Missa do 4. dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 18,15-20; 1Coríntios 7,32-35; Marcos 1,21-28
Algumas
pessoas duvidam da existência de Deus, mas ninguém duvida da existência do mal.
Algumas pessoas, ainda que acreditem na existência de Deus, não acreditam no
seu amor e no seu interesse por aquilo que acontece com a humanidade, mas
ninguém duvida da presença atuante do mal na história humana. Enquanto o mal é
“gritante”, Deus parece calado; enquanto o mal age explicitamente, Deus parece
agir de maneira muito sutil; enquanto o mal se impõe pela força, Deus parece se
manifestar e agir nas coisas fracas e pequenas.
Ninguém
duvida da existência do mal e do estrago que ele faz no ser humano. Até mesmo a
Sagrada Escritura fala da sua existência, desde o livro do Gênesis (serpente),
até o livro do Apocalipse (dragão). No entanto, o mal não é uma força estranha
que se apodera de nós quando e como quer, sem o nosso consentimento. Ele entra
onde nós permitimos que ele entre. Se ele causa estragos em nossa vida, é com o
nosso consentimento e, em alguns casos, com a nossa colaboração. Além disso, o
mal não é “abstrato”, mas muito concreto. Ele tem nome, endereço e firma
reconhecida. Ele age concretamente, através de políticas que favorecem o
desmatamento e atentam contra o meio ambiente; ele se manifesta no mercado
financeiro mundial, que controla todos os países; ele vende suas ideias e faz a
cabeça de muitos através dos meios de comunicação – em especial, das mídias
sociais; ele age na política, na economia e das religiões, porque age no
coração das pessoas que organizam a política, a economia e a religião.
Sem
dúvida nenhuma, nos assusta perceber o quanto o mal é real e destrutivo no
mundo em que vivemos. Mas o Evangelho de hoje nos traz uma boa notícia: Jesus é
mais forte que o mal. Por escolher viver debaixo da autoridade do Pai, Jesus
nunca se submeteu à autoridade espiritual do maligno; por escolher orientar-se
pela verdade do Pai, Jesus nunca se deixou enganar pelas mentiras do maligno;
por esforçar-se em ordenar diariamente os seus afetos para viver segundo a
vontade do Pai, Jesus nunca foi uma pessoa dispersiva; nunca se tornou um
joguete nas mãos dos seus afetos desordenados, permitindo que o mal se
apossasse dos seus pensamentos, dos seus sentimentos e da sua vontade.
A
cena do exorcismo na sinagoga de Cafarnaum nos coloca diante de dois homens:
Jesus – um homem inteiro, senhor de si –, e um homem possesso por um espírito
impuro – um homem quebrado, desorientado, escravo da sua própria desordem
interior. No momento em que Jesus ensina a Palavra de Deus na sinagoga, o homem
reage – literalmente, “grita” com Jesus. As trevas se incomodam com a luz. Toda
pessoa que se habituou a viver na escuridão se incomoda e fica agressiva quando
a luz se aproxima dela.
A
reação agressiva desse homem diante do ensinamento de Jesus precisa nos ajudar
a perceber os movimentos interiores que se dão em nós quando nos colocamos
diante de Deus e da sua Palavra. Quem se habitua com a voz do maligno dentro de
si vai perceber como estranha a voz de Deus em sua consciência, e vai rejeitar
essa voz. Da mesma forma, a pessoa que se habituou a orientar-se pela voz de
Deus em sua consciência vai detectar imediatamente quando a voz do maligno
falar com ela, tentando confundi-la e afastá-la da vontade de Deus.
Se
acontecer alguma vez de a Palavra de Deus nos incomodar, o melhor a fazer é não
rejeitá-la agressivamente, mas nos perguntar qual a razão daquele incômodo. O
nosso coração é um abismo e o mal sabe onde se esconder dentro dele. Mas Deus
conhece as profundezas do coração humano. Seus olhos enxergam onde o mal está
escondido dentro de nós e a luz da sua Palavra precisa iluminar aquele espaço
escuro onde o mal se sente confortável dentro de nós. Todos nós precisamos, vez
ou outra, ser “exorcizados”. Todos nós precisamos nos sentir incomodados não
com a presença de Jesus, mas com a presença do maligno, que tem se alojado ou
em nossas ideias e pensamentos, ou em nossos sentimentos e afetos,
influenciando algumas das nossas atitudes. O pior que pode nos acontecer é nos
identificar com o mal, de modo que a sua presença dentro de nós não mais nos
incomode.
Na
sinagoga de Cafarnaum, o espírito impuro gritou com Jesus, seja para tentar
intimidá-lo, seja para não ouvir a sua Palavra, mas Jesus nunca se intimida e
nem se cala diante do maligno. Ele lhe disse firmemente: “Cale-se e saia desse
homem!” (Mc 1,?). Porque o Pai deu ao seu Filho o poder de libertar, curar e
salvar todo ser humano, Jesus não precisou fazer nenhuma oração de exorcismo
sobre o possesso: bastou ordenar ao espírito maligno que se calasse e saísse
daquele homem, e o espírito obedeceu a Jesus. Seja qual for o mal que nos afeta
hoje – se é uma doença que “nos possui”, se é um vício, um desvio de caráter,
uma obsessão, uma compulsão etc. – precisamos confiar que Jesus tem o poder de
nos livrar e de nos dar autonomia, para que recuperemos a nossa capacidade de
nos responsabilizar pela vida e de não admitir que o maligno se aposse da nossa
liberdade de escolha.
Uma
última palavra. “Ninguém se livra de um vício atirando-o pela janela, mas
fazendo-o descer degrau por degrau” (autor desconhecido). Muitas pessoas
desistiram de readquirem autonomia sobre si mesmas por serem imediatistas e
desejarem ser libertas instantaneamente do mal que se alojou dentro delas. Acontece
que a desintoxicação é um processo custoso, que exige daquele que está
intoxicado perseverança e seriedade no seu desejo de se libertar. Ninguém se
liberta da “possessão” que o adoece e destrói recorrendo a um simples passe de
mágica ou a um ritual de exorcismo “prático, instantâneo e barato”. Quem se
habitou com sua doença ou seu vício precisa, primeiro, convencer-se de que não
vale a pena viver assim; além disso, precisa aos poucos voltar a se habituar
com sua saúde e com sua autonomia diante das escolhas que tem para fazer em
relação à sua própria vida, responsabilizando-se perante sua existência, ao
invés de transferir essa responsabilidade para um suposto espírito maligno que
a domina (se a domina, é com seu consentimento).
Pe.
Paulo Cezar Mazzi