa nos ajudar a perceber os movimentos interiores que se dão em nós quando nos colocamos diante de Deus e da sua Palavra. Quem se habitua com a voz do maligno dentro de si vai perceber como estranha a voz de Deus em sua consciência, e vai rejeitar essa voz. Da mesma forma, a pessoa que se habituou a orientar-se pela voz de Deus em sua consciência vai detectar imediatamente quando a voz do maligno falar com ela, tentando confundi-la e afastá-la da vontade de Deus.

Se acontecer alguma vez de a Palavra de Deus nos incomodar, o melhor a fazer é não rejeitá-la agressivamente, mas nos perguntar qual a razão daquele incômodo. O nosso coração é um abismo e o mal sabe onde se esconder dentro dele. Mas Deus conhece as profundezas do coração humano. Seus olhos enxergam onde o mal está escondido dentro de nós e a luz da sua Palavra precisa iluminar aquele espaço escuro onde o mal se sente confortável dentro de nós. Todos nós precisamos, vez ou outra, ser “exorcizados”. Todos nós precisamos nos sentir incomodados não com a presença de Jesus, mas com a presença do maligno, que tem se alojado ou em nossas ideias e pensamentos, ou em nossos sentimentos e afetos, influenciando algumas das nossas atitudes. O pior que pode nos acontecer é nos identificar com o mal, de modo que a sua presença dentro de nós não mais nos incomode. 

Na sinagoga de Cafarnaum, o espírito impuro gritou com Jesus, seja para tentar intimidá-lo, seja para não ouvir a sua Palavra, mas Jesus nunca se intimida e nem se cala diante do maligno. Ele lhe disse firmemente: “Cale-se e saia desse homem!” (Mc 1,?). Porque o Pai deu ao seu Filho o poder de libertar, curar e salvar todo ser humano, Jesus não precisou fazer nenhuma oração de exorcismo sobre o possesso: bastou ordenar ao espírito maligno que se calasse e saísse daquele homem, e o espírito obedeceu a Jesus. Seja qual for o mal que nos afeta hoje – se é uma doença que “nos possui”, se é um vício, um desvio de caráter, uma obsessão, uma compulsão etc. – precisamos confiar que Jesus tem o poder de nos livrar e de nos dar autonomia, para que recuperemos a nossa capacidade de nos responsabilizar pela vida e de não admitir que o maligno se aposse da nossa liberdade de escolha.

Uma última palavra. “Ninguém se livra de um vício atirando-o pela janela, mas fazendo-o descer degrau por degrau” (autor desconhecido). Muitas pessoas desistiram de readquirem autonomia sobre si mesmas por serem imediatistas e desejarem ser libertas instantaneamente do mal que se alojou dentro delas. Acontece que a desintoxicação é um processo custoso, que exige daquele que está intoxicado perseverança e seriedade no seu desejo de se libertar. Ninguém se liberta da “possessão” que o adoece e destrói recorrendo a um simples passe de mágica ou a um ritual de exorcismo “prático, instantâneo e barato”. Quem se habitou com sua doença ou seu vício precisa, primeiro, convencer-se de que não vale a pena viver assim; além disso, precisa aos poucos voltar a se habituar com sua saúde e com sua autonomia diante das escolhas que tem para fazer em relação à sua própria vida, responsabilizando-se perante sua existência, ao invés de transferir essa responsabilidade para um suposto espírito maligno que a domina (se a domina, é com seu consentimento).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi          

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

CONVERSÃO: PERMITIR QUE A VIDA NOS MUDE NAQUILO QUE PRECISAMOS MUDAR

 Missa do 3. dom. comum. Palavra de Deus: Jonas 3,1-5.10; 1Coríntios 7,29-31; Marcos 1,14-20.

 

                Jonas prega à cidade de Nínive sua necessidade de conversão, se não quiser ser destruída. Paulo nos convida a uma conversão, a uma mudança na maneira de entender a vida, “pois a figura deste mundo passa” (1Cor 7,31). Jesus inicia seu ministério convidando-nos a nos converter e a crer no Evangelho. Portanto, o apelo central da Palavra de Deus para nós neste dia é a conversão.

            No sentido geral, conversão significa mudança. Ela se mostra necessária quando nos damos conta de que tomamos uma direção errada na vida. No sentido bíblico, conversão não é apenas mudança de direção, mas um “voltar-se”: Deus nos convida a nos voltar para Ele, para a sua verdade, para o seu Reino, para a sua salvação. Sempre que o ser humano se afasta de Deus e decide por ele mesmo o que é o bem e o que é o mal, começa a percorrer um caminho de autodestruição. Porque não quer que seus filhos se destruam com as próprias mãos, Deus sempre enviou à humanidade profetas como Jonas, para apelar à consciência das pessoas e questioná-las a respeito da direção de morte que estão dando à própria vida.

Como Jonas, nossa missão é ser, no seio das nossas cidades mergulhadas numa constante cultura de morte, um sinal de vida. A presença profética de Jonas nos convida à fé e à confiança: era preciso que ele gastasse três dias, para percorrer toda cidade de Nínive e atingir os seus habitantes, mas bastou apenas um dia de pregação, e as pessoas convenceram uma às outras da necessidade da mudança de atitudes. Aqui fica claro que a conversão não é provocada por nós, mas pela graça de Deus no coração do ser humano. É Ele quem convence a pessoa da necessidade de mudança. A nós cabe ser fiéis à missão que Deus nos confia, cumprindo-a na alegria e na fé de que o bom senso pode triunfar sobre a insensatez do ser humano.

São Paulo nos fala da necessidade de mudarmos nossa maneira de entender a vida, reavaliando aquilo que consideramos importante. As inúmeras mortes causadas por acidentes e por doenças como AVC, infarto, covid 19 e câncer, deveriam nos tornar conscientes de algo que insistimos em não aceitar como fato real: “o tempo está abreviado” (1Cor 7,29). Nós, seres humanos, gostamos de nos iludir e de nos manter alheios à realidade de que a nossa vida neste mundo é extremamente breve. Gastamos a maior parte do nosso tempo e das nossas energias com coisas supérfluas, vazias e sem sentido, e nos esquecemos de que o sentido da nossa vida não está na sua duração, mas na intensidade com que vivemos o nosso breve tempo neste mundo, cumprindo a missão para a qual nascemos.

As palavras do apóstolo Paulo nos dão um choque de realidade, ao nos lembrar que nenhuma situação será definitiva enquanto estivermos neste mundo. Nossas posses são temporárias – e podemos perdê-las de uma hora para outra; a presença das pessoas que nós amamos é temporária em nossa vida; nenhum estado emocional e nenhuma situação existencial, como alegria e tristeza, vitória e derrota, sucesso e fracasso, são definitivos em nós. E por que? Biblicamente, “porque não temos aqui cidade permanente, mas estamos em busca da cidade futura” (Hb 13,14), que é o Reino de Deus; existencialmente, porque a vida é dinâmica e nos provoca a nos mantermos aberto àquilo que ela quer nos ensinar, em vista do nosso crescimento, do nosso amadurecimento e da nossa humanização.  

Enfim, queremos nos abrir às primeiras palavras de Jesus no Evangelho segundo São Marcos. Elas ecoam no exato no momento em que a voz de João Batista é silenciada. A voz de João foi silenciada, mas o Verbo de Deus (Palavra viva, Palavra feita pessoa humana) não foi silenciado. Sua verdade precisa chegar ao coração de cada ser humano. E sua verdade é: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15). Em meio ao nosso tempo humano, tempo que passa rapidamente e que escapa das nossas mãos (cronos), existe um outro tempo, um tempo que se completa: é o tempo de Deus, tempo em que sua graça age como força de salvação (kairós). Na pessoa de Jesus, o Pai visita os reinos humanos, marcados por violência e injustiças, para oferecer o seu Reino, Reino de justiça e de paz, Reino de vida e de salvação, Reino que acolhe a todos, mas que tem lugar preferencial para aqueles que são ignorados pelos reinos humanos: os pobres, os doentes, os deficientes, as mulheres, os idosos, os fracos, os que não correspondem aos padrões de exigência do Mercado que controla os reinos humanos.   

O “Reino de Deus” foi a paixão de Jesus. Ele falará dele por meio de inúmeras parábolas, e toda cura de enfermos e expulsão de demônios que Jesus realizar serão a prova viva de que “o Reino de Deus já chegou”. O Reino não é uma consolação para a outra vida (eterna), mas a manifestação de Deus nesta vida: em seu Filho Jesus, Ele veio curar o ser humano doente, libertá-lo da sua prisão, redimi-lo da sua culpa, retirá-lo da sua morte.

Para acolher o Reino de Deus na pessoa de Jesus Cristo, é preciso conversão. “Não é possível entrar no reino acolhendo como senhor a Deus, defensor dos pobres, e continuar ao mesmo tempo acumulando riquezas precisamente às custas deles” (Pagola, Jesus, aproximação histórica, p.135). Em Jesus Cristo, o Pai veio oferecer a todos o seu perdão, perdão que nos convida a criar um comportamento social mais fraterno e solidário. É preciso acabar com o ódio entre as pessoas e adotar uma postura mais cristã em relação aos adversários, pois Deus não pode reinar numa sociedade onde as pessoas vivem retribuindo o mal com o mal.

Hoje, ao rezarmos o Pai nosso e ao pedir: “Venha a nós o vosso Reino”, peçamos: “Pai, vem reinar. A injustiça e o sofrimento continuam presentes em toda parte. Ninguém conseguirá extirpá-los definitivamente da face da terra. Revela tua força salvadora de maneira plena. Só tu podes mudas as coisas de uma vez por todas, manifestando-te como Pai de todos e transformando a vida para sempre” (Pagola, Jesus, aproximação histórica, p.139).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O QUE EU ESTOU PROCURANDO?

 Missa do 2. dom. comum. Palavra de Deus: 1Samuel 3,3b-10.19; 1Coríntios 6,13c-15a.17-20; João 1,35-42.

  

As leituras que ouvimos hoje, sobretudo a do livro de Samuel e do Evangelho, nos revelam que nossa existência é um chamado. Nós existimos porque Deus nos chamou à vida. Desde o ventre materno, pronunciou o nosso nome (cf. Is 49,1; Gl 1,15). Como o Papa Francisco gosta de dizer, “o importante é que cada um” descubra seu próprio chamado e “traga à luz o melhor de si mesmo” (GE n.11): “Deus permita que você consiga identificar a palavra, a mensagem de Jesus que Deus quer dizer ao mundo com a sua vida” (GE n.24).

Esse é o ponto! A vida de cada um de nós é única. Ela contém uma palavra única de Deus a ser comunicada ao mundo, uma palavra que traduz em nossa existência a presença de Jesus junto às pessoas que convivem conosco e que necessitam da Sua palavra como luz, orientação e salvação. Portanto, nossa existência é uma “pro-vocação”: em Seu Filho Jesus, o Pai nos “pro-voca”, nos chama a responder à vida, à tarefa que Ele quis nos confiar ao nos chamar à existência. Se os animais vivem a partir dos seus próprios instintos, nós, pessoas humanas, somos provocados a viver a partir da nossa vocação, do chamado que recebemos de Deus; se os animais simplesmente “reagem” ao que lhes acontece, nós podemos “responder” aos acontecimentos, procurando nos responsabilizar pela nossa existência, vivendo nossa vida com sentido, e não apenas sobrevivendo.

Discernir o chamado de Deus é um processo lento, e às vezes até mesmo doloroso. Ninguém de nós nasce com uma bola de cristal que esclarece todas as nossas dúvidas. É ouvindo a vida, ouvindo os acontecimentos e, sobretudo, ouvindo a nossa própria alma que vamos nos damos conta da “pro-vocação” que está nos sendo feita. Assim foi com Samuel. Deus poderia ter chamado os filhos do sacerdote Eli para serem seus profetas, mas eles eram pessoas corrompidas, assim como o pai (cf. 1Sm 2). Da mesma forma, acontece hoje: numa época em que também nossa Igreja tem sua credibilidade abalada por escândalos e por uma apática e medíocre atuação pastoral (com algumas exceções), Deus continua a chamar pessoas para “fazerem a diferença”.

Assim como fez Samuel, nós também precisamos ter a coragem de nos perguntar pelo nosso lugar na Igreja e na sociedade, respondendo ao Deus que continuamente nos chama: “Fala, que teu servo escuta” (1Sm 3,10). Precisamos não fugir das “provocações” de Deus e ter a coragem de responder ao que a vida está nos pedindo neste momento. É importante ouvir as inquietações do nosso coração e entender que, somente quando abraçarmos a nossa vocação e formos fiéis à missão que a vida quer nos confiar, é que encontraremos paz e nos sentiremos pessoas realizadas. Diariamente, Deus continuará a “abrir os nossos ouvidos”, falando conosco por meio dos acontecimentos, esperando de nós a mesma disponibilidade de coração que encontrou no salmista: “Eis que venho... Com prazer faço a vossa vontade” (Sl 40,8-9).

Algo nos ajuda a discernir, a perceber as provocações que Deus está nos fazendo neste momento, em vista da missão que somos chamados a abraçar. É a pergunta que Jesus faz a dois discípulos de João, que o deixam e passam a seguir Jesus: “Voltando-se para eles e vendo que o estavam seguindo, Jesus perguntou: ‘O que vocês estão procurando?’” (Jo 1,38). Nós não gostamos de perguntas, mas de respostas. Nós procuramos por respostas. Mas, às vezes, a melhor resposta que a vida nos dá é nos questionar, é nos fazer perguntas novas e profundas que nos obriguem a parar de fugir de nós mesmos, a ouvir as inquietações do nosso coração e a responder Àquele que está nos provocando.  

Nós fazemos uma porção de coisas, e a maior parte do tempo, as fazemos no “piloto automático”, de maneira mecânica, quase que instintiva, sem nos perguntar para onde aquilo que está nos levando e se aquilo está respondendo à nossa pergunta de fundo, que é a pergunta pelo sentido da nossa vida. Vivendo assim, muitas pessoas deixaram de ver sentido nos compromissos que haviam abraçado e “pularam fora do barco”. As redes sociais estão cheias de pessoas perdidas, que não são capazes de responder nem para si mesmas o que estão procurando. Para preencherem o vazio que sentem, muitas delas correm diariamente atrás do vazio e se tornam ainda mais vazias. Muitas pessoas têm como tarefa principal encheram a própria vida de bagulho e de barulho, simplesmente para não ouvirem a pergunta que grita dentro delas: “O que você está procurando?”.

Nós, seres humanos, não procuramos por alguma coisa, mas por Alguém: “É vossa face que eu procuro, Senhor. Não me escondas a tua face” (Sl 27,8-9). Nós procuramos por Aquele que nos procura. Jesus procura o ser humano para salvá-lo da desorientação e da morte, para salvá-lo de si mesmo. Aquele que nos pergunta hoje: “O que vocês estão procurando?” é o mesmo que afirmou que “veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). Resta-nos deixarmos nos encontrar por Ele. Resta-nos segui-Lo, buscar saber onde Ele mora – Ele quer habitar dentro de cada um de nós! Resta-nos nos tornar íntimos d’Ele e permitir que que Ele se torne íntimo de nós.  

“Encontramos o Messias” (Jo 1,41). Jesus é a resposta à nossa busca mais profunda de vida e de salvação. “Encontrei um homem que me disse tudo o que eu fiz! Encontrei um homem que me ajudou a compreender a sede que eu trazia dentro de mim. Encontrei Aquele que é a fonte de água viva para saciar a minha sede de sentido!” (citação livre de Jo 4,29). Que ao longo deste ano nos deixemos encontrar por Jesus e pela verdade do seu Evangelho. Que possamos ouvir as inquietações mais profundas do nosso coração e aprendamos a suportar a inquietante pergunta – “o que eu estou procurando?”. Que não tenhamos medo de responder a essa pergunta fundamental para a nossa vida, tanto no plano humano quanto no espiritual e vocacional.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

A ÁGUA DO NOSSO BATISMO DEVE ESCORRER E LEVAR VIDA AOS OUTROS

 Missa do Batismo do Senhor. Palavra de Deus: Isaías 42,1-4.6-7; Atos dos Apóstolos 10,34-38; Marcos 1,7-11.

 

            Toda pessoa que nasce, nasce para algo, para realizar uma missão, para abraçar uma tarefa em favor do bem da humanidade. Sabendo disso, Jesus, por volta dos 30 anos, sai de sua casa, de sua família, de Nazaré, e dirige-se ao deserto, onde vivia João Batista. Jesus deseja ser batizado, deseja mergulhar sua vida em Deus e ouvir de Deus qual é o propósito da sua existência.

Para ser batizado, Jesus se dirige para o deserto, onde João Batista vivia. O deserto não é apenas um lugar geográfico, mas “teológico”, isto é, um lugar que nos “fala” de Deus, porque é um lugar marcado pelo silêncio, lugar onde nos afastamos de tudo aquilo que é supérfluo, lugar onde nos é possível ouvir a voz de Deus e compreender qual é o sentido da nossa existência.    

De maneira muito simples e direta, o evangelista Marcos narra o batismo de Jesus: “Jesus veio de Nazaré da Galileia, e foi batizado por João no rio Jordão. E logo, ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele” (Mc 1,9-10). Embora a água fosse o elemento essencial do batismo, Marcos chama a nossa atenção para o que acontece no momento em que Jesus sai da água: o céu se abre! Por muito tempo, o povo de Israel (também a humanidade) experimentou em sua vida de fé o céu fechado, como se Deus não falasse mais ao ser humano. Na verdade, o céu estava fechado porque a humanidade havia fechado seu coração para Deus, não ouvindo mais os seus apelos.

No momento do batismo de Jesus, o céu se abre, e se abre não somente sobre Jesus, mas sobre cada ser humano. Em seu Filho Jesus Cristo, o Pai tem algo a dizer à humanidade. Jesus é o próprio céu aberto, porque veio nos falar e nos revelar o Pai. É graças a ele que todos nós “podemos nos aproximar de Deus com toda a confiança” (Ef 3,12). Mais do que tudo, o céu se abriu no momento do batismo de Jesus para que o Pai derramasse sobre ele o Espírito Santo! Com isso, o evangelista que nos ensinar que não é a água do batismo que nos dá o Espírito, mas o Pai. A água é um elemento visível por meio do qual entendemos a absoluta importância do Espírito Santo em nossa vida. Na água está a vida. Sem água, não existe vida; sem água, tudo o que está vivo morre. Como a água dá vida a todas as coisas, assim o Espírito Santo nos vivifica a partir de dentro. E esse Espírito vem do céu, vem do Pai, e é dado a todos os seus filhos e filhas.

Inúmeras pessoas foram batizadas e receberam o Espírito Santo, mas são poucas aquelas que decidiram, após o batismo, conduzir sua vida obedecendo à voz do Espírito Santo em sua consciência: “Todos os que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8,14). O batismo não é um rito mágico, mas um momento de decisão: viver verdadeiramente como filho de Deus, obedecendo à sua voz, fazendo a sua vontade e abraçando a missão para a qual ele chamou cada um de nós à existência.  

“Coloquei sobre ele o meu espírito... Ele... não desanimará nem se deixará abater, enquanto não estabelecer a justiça na terra... Eu, o Senhor, te chamei para a justiça e te tomei pela mão... para abrires os olhos dos cegos, tirar os cativos da prisão, livrar do cárcere os que vivem nas trevas” (Is 42,1.4.6.7). Essas palavras nos tornam conscientes de que o Espírito Santo que recebemos no batismo nos é dado em função da missão que somos chamados a abraçar. A água do nosso batismo não pode se transformar numa água parada, estancada, morta, mas pede para fluir, para escorrer, para levar vida às pessoas com as quais convivemos em nosso dia a dia.   

O cristão batizado é chamado a se tornar uma fonte de água viva para as pessoas que têm sede de Deus, sede de justiça, de misericórdia, de amor, sede de fé, de esperança e de sentido. Se “batismo” significa “mergulho”, somos chamados a viver mergulhados em Deus, para podermos mergulhar outras pessoas n’Ele. Quantas pessoas hoje estão mergulhadas no desespero? Quantos estão mergulhados no vício, num comportamento autodestrutivo? Quantos estão mergulhados no vazio e na falta de sentido? Nosso batismo nos pede para sermos para essas pessoas um “céu aberto”, debaixo do qual possam voltar a ouvir Deus falando aos seus corações e convidando-as a mergulhar n’Ele, verdadeira e única fonte de água vida (cf. Jr 2,13).

Por fim, a cena do batismo de Jesus se encerra com uma declaração do Pai para o Filho: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer” (Mc 1,11). Há poucos dias atrás, o apóstolo Paulo nos lembrava de que não somos escravos, mas filhos, porque recebemos o Espírito de Jesus que clama em nós: “Abbá. Papai!” (Gl 4,6). Esse clamor é, na verdade, uma declaração de fé: não somos órfãos, nem escravos, mas filhos. O Espírito Santo atesta, comprova, que somos filhos de Deus (cf. Rm 8,16). Jesus quer nos dar a mesma confiança que ele tinha no Pai. Nossa vida não está nas mãos do acaso, mas do Pai que nos ama e cuida de nós, no Pai que declara que cada um de nós é Seu filho amado.

Se é assim, porque muitas pessoas, apesar de batizadas, não se sentem nem filhas de Deus, nem amadas por Ele? Porque o batismo nos convida a cultivar um relacionamento de filhos com o Pai. Depois do batismo, o céu nunca mais se fechou sobre Jesus, mas se manteve aberto, porque ele procurou manter seu diálogo com o Pai diariamente, por meio da oração. Jesus quer nos introduzir nessa experiência de intimidade com o Pai. Ele quer nos fazer sentir não somente filhos, mas filhos amados. O Pai ama cada um de nós como ama Jesus, como um filho único. A consciência do nosso batismo deve provocar em nós proximidade e intimidade com o Pai, mergulhados em seu amor, vivendo da força do seu Espírito e sustentados por suas mãos na realização da missão que Ele confia a cada um de nós.

 

Oração: Amado Pai, mergulha-me no teu amor! Abre novamente os céus e fala ao meu coração, fortalecendo em mim a consciência de ser também teu filho amado, tua filha amada. Derrama sobre mim a água viva do teu Espírito, lavando-me, purificando-me, reavivando-me a partir de dentro. Que eu possa mergulhar todos os dias em ti, por meio da oração, bebendo da fonte da tua graça. Que a água do meu batismo flua em mim e escorra por meio de mim, levando amor, fé, esperança e alegria àqueles que convivem comigo. À semelhança de teu Filho Jesus, quero deixar-me conduzir pelo teu Espírito e andar por toda a parte fazendo o bem, sendo luz para quem está na escuridão, libertação para quem está preso e orientação para quem está perdido. Assim seja!

 

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi