sexta-feira, 26 de junho de 2020

IGREJA: CRISTO JUNTO A TODO SER HUMANO


Missa de São Pedro e São Paulo. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 12,1-11; 2Timóteo 4,6-8.17-18; Mateus 16,13-19.

“Tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja” (Mt 16,18). Neste dia em que celebramos os apóstolos São Pedro e São Paulo, chamados de “as duas colunas” da Igreja de Cristo, precisamos nos perguntar se a Igreja ainda hoje tem alguma importância para o mundo. A Igreja que Jesus fundou sobre os apóstolos é necessária para a humanidade? Se sim, em que sentido?
A Igreja é tão necessária para a humanidade quanto procura fazer-se próxima desta, o que significa dizer também que a Igreja é vista como desnecessária tanto quanto se mantém distante dos dramas que marcam a história humana no mundo atual. “Talvez este tempo de edifícios eclesiais vazios ponha simbolicamente em evidência o vazio escondido nas Igrejas e o seu possível futuro – se não fizermos uma séria tentativa de mostrar ao mundo um rosto do Cristianismo completamente diferente. Estivemos demasiado preocupados em converter o ‘mundo’ (o ‘resto’), e menos preocupados em convertermo-nos a nós mesmos; e isto não significa apenas ‘melhorarmo-nos’, mas passar radicalmente de um estático ‘ser cristãos’ a um dinâmico ‘tornar-se cristãos’” (Pe. Thomás Halick, “O sinal”).
Essas palavras do Pe. Thomás Halick, interpretando o sinal das nossas igrejas vazias neste tempo de pandemia, nos provocam uma séria revisão de vida, seja no sentido particular, enquanto cristãos, seja no sentido comunitário, enquanto Igreja. Jesus não construiu a Igreja a partir dos apóstolos para ser uma Instituição em função de si mesma, mas, sim, para ser “um hospital de campanha após a batalha, cuidando das feridas de seus fiéis e saindo para encontrar os que foram machucados, excluídos ou que se afastaram” (Papa Francisco, março de 2013). Quanto mais próximos nós, cristãos, enquanto Igreja viva, nos colocamos junto aos homens e mulheres do nosso tempo, com suas preocupações e inquietações, com sua sede de sentido e de orientação, mais cumprimos a nossa missão e mais a Igreja tem sentido em ser e existir.
A pergunta que hoje se coloca é: a Igreja está aberta ou fechada à humanidade? “No dia anterior a ter sido eleito Papa, o cardeal Bergoglio citou um trecho do Apocalipse em que Jesus está à porta e bate. E acrescentou: hoje, Cristo está batendo a partir do interior da Igreja e quer sair. Devemos aprender a ampliar radicalmente os limites da nossa visão da Igreja. Cristo trespassou aquela porta que havíamos fechado com medo dos outros. Atravessou a parede que tínhamos erigido à nossa volta. Abriu um espaço cuja amplitude e profundidade nos obrigaram a olhar em volta” (Pe. Thomás Halick, “O sinal”).
Às vezes, as coisas precisam ser viradas do avesso, para enxergarmos a verdade que está diante dos nossos olhos. Um dia antes de sua eleição papal, Francisco virou do avesso Apocalipse 3,20 e teve a coragem de nos fazer enxergar que Cristo está do lado de dentro da Igreja batendo à porta e querendo sair, isto é, exigindo que a sua Igreja se desacomode, saia de si mesma e caminhe na direção das pessoas, colocando-se junto de todos aqueles que necessitam do sal, da luz e do fermento do Evangelho em suas vidas! Portanto, precisamos estar conscientes de que a insignificância da Igreja para as pessoas do nosso tempo é diretamente proporcional à distância que nós, enquanto Igreja, mantemos em relação a essas mesmas pessoas e seus dramas humanos.  
A liturgia de hoje nos coloca diante de dois homens que passaram por um processo de transformação, ao se encontrarem com Jesus Cristo e seu Evangelho. Simão, um pecador de peixes, tornou-se Pedro, chamado por Jesus a ser um pescador de homens e a confirmar seus irmãos na firmeza da fé. A ele Jesus confiou as chaves do Reino: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19). A missão de Pedro, da Igreja e de cada um de nós, cristãos discípulos de Jesus, consiste em ajudar a humanidade a se desligar daquilo que a adoece e destrói e ligar-se àquilo que lhe confere vida e salvação. Neste sentido, também cada um de nós precisa tornar-se consciente do quê precisa se desligar e ao quê precisa se ligar, se conectar, para não ser adoecido, nem destruído.
Um outro homem, cuja vida passou por uma longa transformação, foi Paulo. De grande perseguidor da Igreja e dos cristãos, Saulo foi alcançado por Jesus e transformado no seu maior apóstolo, tendo como missão levar o Evangelho da salvação aos povos pagãos: “Para os fracos, fiz-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a todo custo. E, isto tudo, eu faço por causa do Evangelho” (1Cor 9,22-23). Através da pessoa de Paulo, Jesus nos mostra que todos nós podemos passar por um processo de transformação; todos nós podemos aprender a nos colocar junto das pessoas do nosso tempo e fazer algo em vista da salvação das mesmas; todos nós podemos, não obstante nossa fragilidade humana, nos tornar um Evangelho vivo para aqueles que convivem conosco.  
Enfim, vivendo numa época de forte questionamento e de rejeição a todo tipo de instituição, tendo consciência de que alguns líderes da nossa Igreja atentaram contra a sua credibilidade perante o mundo, que cada um de nós, cristãos, possa reavivar a sua fé em Jesus Cristo, filho do Deus vivo, sabendo que essa mesma fé pode até estar cansada, abatida, desfigurada e sem sentido, às vezes, mas Jesus continua vivo e absolutamente necessário para quem necessita ser salvo e encontrar um sentido para sua vida. Que o testamento espiritual do apóstolo Paulo – “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé” (2Tm 4,7) nos sirva de inspiração e nos ajude a tornar a Igreja de Jesus Cristo presente no coração da humanidade, junto a todo ser humano que o Pai quer salvar.   

Pe. Paulo Cezar Mazzi


sexta-feira, 19 de junho de 2020

QUAIS SÃO SEUS MEDOS?


Missa do 12. dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 20,10-13; Romanos 5,12-15; Mateus 10,26-33.

            O Evangelho de hoje é uma continuação daquele que ouvimos no domingo passado, retratando o momento em que Jesus envia os doze apóstolos para a missão de curar os doentes, ressuscitar os mortos, purificar os leprosos e expulsar os demônios (cf. Mt 10,8). Ao enviá-los para esta missão, Jesus, primeiramente, “deu-lhes autoridade” (v.1), isto é, deu-lhes a força espiritual para realizarem tal missão, mas depois quis torná-los conscientes de que enfrentariam fortes resistências por parte de muitas pessoas, a ponto de serem agredidos e perseguidos (cf. Mt 10,17-25). Esse realismo de Jesus certamente ativou o sentimento de medo nos apóstolos. É por isso que no Evangelho de hoje ouvimos Jesus repetir três vezes: “Não tenham medo” (vv.26.28.31).
            São muitos os medos que nos habitam. Sem esquecer o medo atual da contaminação pelo coronavírus, temos medo de perder o emprego, medo de não ter meios para sobreviver, medo da violência que infelizmente faz parte da rotina do nosso País, medo de desenvolver um câncer, medo que o nosso relacionamento com a pessoa amada termine, medo de perder as pessoas que amamos; os pais temem pela vida e pela felicidade dos filhos; os filhos temem em não dar conta dos desafios da vida; os jovens temem envelhecer; os idosos temem ser descartados, esquecidos, abandonados à solidão...
            Assim como qualquer outro sentimento, nós não escolhemos sentir medo. Porém, quando o sentimos, precisamos nos tornar conscientes de que ele está presente em nossa vida, procurando nos intimidar, nos fechar, nos fazer retroceder, nos acovardar. Se não fizermos o trabalho de dialogar com o nosso medo e de nos posicionar diante dele, ele acabará nos paralisando, nos atrofiando, nos adoecendo e nos fazendo abandonar nosso caminho de amadurecimento, de crescimento e de superação de nós mesmos e das nossas fraquezas. A questão não é não sentir medo, mas não permitir que o medo determine nossas atitudes, ou ainda, não permitir que o medo nos impeça de tomar atitudes que sabemos serem necessárias para a nossa vida, para a nossa cura, para a nossa libertação.
Dizem que a expressão “não tenha medo” percorre a Sagrada Escritura do início ao fim. Constantemente Deus fala ao coração humano para não temer: não devemos ter medo de conhecer a nós mesmos, tomando consciência da nossa força e da nossa fraqueza, das nossas potencialidades e dos nossos limites; não devemos ter medo de nos confrontar com a verdade que nos humilha, num primeiro momento, mas que depois nos cura e nos liberta; não devemos ter medo de sermos corrigidos; não devemos ter medo de errar e termos que reconhecer que erramos; não devemos ter medo de amar, ainda que isso signifique o risco de sermos machucados em nosso amor; em uma palavra, não devemos ter medo de viver e de pronunciar, com a nossa existência, aquela palavra única de Deus para a humanidade, ainda que muitos rejeitarão tal palavra.
“Não tenhais medo dos homens, pois nada há de encoberto que não seja revelado, e nada há de escondido que não seja conhecido” (Mt 10,26). Para dissipar o nosso medo, Jesus nos garante que a verdade triunfará sobre a mentira, a justiça triunfará sobre a injustiça e o bem triunfará sobre o mal. Cedo ou tarde, todo ser humano ficará nu, isto é, será despojado das suas máscaras e das suas falsas seguranças, e terá que confrontar-se com a sua verdade nua e crua.  
“Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma!” (Mt 10,28). No ano de 2019, foram assassinadas 41.635 pessoas em nosso País (em 2020, já se registra um aumento de 8% nesse tipo de morte). O Brasil é um país muito violento porque socialmente injusto: pouquíssimos são muito ricos e muitos são extremamente pobres (tanto que a maior incidência de crimes é no Norte e Nordeste). A violência não está no DNA do brasileiro, mas na injusta e desigual destruição de renda do Brasil. Nesse contexto, como não temermos ser mortos, seja por bandidos, seja por policiais, seja por milicianos? Mas Jesus nos lembra que, ainda que sejamos atingidos pela violência social, há uma vida em nós que está além do nosso corpo: é nossa alma, nossa vida espiritual, nossa salvação em Deus. E ao nos lembrar da nossa alma, Jesus nos questiona: como é que vocês têm medo da morte física, mas não têm medo de morrer nos seus valores, no seu caráter, na sua decência, na sua fidelidade, na sua fé? Não seria importante proteger esses valores muito mais (ou pelo menos da mesma forma) do que vocês se protegem fisicamente?
Por fim, a razão pela qual Jesus nos diz “não tenham medo” está no cuidado do Pai para conosco: “Não se vendem dois pardais por algumas moedas? No entanto, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do vosso Pai. Quanto a vós, até os cabelos da cabeça estão todos contados. Não tenhais medo! Vós valeis mais do que muitos pardais” (Mt 10,29-31). Tendo vivido no mesmo mundo hostil em que vivemos, Jesus sempre superou seus medos humanos deixando-se ser cuidado pelo Pai. Ele compreendeu que o Pai nos colocou no mundo não para sermos poupados de problemas e dificuldades, mas para enfrentá-los e superá-los, na certeza de que é esse exercício de enfrentamento que nos amadurece e nos torna pessoas adultas na fé.
Essa é a confiança que Jesus quer que tenhamos: nada nos acontecerá sem a permissão do Pai. Além disso, tudo o que o Pai permite que nos aconteça tem em vista o nosso bem, a nossa correção, o nosso crescimento, a nossa santificação (cf. Rm 8,28-30). Justamente porque o Pai não nos quer mimados, imaturos e infantilizados, Ele não nos coloca sob uma redoma de vidro que impeça que qualquer contratempo nos atinja. Porque nos ama e confia na força e na capacidade que nos deu, o Pai nos lança na vida, nos desafia diariamente a crescer, a nos tornar aquilo que fomos chamados a ser, a realizar plenamente a missão que somos: pronunciar, com a nossa vida, uma palavra de fé e de esperança para a humanidade.
ORAÇÃO: “Meu Deus, sois minha fortaleza e meu abrigo, em Ti confio! Tu és o Deus todo-Poderoso: feliz o homem que em Ti confia! Tu és o Deus da minha salvação; sinto-me inteiramente confiante; nada temo, porque o Senhor é minha força e minha salvação. Em Ti confiam os que conhecem teu nome, pois não abandonas os que te procuram, Senhor! No dia em que estiver com medo, confiarei em Ti, pois Tu és a minha esperança; ó Senhor, desde a juventude sois a minha confiança, desde o seio materno eu me apoiei em Ti. O teu amor envolve todo aquele que confia em Ti!” (fragmentos de diversos salmos bíblicos).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

NADA TEMEREI – Aline Brasil e Thiago Brado


sexta-feira, 12 de junho de 2020

COMPAIXÃO PARA COM AS OVELHAS PERDIDAS


Missa do 11º. dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo 19,2-6a; Romanos 5,6-12;  Mateus 9,36 – 10,8.

            Três expressões marcam o Evangelho de hoje: viu e sentiu compaixão, enviou os doze, ovelhas perdidas.
            Viu e sentiu compaixão – “Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9,36). O olhar de Jesus é um olhar que se deixa afetar por aquilo que vê. Nosso olhar hoje é, de certa forma, desatento; um olhar sobrecarregado de informações, de estímulos visuais; um olhar às vezes viciado – não nos damos conta da novidade (das novas oportunidades) que a rotina do dia a dia nos traz; enfim, é um olhar que evita ser afetado por aquilo que vê. Além de os desafios à nossa volta não serem poucos, nós nos sentimos impotentes diante deles, o que nos leva a desenvolver um olhar de indiferença para com o que está à nossa volta.
Ao ver as multidões cansadas e abatidas, Jesus “compadeceu-se delas”. Na Bíblia, o sentimento de compaixão é próprio de Deus. Jesus, o Filho, carrega em si o mesmo sentimento do Pai – a compaixão –, e nós, seus discípulos, somos chamados a ter os mesmos sentimentos do Filho – de modo especial, a compaixão. Compadecer-se não significa ter dó ou pena de alguém, mas permitir-se ser afetado pelo sofrimento do outro. Enquanto o sentimento de indiferença nos desumaniza, a compaixão nos humaniza e nos faz parecidos com o Pai e com o Filho. Enfim, o sentimento de compaixão faz com que tenhamos a coragem de nos perguntar: eu posso fazer algo em relação a isso?
As multidões que seguiam Jesus eram “como ovelhas que não têm pastor”. Na Bíblia, a função do pastor diz respeito tanto à autoridade política quanto à autoridade religiosa. Portanto, a expressão “ovelhas sem pastor” se refere a um povo descuidado, abandonado a si mesmo, desorientado, porque seus pastores – seus líderes políticos e religiosos – são “pastores de si mesmos”, isto é, cuidam dos seus próprios interesses, (seu próprio bem estar e seu enriquecimento financeiro).
“Ovelhas que não têm pastor” são inúmeros filhos de famílias empobrecidas e desestruturadas, assim como filhos de famílias de classe média e alta, cuja educação é terceirizada; são moradores de favelas, desassistidos pelo Estado, mas tutelados pelos traficantes ou pelos milicianos; são os desempregados, os doentes do SUS, os moradores de rua, as pessoas que moram nas periferias das nossas paróquias e que não são alcançadas pela ação pastoral da nossa Igreja etc.
Enviou os doze – Até esse momento do Evangelho, Jesus tinha muitos discípulos. Diante da necessidade das multidões, ele entende que precisa escolher doze homens que abracem com ele, de maneira mais profunda, a tarefa de cuidar das ovelhas perdidas. É aqui que cada um de nós entra! Todos nós somos chamados a ser discípulos de Jesus, orientando nossa vida pelo seu Evangelho. No entanto, na medida em que vamos caminhando em nossa vida espiritual, Jesus nos pede um comprometimento maior com a causa do Evangelho. É o momento em que, do meio da imensa multidão anônima dos discípulos, Jesus pronuncia o nosso nome, nos escolhe e nos envia.
 Passar da condição de discípulos para a de apóstolos (enviados) é algo desafiador, uma passagem que muitos se recusam a fazer, apesar de serem chamados por Jesus. Mas, por que é tão importante abraçar a missão de ser apóstolo, na Igreja de Jesus Cristo? Justamente por causa das “ovelhas perdidas” que existem no mundo em que vivemos! “Jesus enviou estes Doze... ‘Ide... às ovelhas perdidas da casa de Israel!” (Mt 10,5-6). Da mesma forma como a vida de Jesus foi uma “vida para” os outros, a nossa só encontrará sentido quando tivermos a coragem de nos perguntar: “Para quê eu nasci? Para quê eu vim ao mundo? Para quê eu estou onde estou neste momento?”. Se essas perguntas nos parecem muito difíceis de serem respondidas, deixemos que o Papa Francisco nos ajude: “Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo” (Evangelii Gaudium, 273). O sentido da vida de cada um de nós está em tomar consciência da missão que somos, abraçá-la com alegria e procurar ser fiel a ela, apesar das dificuldades que iremos encontrar.  
Ovelhas perdidas – Desde o Documento de Aparecida (2007), nos tornamos conscientes de que, se quisermos cuidar das ovelhas perdidas, temos que sair de nossas igrejas e ir aonde essas ovelhas estão, porque foi assim que Jesus sempre fez. Enquanto os mestres religiosos da sua época se cercavam de discípulos numa escola, Jesus escolheu ser um mestre “itinerante”, não esperando seus ouvintes irem até ele, mas aproximando-se deles em sua situação de vida. Jesus sempre entendeu a sua vida como a missão de buscar as ovelhas perdidas e abandonadas. Se nós, cristãos, não nos esforçamos por estar junto das pessoas que estão distantes da vida que Cristo veio nos trazer, estamos traindo nossa missão, traindo o Evangelho.
O mundo de hoje nos desinstala constantemente, de modo que quase não conseguimos mais criar raízes aqui ou lá. No entanto, nós podemos vivenciar essa desinstalação deixando-nos conduzir pela mão de Jesus, que nos envia para junto de pessoas que estão precisando do Evangelho que somos chamados a proclamar com a nossa própria vida, usando de palavras, se for necessário, como diria São Francisco de Assis. Onde quer que estejamos – em casa, na rua, na escola/faculdade/universidade, no trabalho, no lazer – precisamos olhar à nossa volta com o mesmo olhar de Jesus: ali pode haver uma pessoa doente, morta, contaminada ou atormentada, precisando de uma palavra ou de um gesto nosso capaz de curá-la, ressuscitá-la, purificá-la ou libertá-la.

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

quarta-feira, 10 de junho de 2020

TOCAR O CORPO DE CRISTO


Missa do Corpo e Sangue do Senhor. Palavra de Deus: Deuteronômio 8,2-3.14b-16a; 1Coríntios 10,16-17; João 6,51-58.

            Um simples pedaço de pão nos lembra algo muito importante: sem o sustento que vem do alimento, nós desfalecemos, adoecemos e morremos. Mas o alimento não é apenas um sustento para a sobrevivência; a Sagrada Escritura também nos fala dele como algo sem o qual nós não conseguimos atingir a meta da nossa vida. Foi assim, por exemplo, com o profeta Elias, quando o anjo do Senhor lhe disse: “Levanta-te e come, pois o caminho que tens a percorrer está acima das tuas forças” (1Rs 19,7).
            O caminho que temos ainda a percorrer aparece simbolizado no relato da travessia do deserto pelo povo de Israel. Ao longo da vida nós temos que atravessar diversos desertos; temos que fazer diversas passagens que possam nos tirar de uma situação de injustiça, de sofrimento ou de morte, para uma situação de vida mais digna e plena, a vida que Deus quer para a humanidade. Embora essa travessia nunca seja feita sem dificuldade, Deus se antecipa e nos garante a sua presença como Pai, alimentando-nos como filhos e sustentando-nos na importante travessia da vida. O maná, o pão descido do céu, ficou para sempre marcado na Escritura como o cuidado de Deus para com seu povo no deserto (cf. Dt 8,15-16).  
            Mas o pão que Deus enviou do céu também significou correção, educação, disciplina para o povo de Israel. Assim, nós entendemos que Deus se coloca junto a nós não somente como Pai que provê nossas necessidades, mas como Pai que também nos educa, para compreendermos que “nem só de pão vive o homem” (Dt 8,3), ou seja, nós não vivemos somente daquilo que produzimos, daquilo que nossa força, nossa inteligência e nosso dinheiro podem nos dar; nós vivemos, sobretudo, da obediência à voz de Deus em nossa consciência. Tomar consciência de que nós não vivemos somente daquilo comemos ou consumimos significa cuidar também da nossa alma, do nosso espírito; significa ainda ouvir a fome e a sede que tantas pessoas à nossa volta têm de justiça, de oportunidade, de respeito e de paz.
            Agora a pouco, o apóstolo Paulo nos recordou que o sacramento da Eucaristia em nossa Igreja também se chama “comunhão”: comunhão com o Corpo e com o Sangue do Senhor. Assim como é importante reconhecer o Corpo de Cristo na Eucaristia é igualmente reconhecer Jesus presente nos que sofrem e que cruzam o nosso caminho. As mesmas mãos que se abrem e se estendem para receber o Corpo de Cristo precisam se abrir e se estender para o irmão que cruza o nosso caminho. Se na Eucaristia nós comungamos o “corpo entregue” de Jesus e o seu “sangue derramado”, isso significa que, assim como Jesus, devemos viver também para o bem dos outros, como se Jesus continuamente nos dissesse: “Eu me dou a você para que você possa continuar dando-se aos outros”.
Enfim, neste dia em que Jesus se define como “pão vivo descido do céu”, cuja carne é “verdadeira comida” e cujo sangue é “verdadeira bebida” (cf. Jo 6,51.55), o Pai permitiu que a imensa maioria de nós não possa comungar o Corpo e o Sangue de seu Filho, por causa da problemática da pandemia do coronavírus. A nossa ausência em nossas igrejas e a impossibilidade de hoje comungarmos a Eucaristia são um sinal importante para nós mesmos. Qual o lugar que a Eucaristia realmente ocupa em nossa vida? Por que a imensa maioria das pessoas não comunga? Que falta realmente a Eucaristia está nos fazendo (se é que está)?
Não podendo comungar da presença real de Cristo na Eucaristia, lembremos da sua presença igualmente real na pessoa dos pobres e necessitados. Todos sabemos que a necessidade do isolamento social para conter a propagação do coronavírus e possibilitar os hospitais de socorrerem os infectados tem como consequência direta o enfraquecimento da economia no mundo todo. São empresas que fecham, ou que demitem, ou que diminuem os salários dos seus funcionários. Isso significa o aumento da fome ao nosso redor.    
Repetidas vezes, o Papa Francisco nos convidou a “tocar com fé a carne de Cristo em tantas pessoas que sofrem”. Se hoje nossas mãos não poderão se estender para receber o Corpo de Cristo, elas poderão diariamente se estender para socorrer os necessitados à nossa volta. E como é verdade que “nem só de pão vive o homem”, podemos oferecer às pessoas à nossa volta o pão do nosso diálogo, do nosso perdão, do nosso ombro amigo, dos nossos ouvidos abertos para ouvir quem precisa falar, das nossas orações por aqueles que necessitam etc.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 5 de junho de 2020

O PAI ACIMA DE NÓS, O FILHO JUNTO A NÓS E O ESPÍRITO SANTO DENTRO DE NÓS


Missa da Santíssima Trindade. Palavra de Deus: Êxodo 34,4b-6.8-9; 2Coríntios 13,11-13; João 3,16-18.

            De onde nasce a vida humana? Ela não nasce da solidão, mas da comunhão. Só a comunhão do elemento masculino com o elemento feminino pode gerar vida. Isso significa que a nossa existência não é fruto de uma solidão, mas de uma comunhão. Na origem de cada um de nós existiu uma comunhão. E é na comunhão que está a sustentação da nossa vida e o sentido da nossa existência.             
            Mas a origem da nossa existência, enquanto seres humanos, não se encontra apenas na comunhão entre o masculino e o feminino. Deus, ao criar o ser humano, disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança” (Gn 1,26). Por que será que Deus, desde o princípio da Sagrada Escritura, se refere a Si mesmo usando o plural (“Façamos”)? Porque Ele não é solidão, mas comunhão. De fato, “no princípio... o Verbo estava com Deus... Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,1.3).
No princípio, na origem de todas as coisas, estavam juntos o Pai e o Filho, criando todas as coisas e tornando-as vivas pelo hálito (pelo respiro) de vida que procede de ambos: a força vital do Espírito Santo (cf. Gn 1,2; 2,7; Sl 104,30). Essa prefiguração da Santíssima Trindade aparece de maneira mais clara quando Deus visita Abraão na pessoa de três homens. Embora sejam três, apenas um fala com Abraão, prometendo-lhe conceder a bênção de um filho (cf. Gn 18,1-16). Três pessoas, um só Deus.    
            Por que Deus não é solidão, mas comunhão? Porque Ele “é amor” (1Jo 4,8). O Pai ama o Filho; o Filho ama o Pai, e o amor entre o Pai e o Filho se chama Espírito Santo, amor que “foi derramado em nossos corações” (Rm 5,5). O Evangelho de hoje afirma que o amor que existe no seio da Santíssima Trindade diz respeito a toda a humanidade, a cada ser humano: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Cada ser humano que chegou a existir deve sua existência não ao acaso, não ao encontro acidental entre um homem e uma mulher, mas ao amor de Deus. Mais ainda, cada criatura só existe porque foi gerada no amor do Deus criador: “Sim, tu amas tudo o que criaste... Se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito” (Sb 11,24).
            Mas se o amor de Deus está na raiz da existência de todas as coisas, e, sobretudo, de cada ser humano, muito mais ele se revela como amor real e verdadeiro quando o Pai entrega seu Filho para salvar o mundo. Amor é dom, entrega, sacrifício. Para salvar aquele que ama, o Amor se doa, entrega-se, sacrifica-se o quanto for necessário. Para salvar a humanidade, o Pai entregou seu Filho único, e a palavra “entrega” nos remete para a cruz. O Pai permitiu que seu Filho único fosse entregue à cruz para nos salvar da condenação e da morte. A imagem do Crucificado deveria comunicar a todo ser humano o quanto Deus o ama!
            Neste tempo de pandemia, onde muitas pessoas estão morrendo, quantas pessoas passam a duvidar da existência de Deus? Na verdade, Deus é raramente lembrado e levado em conta no mundo atual, mas sempre que acontece uma tragédia, imediatamente as pessoas que vivem como se Ele não existisse passam a cobrar Sua existência: “Onde está Deus? Por que Ele permite essas mortes, esse sofrimento para a humanidade?” Ora, “o Pai, que não poupou seu Filho do sacrifício de cruz, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32), se manteria indiferente ao que está acontecendo? A verdade é que o Pai sente a morte de cada ser humano como se fosse seu filho único! Não foi o Pai quem criou o coronavírus, mas, se Ele permitiu, algo importante está querendo nos dizer. Cremos que Ele permitiu essa pandemia para nos ensinar alguma coisa, para nos levar a repensar a maneira como vivemos, a maneira como os países organizam sua economia, a maneira como o ser humano interage com o meio ambiente...
“Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). O Filho não veio para condenar, mas para salvar. Justamente por isso, o Filho fez questão de colocar-se junto a todos os pecadores, junto a todas as pessoas condenadas pela sociedade e pela religião do seu tempo. O Filho não foi dado ao mundo como prêmio do Pai para os perfeitos e santos, mas como remédio para os doentes, como libertação para os condenados e como salvação para os perdidos. Eis porque nenhum ser humano deve se sentir condenado. “Não há mais condenação para aqueles que estão em Jesus Cristo” (Rm 8,1). Todo ser humano que acolhe a salvação que o Pai oferece gratuitamente na pessoa do Filho liberta-se de todo tipo de condenação.  
            Como celebramos na semana passada, na festa de Pentecostes, o Pai e o Filho escolheram habitar no coração humano por meio do Espírito Santo. O Espírito Santo, por sua vez, comprova que somos filho do Pai, homens e mulheres redimidos na cruz do Filho, homens e mulheres habitados pelo Espírito que nos garante a ressurreição e a vida eterna. Nossa missão é ajudar cada ser humano a deixar o lugar sombrio da solidão para experimentar a alegria da comunhão do amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Nossa missão é testemunhar a verdade da Santíssima Trindade, a verdade do Pai que nos ama e está acima de todos nós, do Filho que nos salva e está junto de cada um de nós, e do Espírito Santo que nos vivifica e está dentro de cada um de nós.

Pe. Paulo Cezar Mazzi