quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

RECUPERAR NOSSA OBEDIÊNCIA DE FILHOS


Missa do 1º dom. quaresma 2020. Palavra de Deus: Gênesis 2,7-9; 3,1-7; Romanos 5,12-19; Mateus 4,1-11.

As tentações de Adão e Eva, assim como as tentações de Jesus, são as nossas tentações. Todo ser humano se sente tentado: quando está sofrendo, se sente tentado a desistir da vida; quando está feliz, se sente tentado a pensar que sua felicidade é definitiva; quando está com Deus, se sente tentado a usá-Lo para seus interesses egoístas; quando está sem Deus, se sente tentado a se tornar desumano para poder sobreviver nesse mundo injusto, desigual e violento.
As tentações nunca vêm de Deus; elas nascem da nossa própria mania em querer uma vida sem cruz, um caminho sem dificuldade, uma vida feita somente de vitórias e de sucesso, sem qualquer tipo de luta ou sacrifício. Ora, as tentações estão presentes em nossa vida justamente para nos lembrar de que nenhum ser humano se torna homem – isto é, uma pessoa madura, livre, senhora de si – sem lutar. “Ninguém se torna senhor de si mesmo enquanto não lutar com os demônios que habitam o seu interior e que tentam mandar na sua vida. Além disso, só é possível conhecer o céu quem primeiro conheceu seu próprio inferno interior” (Anselm Grün).
Assim como Adão e Eva, nós somos tentados a desconfiar que Deus não nos ama verdadeiramente e não quer a nossa felicidade. Diante de algum limite que Ele nos coloca – comer de todas as árvores, menos de uma – nós reagimos como uma criança mimada que não aceita ouvir um “não”, que acha que pode tudo e não aceita qualquer limite. Sem medir as consequências, nós decidimos romper com Deus, como que dizendo: ‘Eu não quero mais viver na dependência de Deus. A partir de hoje, não é mais Deus, e sim eu mesmo quem decido o que é o bem e o que é o mal para mim’. Desse modo, “o pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a morte. E a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5,12).
Essa desobediência de todo ser humano a Deus abriu inúmeras feridas na humanidade, feridas que levaram muitos à morte. Desse modo, foi preciso que um novo Adão, um novo ser humano viesse ao mundo, para nos mostrar que é possível sermos obedientes a Deus e, nessa obediência, encontrar a vida e a felicidade que tanto desejamos. É assim que o Evangelho nos apresenta Jesus vivenciando sua quaresma no deserto. Esse deserto não é tanto um lugar quanto uma situação de vida, para onde Deus às vezes permite que sejamos levados, a fim de nos reencontrar com o essencial, a fim de reordenar os nossos afetos e compreendermos essa importante verdade: “Posso fazer tudo o que quero, mas nem tudo me convém. Posso fazer tudo o que quero, mas não me deixarei escravizar por coisa alguma” (1Cor 6,12).
“Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, depois disso, sentiu fome. Então o tentador se aproximou...” (Mt 4,2). A primeira tentação de Jesus se deu numa situação de fome. Sentir fome significa deparar-se com nossas necessidades básicas. Enquanto o tentador nos propõe reduzir a nossa vida ao que podemos consumir, Jesus nos desafia a dialogar com nossas necessidades e a ampliar o sentido da nossa existência, pois somente Deus pode preencher nossas necessidades e somente obedecendo à Palavra dele é que encontraremos a vida plena e a felicidade que tanto desejamos.
            A segunda tentação de Jesus se deu no Templo! “Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’” (Mt 4,5-6). Para nos afastar de Deus e da Sua vontade, o diabo não precisa nos tirar da Igreja; ele usa da própria religião para deformar a imagem que temos de Deus, para distorcer o sentido da Sagrada Escritura, de modo que acreditemos que Deus pensa como nós pensamos, quer o que nós queremos, defende o que nós defendemos e gosta do que nós gostamos. Quantos de nós estamos fazendo o que contrário do que Deus quer, enquanto nos imaginamos abençoados por Ele?   
            Por fim, a terceira tentação de Jesus: “O diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, e lhe disse: ‘Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar’” (Mt 4,8-9). Todos nós, seres humanos, nos sentimos pequenos e fracos, e isso nos incomoda. Todos nós nos sentimos inferiores em relação a alguém ou a alguma coisa. Todos nós gostaríamos de nos sentir mais fortes, maiores, mais capazes; todos nós desejamos um dia chegar ao topo, ao lugar mais alto possível. Mas o preço a ser pago é igualmente alto: deixar de sermos imagem e semelhança do Deus que se abaixou, que se fez humano em Seu Filho Jesus, para nos deformar na imagem do pai da soberba, da arrogância, do orgulho, do pai do poder que corrompe e destrói, porque é um poder demoníaco.
            Jesus soube dialogar com suas tentações e desmascará-las à luz da Palavra de Deus. Ele nos lembra que, diante de qualquer tentação, nós sempre permanecemos livres e podemos escolher entre viver segundo a vontade de Deus ou viver segundo o nosso ego, o qual recusa qualquer coisa que seja contrária ao seu bem estar e os seus interesses, rejeitando, desse modo, toda possibilidade de sofrimento, de sacrifício, de renúncia e de cruz. Somente no caminho da obediência ao Pai é que o filho torna-se verdadeiramente homem. Somente imitando o Filho, na sua luta contra o mal, presente em si e no mundo, é que nós nos tornamos pessoas verdadeiramente livres, pessoas que recuperaram seu autodomínio e podem, dessa forma, contribuir para sanar as feridas que pecado pessoal e social tem aberto na humanidade.  

Pe. Paulo Cezar Mazzi
           

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