sexta-feira, 4 de setembro de 2020

ENTRE EU E DEUS, O MEU IRMÃO

 

Missa do 23. dom. comum. Palavra de Deus: Ezequiel 33,7-9; Romanos 13,8-10; Mateus 18,15-20.

 

            Sempre que acontece alguma denúncia contra uma pessoa que representa tal igreja ou tal religião, nós caímos na tentação de jogar fora o bebê junto com a água suja do banho. Se tal pessoa errou ou pecou, nosso julgamento é tão severo que atinge não somente a pessoa que supostamente praticou tal erro, mas também a igreja ou a religião da qual ela faz parte. Essa atitude insensata de jogar fora o bebê junto com a água suja do banho tem feito com que algumas pessoas tomem a decisão de afastar-se de qualquer igreja ou religião, embora continuem ainda a crer em Deus.

            Todo o capítulo 18 do Evangelho segundo São Mateus é um ensinamento de Jesus para a vida da Igreja, isto é, para a vida em comunidade. Nesse ensinamento, Jesus deixa claro que é impossível que numa igreja, religião ou grupo comunitário não exista o problema do escândalo. Literalmente, Jesus diz: “É necessário que haja escândalos” (Mt 18,7). Onde existe o ser humano, existe a possibilidade do erro ou do pecado. Nenhum ser humano está garantido de não errar ou de não pecar. Além disso, podemos entender que “o escândalo é necessário” justamente para comprovar quem tem uma compreensão madura e realista da fé; quem está na igreja ou na comunidade por causa de Deus e quem está lá por causa dos homens; quem se enxerga como um ser humano falho, em constante processo de amadurecimento, e quem se vê como um fariseu puro, uma pessoa pronta, que já atingiu a sua plena maturidade.   

            Jesus já havia mostrado em Mateus 13,24-30.36-43 que tanto a Igreja quanto o mundo são lugares onde crescem juntos o joio e o trigo, e não cabe a nós arrancar o joio para ficar somente com o trigo. Isso significa que não podemos pretender encontrar uma igreja, religião ou comunidade de pessoas onde ali só exista trigo, mesmo porque o joio e o trigo, o bem e o mal, a luz e a sombra se encontram dentro de cada um de nós. O melhor que temos a fazer é acompanhar as pessoas no seu processo de amadurecimento, cuidando do trigo e não perdendo a paz por causa do joio, como nos aconselha o Papa Francisco (EG 24).   

            Sendo muito realista e conhecendo o coração humano, Jesus sabe que precisa nos orientar a respeito da convivência com o irmão, na comunidade de fé. Embora seja uma tendência própria do individualismo moderno o desejo de viver a fé reduzindo-a uma relação exclusiva entre “eu e Deus”, Jesus afirma claramente que, em matéria de religião (religião significa “religar”), a nossa primeira ligação não é com Deus, mas com o irmão. Toda tentativa de me ligar a Deus excluindo-me da convivência comunitária tem como resultado uma religião falsa, um culto vazio, uma fé que não me coloca verdadeiramente em comunhão com Deus (cf. Mt 5,23-24).  

            Na visão de Jesus, o outro não é simplesmente “o outro”, uma pessoa com quem eu não preciso me relacionar, mas o outro é “meu irmão”. Ao entrar para uma comunidade, ao frequentar uma determinada igreja ou religião, eu não escolhi conviver com aquela pessoa. Contudo, tanto ela quanto eu estamos ali para nos encontrar com Deus; estamos ali porque precisamos de cura; estamos ali porque desejamos percorrer um caminho de aprendizado, de crescimento e de amadurecimento, até que nos tornemos a pessoa que Deus nos chamou a nos tornar, a partir da nossa vocação.

            Aos olhos da fé, sabemos que nossa vida não se move num acaso sem sentido, na coincidência, na sorte ou no azar, mas a partir do desígnio de Deus, que faz com que todas as coisas contribuam para o nosso crescimento, para o nosso amadurecimento e a nossa santificação (cf. Rm 8,28). Neste sentido, a presença do “outro” na minha vida não é algo acidental, mas providencial: Deus me quer junto daquela pessoa para ensinar algo a mim e a ela. Deus quer que a minha convivência com “o meu irmão” torne melhor a mim e a ele. Exatamente como fez com o profeta Ezequiel, Deus coloca cada um de nós na vida de uma outra pessoa para “vigiar sobre ela”, no sentido de ajudá-la a caminhar na verdade e a ser reconduzida para junto de Deus sempre que, por descuido, se afastar d’Ele. Se eu não me interessar pela salvação do meu irmão, ele provavelmente se destruirá por falta da minha ajuda, mas eu responderei diante de Deus pela destruição dele!

            O problema é que o “meu irmão”, assim como eu, é alguém falho; alguém que pode errar feio e “pisar na bola” comigo. Nesse caso, Jesus nos propõe um caminho de tentativa de recuperação do “irmão”. O próprio Jesus já havia dito que não é da vontade do Pai do céu que nenhuma pessoa se perca (cf. Mt 18,14). Por isso, devemos fazer o que está ao nosso alcance para “corrigir o irmão”, o que implica, primeiramente, uma tentativa de falar a sós com ele. Esse “falar a sós” evita que o “irmão” seja humilhado em público, no momento em que está sendo corrigido. Se essa tentativa não funcionar, preciso encontrar na comunidade duas pessoas sensatas, amorosas, que me ajudem a convencer o “irmão” de que ele está trilhando um caminho de destruição. Se ele não aceitar a correção, sua atitude de obsessão no erro deve ser comunicada à autoridade da comunidade, que falará com ele. Enfim, se nem diante dessa autoridade ele aceitar reconhecer seus erros, deve ser afastado da comunidade, para se dar conta de que sua obstinação acabará por excluí-lo da convivência com os demais irmãos. Essa é uma medida extrema, carregada da esperança de que o “irmão” reflita sobre suas atitudes e deseje voltar para a comunidade de uma maneira diferente.

            Após nos indicar caminhos para recuperar o irmão que está correndo o risco de se perder, Jesus nos aconselha a oração comunitária. É verdade que ninguém precisa estar numa igreja ou numa comunidade para ter vida de oração, mas Jesus deixa claro que a oração comunitária tem uma força muito maior do que a oração individual (cf. Mt 18,19). Quando nos reunimos para rezar pelo “irmão” que precisa corrigir-se das suas atitudes destrutivas, devemos confiar que nossa oração comunitária atingirá em cheio o coração do Pai que, como vimos, não deseja que algum filho Seu alguém se perca.

            Concluindo, numa época em que o medo da decepção com o “irmão” tem levado algumas pessoas a optarem por uma vida espiritual estritamente particular, privada, sem a presença “do outro”, Jesus afirma que Ele escolheu se fazer presente “onde dois ou mais estiverem reunidos em seu nome” (Mt 18,20). Isso significa que sempre que insistirmos em viver uma fé individualista, uma religião individualista, Jesus não estará ali. Quem se fecha no individualismo, quem cria pequenos grupos religiosos de pessoas que “pensam iguais”, não está fazendo isso “em nome de Jesus”, mas em nome da sua dificuldade em conviver com os outros, em nome do seu farisaísmo em achar-se melhor do que “os outros”, quem sabe não passível de erro como “os outros”. O caminho para Deus passa necessariamente pela minha convivência com o “meu irmão”.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

Nenhum comentário:

Postar um comentário