Ao
interpretarem a Bíblia a bel prazer, religiosos passam a usar Jesus e o
evangelho como bandeiras bolsonaristas.
Um
dos maiores desafios que se impõem aos teólogos e pastores do cristianismo
evangélico é enfrentar no campo das ideias as mirabolantes distorções que
afetam a doutrina e a prática cristã. Antes, essa tarefa envolvia combater
heresias (nome dado pela teologia aos ensinos heterodoxos) que afetavam apenas
o meio evangélico, com distorções já graves das sagradas escrituras. Hoje, as
consequências do não enfrentamento contínuo desses ensinos ultrapassam os
arraiais evangélicos e causam danos a toda população, independente de fé ou
ausência de fé.
Destaco
como uma das maiores perversões do evangelho a teologia da prosperidade. Essa
teologia foi a semente que se transformou em uma grande árvore, produzindo toda
sorte de frutos podres. Ela nega a realidade do sofrimento humano como
consequência das condições naturais, contrariando o que Jesus diz em Mateus
5:45 quando assevera que “…Ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama
chuva sobre justos e injustos”. Nega que a desigualdade é resultado da ganância
dos homens e de perversões de governos que nada fazem para diminuir o abismo
das diferenças sociais na população.
Esse
ensino raso defende que o pobre é pobre por sua falta de fé, que o doente é
doente também por sua falta de fé. A vítima se transforma no algoz, sem nenhuma
reflexão de conjuntura ou contexto em que estes problemas ocorrem. Acreditam
que a solução é individual e que responsabilizar a falta de condições iguais é
“vitimismo”.
Essa
teologia ressoa de maneira retumbante nas palavras do atual presidente quando
diz que não existe fome no Brasil e, por isso, repudia políticas
compensatórias que diminuam desigualdades sociais históricas, como as dos negros, por exemplo.
Para Bolsonaro e outros adeptos dessa teologia, a concentração de riqueza não
tem relação com a pobreza. Ao contrário, os ricos são “abençoados” por Deus e
devem, por isso, ter a atenção do estado com subsídios e redução de impostos.
Aliás,
o acúmulo de bens deve ser algo a ser perseguido como resultado das “bênçãos”
de Deus. Tudo isso aplaudido por cristãos que negam o evangelho de Cristo por
puro individualismo e egoísmo. O mesmo evangelho no qual Jesus diz que “a vida
do homem não consiste na abundância de bens que possui” (Lucas 12:15) e que não
devemos acumular tesouros na terra (Mateus 6:19).
Jesus
contrariou esse individualismo claramente. Um dos exemplos está registrado nos
evangelhos. Ele ensinou a multidões o dia todo, e a multidão (mais de 10 mil
pessoas) estava faminta. Os discípulos foram a Jesus com uma solução
individualista: “Manda embora o povo para que possa ir aos campos e povoados
vizinhos comprar algo para comer” (Marcos 6:36), ou seja, que se virem cada um
por si. Jesus, querendo mostrar o verdadeiro teor do evangelho, disse aos seus
discípulos para que eles dessem de comer ao povo (v. 37). Eles ficaram
horrorizados com a proposta.
Jesus,
então, perguntou quantos pães e quantos peixes havia para dividir com a
multidão. Com apenas cinco pães e dois peixes em mãos, ordena que a multidão se
sente sobre a grama verde em pequenos grupos (v. 39). De maneira coletiva e
jamais individual, o milagre aconteceu e todos se fartaram, sobrando 12 cestos
cheios, um para cada discípulo que duvidava dessa estratégia (v. 42 e 43).
Jesus nos ensina que parte da felicidade pessoal está em saciar a necessidade
do próximo, algo impensável em uma teologia individualista. Mas, como eu disse,
essa teologia gerou frutos, e esses frutos se espalharam de maneira rápida em
nosso país, atingindo a maioria dos grupos evangélicos.
O tsunami herético
neopentecostal foi de tão grande intensidade que conseguiu atingir líderes de
igrejas históricas, que orientaram, em carta pública, que os
crentes votassem em candidatos que tenham “uma visão cristã de mundo”,
“refreiem a representação de ideologias anticristãs em nossos parlamentos” e
ainda “repudiem qualquer ideologia que se oponha à mensagem e aos ensinamentos
da Bíblia”, reavivando a sepultada (acreditava-se assim) heresia do teonomismo,
que é a crença de que a Bíblia, incluindo as leis judiciais do antigo
testamento, devem ser cumpridas por toda a sociedade, independente de sua fé.
Essa heresia pressupõe que tenho de votar em quem defende a visão cristã de
mundo.
O
mais interessante é que os que assinam a carta se intitulam “liberais” no
sentido político da palavra, o que é um contrassenso porque o liberalismo
rechaça que princípios religiosos se misturem com política, além de respeitar
toda e qualquer crença e lutar por sua existência. Esses pastores, supostos
liberais, advogam que os princípios cristãos devem ser seguidos por toda a
sociedade de maneira impositiva, atuando nas três esferas de poder a fim de que
sua visão particular seja hegemônica e suplante as demais.
LUTA
ANTIGA
Lembro-me
que no fim da década de 1980, o Christian Research Institute, dos
Estados Unidos, abriu uma representação no Brasil: o Instituto Cristão de Pesquisas (ICP).
Sua finalidade era combater essas heresias, portanto, criou-se um cadastro de
seitas e amplo material apologético a fim de combatê-las uma a uma. O instituto
fez um grande trabalho para o público interno das igrejas, denunciando grupos
que se intitulavam de fé cristã, mas que tinham práticas totalmente contrárias
ao cristianismo.
Destaco
um exemplo do trabalho apologético do ICP, que foi o combate ao grupo religioso
denominado Testemunhas de Jeová, denunciando seu ensino de proibição de doação
de sangue, que é resultado de uma interpretação tosca de versículos isolados da
Bíblia. O ICP publicou amplo material, divulgado em todos os meios, inclusive
em jornais e revistas, mostrando claramente que essa prática não tinha a ver
com o cristianismo e que poderia provocar muitas mortes, inclusive de crianças.
Infelizmente,
a defesa teológica do ICP e de outros institutos não foi forte o bastante para
combater os primeiros ensinos importados dos EUA e trazidos pelas incipientes
igrejas neopentecostais. Enquanto esses erros afetavam apenas o meio
evangélico, o dano era controlado. Mas agora as consequências dessas doutrinas
transpuseram a barreira evangélica e passaram a atingir a população como um
todo em uma onda de anacronismo cultural jamais vista no Brasil.
A
teologia do domínio, derivação mais simples do teonomismo, se baseia no
pressuposto de que o domínio da terra foi usurpado do homem pelo diabo desde o
pecado de Adão. Assim, é tarefa da igreja, dos cristãos, tomarem esse domínio
de volta. A estratégia para essa tomada é ter domínio em áreas de influência da
sociedade (política, educação, cultura, judiciário, etc), a fim de estabelecer
o domínio de Jesus na terra.
Um
exemplo inequívoco dessa estratégia de poder foi a criação da Anajure, a
Associação Nacional de Juristas Evangélicos, que tem como um de seus objetivos
defender na sociedade os valores do cristianismo, discutindo os projetos de lei
em tramitação no congresso. Recentemente, essa associação conseguiu o
compromisso de Augusto Aras, promotor indicado por Bolsonaro e aprovado pelo
Senado para ser o procurador-geral da República, com sua carta de princípios
que incluem o compromisso com a pauta moral e conservadora cristã da
associação.
O
objetivo é claro: “cristianizar” a sociedade por meio da influência nos órgãos
públicos, hoje à mercê de ingerências religiosas por orientação de Bolsonaro,
que já disse que seu próximo indicado ao STF será alguém “terrivelmente
evangélico”.
O
‘EUVANGELHO’
A
gravidade da situação é tamanha que o evangelho de Jesus foi totalmente
subvertido e, em seu lugar, foi criado um evangelho apócrifo que chamo de Euvangelho,
um neologismo que aplico para classificar um ensino em que o individualismo, o
egoísmo e a vitória pessoal estão acima do bem- estar coletivo e do respeito
aos mais simples predicados de humanidade. Tudo isso usando a Bíblia como base,
com uma interpretação bastante oportunista, malversada e descontextualizada.
Essa
subversão do evangelho simples de Cristo é substanciada na ideia de que devemos
escolher um presidente por suas propostas que beneficiem o meu grupo particular
e não o conjunto da população. Dessa forma, os evangélicos acabam sendo
orientados a votar em quem irá defender suas pautas religiosas e morais, sem
observar que essa defesa em nada irá contribuir para diminuir o sofrimento dos
mais de 43 milhões de brasileiros que
vivem na pobreza. É mais importante ver a igreja ampliando seu domínio sobre o
país do que vê-la apoiando projetos que visam diminuir a fome e a miséria.
Lembro
de uma situação que ilustra bem esse “euvangelho” como prática nas igrejas. Eu
estava pastoreando uma igreja em Balneário Camboriú, norte de Santa Catarina.
Um jovem evangélico, aproveitando a grande quantidade de evangélicos na cidade,
se dispôs a disputar a prefeitura. Nessa época, eu fazia um trabalho de
assistência às crianças que ficavam trancadas dentro de casa, pois as mães
tinham de trabalhar e não havia vagas em creches. Sem opção, as mães mantinham
seus filhos trancafiados dentro de suas casas a fim de protegê-los dos perigos
das ruas. Algumas vezes, cheguei nessas casas, e a criança estava sem comer e
não tínhamos como entrar. Tentávamos passar alimentos por baixo da porta ou por
alguma outra greta, a fim de, ao menos, minorar a situação de fome dessas
crianças.
Pois
bem, o candidato evangélico tratou de reunir os pastores da cidade para ouvir
suas reivindicações e obter apoio. Nenhuma das reivindicações tratava do
problema da falta de vagas de creche para as crianças. Pediam desde calçamentos
para a rua da Igreja até ajuda financeira para a “marcha para Jesus” e o fim da
“parada gay” na cidade. Levantei meu dedo e falei das creches. Um pastor de uma
tradicional e rica igreja na cidade defendeu que “creches apenas ajudam a
desagregar a família” pois com creche “a mulher não cumpre seu papel de mãe”.
Esse
é o euvangelho que alçou à presidência um governante com o único fim
de defender os interesses individuais da massa evangélica, preocupada com
“parada gay” e despreocupada com o drama da falta de investimento em educação
pública para todos. Diferentemente do evangelho de Jesus que reparte e não
busca seus próprios interesses, esse euvangelho quer juntar para si e
apenas busca seus próprios interesses. Um exemplo desses interesses egoístas,
capitaneado pelos mercantilistas da fé, foi a exoneração do
secretário da Receita Federal Marcos Cintra, após este defender a criação de um
imposto sobre as igrejas. Outro exemplo claro do servilismo do governo
Bolsonaro aos interesses mesquinhos dos euvangélicos foi a destinação
de dinheiro público, cerca de 153,7 milhões de reais por ano, às comunidades terapêuticas religiosas
(maioria evangélicas). Para se ter uma ideia desse disparate, esse é quase o
mesmo valor gasto anualmente com os 331 Centros de Atenção Psicossocial (Caps)
que contam com equipe multiprofissional (com psiquiatras, psicólogos,
enfermeiros e outros profissionais de saúde), bem diferente das comunidades
terapêuticas que nem sempre têm estrutura profissional.
A
fim de frear a incipiente força do neopentecostalismo, que já trazia de berço
essa doutrina egoísta e individualista, em 1974, mais de 2,4 mil líderes
evangélicos de cerca de 150 países se reuniram em Lausanne, na Suíça, para
discutir a evangelização do mundo. Como resultado desse congresso, foi
elaborado o pacto de Lausanne, um
documento em que a igreja se arrepende de excluir da evangelização a atividade
social, pois isso faz parte de seu dever como igreja e que a mensagem da
salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de
opressão e de discriminação. Defende também que, nós cristãos, não devemos ter
medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. Com essa carta de
princípios, os signatários estavam declarando que o evangelho não poderia ser
egoísta e centrado nas necessidades da igreja e, sim, nas necessidades do
próximo.
Para
dar um exemplo de como esses ensinos anti-cristãos pularam o muro das igrejas
neopentecostais e trouxeram reflexos em toda a sociedade, evangélica e não
evangélica, cito uma carta de felicitação pela
eleição de Jair Bolsonaro, escrita por um pastor de uma igreja
histórica, Mauro Meister, que afirmou sem ruborizar que é a favor da pena de
morte para condenados, do direito à autodefesa (uso de armas pela sociedade
civil) e que foi “a mão de Deus” que colocou Bolsonaro na presidência, em mais
uma interpretação descontextualizada de Romanos 13, texto que foi escrito para uma
igreja que vivia sob o jugo do cruel império romano, onde o mínimo sinal de
insurgência por parte de qualquer cristão significaria sua morte, sendo esta a
preocupação de Paulo.
Será
que o citado pastor concorda com a interpretação literal de Romanos 13:3 onde
Paulo diz que só quem pratica o mal deve temer a autoridade e quem pratica o
bem não tem o que temer? Como explicar a condenação de Jesus à morte? Jesus
praticou o mal? E o diácono Estevão, morto apedrejado pelos judeus com a
permissão explícita das autoridades de Roma? Ele também praticou o mal? E
Bonhoeffer, pastor germânico condenado à morte por Hitler também praticou o
mal?
Textos
antigos descontextualizados da história e fora de contexto são meros pretextos.
Se foi a “mão de Deus” que alçou Bolsonaro à presidência, não estaria o nobre
pastor dando um caráter de “ungido de Deus” a Bolsonaro, semelhante aos reis do
antigo testamento, que o imunizaria de ser criticado por quem o elegeu, sua
base eleitoral cristã?
De
onde vocês acham que ele tira esses conceitos? Da Bíblia, óbvio. Pelo menos, da
parte em acordo com a interpretação que lhe convém. Como protestante, eu
defendo o livre exame das Escrituras Sagradas por todos os cristãos. Essa é uma
das bases da Reforma Protestante. Mas não confundamos livre exame com livre
interpretação. São ações distintas. A interpretação da Bíblia deve seguir as
regras gerais de interpretação de qualquer livro antigo e não sofrer
interferências de minhas próprias convicções e, sim, das palavras de Jesus nos
evangelhos.
Observe
que eu citei as palavras de um teólogo oriundo de uma igreja histórica séria e
com excelente formação acadêmica. Aliás, tenho mais convergências com ele do
que divergências. Isso mostra o tamanho do problema e do desafio que está
diante de nós. O que fazer?
Entendo
que de nada adianta que pessoas alheias ao meio evangélico tentem desconstruir
esses conceitos. Infelizmente, na mentalidade do povo, a figura do carteiro tem
igual ou maior importância que a mensagem contida na carta que ele quer
entregar. A voz dessa pessoa, por mais capacitada e bem fundamentada que seja,
não encontrará ouvidos aptos a recepcionar seus argumentos. Pelo menos não
entre os evangélicos.
O
mesmo pensamento tenho de pastores e teólogos conhecidos como “liberais” ou
“universalistas”. O teólogo liberal é tido como um eterno relativista dos
princípios bíblicos, e o universalista diminui o valor da doutrina da morte
expiatória de Cristo na cruz, que é cara ao cristianismo, pois acredita que
todos os homens são intrinsecamente bons e, portanto, todos serão salvos ao
final, fazendo com que a necessidade de Jesus morrer por nossos pecados seja
tacitamente nula. Estes, de igual forma, também não serão ouvidos pela grande
massa evangélica.
COMO
RECUPERAR O EVANGELHO DE JESUS?
Pensando
nisso, alguns pastores de pensamento teológico ortodoxo que tem apreço à
democracia e acreditam na laicidade do estado, dentre os quais me incluo, estão
formando grupos a fim de criar iniciativas de combate a esses ensinos
pseudo-escriturísticos. Essas heresias têm forma de purismo teológico, mas seu
conteúdo é anticristão, contrário ao puro e simples evangelho de Jesus.
Ensinos
oriundos de pastores de massa, como o pastor Lucinho Barreto que, em vídeo, faz
apologia ao uso da força letal pela
polícia com visível alegria; ou como o pastor Augustus Nicodemus que defende de
maneira aberta que o cristão pode usar da violência para se defender, contrariando
explicitamente o que diz em Mateus 5:39, onde Jesus contraria todo o senso
comum da época (e parece que de hoje também) e defende que “…se alguém o ferir
na face direita, ofereça-lhe também a outra”; ou outro como o pastor Franklin
Ferreira, um dos mais ferrenhos defensores das teses da extrema direita cristã
conservadora comemorando a vitória de
Bolsonaro como presidente porque este representaria o
conservadorismo cristão e o liberalismo econômico, mesmo sabendo dos discursos
anti-cristãos de Bolsonaro a favor de extermínio de criminosos e penas cruéis.
E
como se dará esse combate? Usando a mesma base usada pelos que subvertem a sã
doutrina: a Bíblia. Fazendo isso, jogamos no mesmo campo e com a mesma bola que
eles usam. E qual a estratégia de ação? Está sendo criada uma rede de blogs,
canais no YouTube, podcasts e contas em redes sociais a
fim de mostrar as incongruências dessas crenças sem jamais desprezar, ferir,
humilhar ou depreciar a fé do povo evangélico.
Acredito
piamente que, se conseguirmos ao menos desconstruir os gigantes da teoria do
domínio (versão neopentecostal) e do teonomismo (versão dos ditos reformados),
já valerá o esforço. Por quê? Pelo simples fato de que todos são livres para
ter sua fé pessoal. Todos podem crer naquilo que quiserem crer. Como cristãos,
podemos crer que o matrimônio é para sempre, na castidade pré-nupcial e,
inclusive, na condenação eterna da alma. Isso é direito fundamental de toda
sociedade democrática. Mas jamais podemos trabalhar, desejar, lutar ou planejar
que esses princípios de fé pessoal cristã sejam impostos, à força, mediante
ascensão de um governo “cristão”, assumidos pelo conjunto da população,
composta por variadas crenças, culturas e até o democrático direito de ausência
de crença. O verdadeiro cristão acredita que o Reino de Deus e seus princípios
são recepcionados de maneira voluntária, por aquele em quem o Espírito Santo
trabalhou na alma, tal qual disse o profeta Zacarias: “Não por força nem por
violência, mas sim pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos”. (Zacarias
4:6).
Pastor
Alexandre Gonçalves