sábado, 26 de janeiro de 2019

A PALAVRA REVELA O SENTIDO DO NOSSO "HOJE"

Missa do 3º. dom. comum. Palavra de Deus: Neemias 8,2-4a.5-6.8-10; 1Coríntios 12,12-30; Lucas 1,1-4;4,14-21.

Quando algo que amávamos foi destruído, qual é a chance de que aquilo seja reconstruído? Quando já sepultamos há muito tempo nossas esperanças e enterramos nossos sonhos, existe alguma força que nos convença de que vale a pena desenterrá-los? Enfim, existe algo que nos devolva coragem, ânimo, força, algo que nos ofereça uma clara orientação, um norte, uma luz que nos ajude a sair da escuridão em que nos encontramos e nos faça renascer por dentro? A resposta para todas essas perguntas é uma só: a Palavra de Deus.
Numa época de grande desolação, depois da sofrida experiência do exílio na Babilônia, Esdras e Neemias têm a grande missão de convencer o povo de Israel a voltar para a sua terra e reconstruir tudo: suas casas, suas cidades, seu país, seu templo. A leitura que ouvimos hoje mostra que a única força capaz de tornar possível essa reconstrução foi a força da Palavra de Deus, diante da qual o povo ora permanecia em silêncio, escutando, acolhendo, deixando-se ensinar; ora se colocava em pé, em sinal de prontidão e de uma obediência ativa; ora inclinava-se e prostrava-se até o chão, como se o fizesse diante do próprio Deus, em sinal de adoração; ora, enfim, proclamava diante da Palavra: “Amém! Amém!”
            Para todos aqueles que creem na Sagrada Escritura, a Palavra não é algo, mas Alguém; a Palavra é uma Pessoa; a Palavra é o próprio Deus. Durante a leitura da Palavra, o povo ficou em pé; depois, levantou as mãos; depois, inclinou-se e prostrou-se... Como e com qual disposição ouvimos a Palavra de Deus em nossas celebrações? Quando nos deixamos tocar pela Palavra, ela provoca movimentos em nossa alma; movimentos positivos, como consolação e orientação, mas também movimentos negativos, como desolação e inquietação. Nós acolhemos a Palavra como um todo, ou rejeitamos aquilo que nela está contra os nossos interesses mundanos? Nós nos dobramos diante da verdade da Palavra de Deus, pronunciando o nosso “amém”, ou questionamos a Palavra, procurando negociar com ela até que se adapte aos nossos desejos, como se isso fosse possível?
Se o texto de Neemias nos mostra que a Sagrada Escritura é a Pessoa do próprio Deus que fala conosco, nós, cristãos, sabemos que a Palavra se fez pessoa humana em Jesus Cristo e veio habitar entre nós (cf. Jo 1,14). Jesus não é somente Aquele que nos anuncia a Palavra de Deus, mas Aquele capaz de falar ao coração humano, Aquele que transforma a letra em espírito, Aquele que revela para o hoje da nossa história pessoal e social o que Deus quer de nós. Se é verdade que a Sagrada Escritura não é um livro de história, mas um livro de fé, um livro escrito a partir de uma experiência de fé, de uma experiência de Deus, para falar à fé daquele que “hoje” escuta ou lê algum texto deste Livro Sagrado, Jesus nos convida a permitir que o “hoje” de cada um de nós seja iluminado pela verdade da Palavra.
“Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (Lc 4,21). Existem fatos bíblicos que aconteceram há mais de quatro mil anos, assim como existem textos bíblicos que foram escritos entre dois e três mil anos atrás. No entanto, a Sagrada Escritura tem algo a nos dizer “hoje”. Para o evangelista Lucas, todo “hoje” da nossa história pessoal e social é um momento único, um momento novo, onde somos chamados a fazer escolhas e a tomar decisões, e essas escolhas e decisões precisam ser orientadas pela Palavra de Deus. Se ontem nós acolhemos ou rejeitamos a orientação que Deus nos deu na Sua Palavra, hoje é um momento novo, a oportunidade que temos seja para confirmar nossos passos no caminho da salvação, seja para reorientar esses mesmos passos, caso tenhamos nos desviado deste caminho.
Como está o nosso “hoje”? Ele está marcado por um forte individualismo e por uma consequente indiferença uns para com os outros. Este nosso “hoje” é iluminado pela palavra do apóstolo Paulo, que nos coloca diante da imagem do corpo. Ninguém de nós é uma pessoa “solta” e totalmente autônoma no universo. Cada um de nós está inserido num “corpo” e depende deste mesmo corpo para viver. Existe o corpo-família, o corpo-escola/faculdade/universidade, o corpo-ambiente-de-trabalho, o corpo-igreja/comunidade-de-fé. Além disso, existe o corpo-social, o corpo-humanidade/universo. O apóstolo Paulo nos convida a reconhecer o nosso valor, a nossa importância e a nossa responsabilidade para o bom funcionamento do corpo no qual estamos inseridos, ao mesmo tempo reconhecendo, valorizando e respeitando o outro como membro do mesmo corpo.
O primeiro erro que precisamos evitar na maneira como nos inserimos no corpo social é o de nos sentirmos autossuficientes: “O olho não pode, pois, dizer à mão: ‘Não preciso de ti’. Nem a cabeça pode dizer aos pés: ‘Não preciso de vós’” (1Cor 12,21). Nós precisamos uns dos outros. Ninguém sobrevive sozinho; ninguém se salva sozinho. Quando uma pessoa se isola das demais, começa a fazer mal a si mesma e ao próprio corpo no qual está inserida. Além disso, existe o risco de desprezarmos pessoas que consideramos não importantes, não necessárias para o bom funcionamento do corpo social: “Os membros do corpo que parecem ser mais fracos são muito mais necessários do que se pensa... Deus, quando formou o corpo, deu maior atenção e cuidado ao que nele é tido como menos honroso, para que não haja divisão no corpo e, assim, os membros zelem igualmente uns pelos outros” (1Cor 12,22.25). Quando não nos preocupamos com aqueles que estão na injustiça e não são contemplados pelo mercado, isso acaba se voltando contra nós, em forma de violência social.
Por fim, Paulo nos fala da inter-relação que nos liga a todos ao mesmo destino de bem-estar ou de mal-estar, de vida ou de morte, de salvação ou de condenação: “Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele; se é honrado, todos os membros se regozijam com ele” (1Cor 12,26). Apesar do forte individualismo que marca o mundo moderno, somos desafiados a desenvolver relações humanas, marcadas pela solidariedade, pela compaixão, o que significa sentir com o outro, sentir o que ele sente, ser afetado pelo que afeta o outro. O resgate do corpo social não é apenas possível, mas também necessário, e ele passa pelo cuidado de uns pelos outros.
A Palavra nos falou, nos provocou, nos iluminou. Façamos um momento de silêncio e deixemos com que ela possa “decantar” em nós, chegando ao profundo de nós mesmos e clareando o nosso “hoje”, o momento em que estamos vivendo...
    
ORAÇÃO: Deus Pai, coloco-me diante da Tua Palavra. Minha alma em Tua voz busca direção! Fala ao meu coração! Concede-me um coração que Te escute e Te obedeça, pois minha vida só poderá ser reconstruída quando eu me orientar pela verdade da Tua Palavra.
Senhor Jesus, Teu Evangelho não é uma recordação de fatos passados, mas força de salvação para o “hoje” da minha história. Abre meus ouvidos, para que ouça como verdadeiro discípulo e me deixe iluminar, conduzir, corrigir e formar por Tua Palavra. Que em cada “hoje” da minha vida não me falte a luz do Teu Evangelho para me guiar no caminho da salvação.
Espírito Santo, cada um de nós está inserido neste grande corpo social que é a humanidade. Torna-nos instrumentos de comunhão, de solidariedade e de fraternidade. Cura as feridas que o individualismo abriu em nós. Torna-nos cuidadores daqueles que são os mais frágeis e mais necessitados de cuidados, colaborando para a humanização do nosso mundo. Amém.


Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

O VINHO NOVO SERÁ SURPREENDENTEMENTE MELHOR DO QUE O ANTIGO!

Missa do 2º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 62,1-5; 1Coríntios 12,4-11; João 2,1-11.

“Houve um casamento em Caná da Galileia” (Jo 2,1), e neste casamento Jesus manifestou aos discípulos “a sua glória, e seus discípulos creram nele” (Jo 2,11). Para entendermos o significado deste primeiro sinal que Jesus realiza para testemunhar que Ele é o Messias, o Salvador prometido ao mundo, precisamos retomar a leitura do profeta Isaías.
Num momento de grande desolação, quando a cidade de Jerusalém se sentia abandonada, não amada por Deus, ela ouviu d’Ele: “(...) por amor de Jerusalém não descansarei, enquanto não surgir nela, como um luzeiro, a justiça e não se acender nela, como uma tocha, a salvação... Não mais te chamarão ‘Abandonada’, e tua terra não mais será chamada ‘Deserta’; teu nome será ‘Minha Predileta’ e tua terra será a ‘Bem-Casada’, pois o Senhor agradou-se de ti e tua terra será desposada... Como a noiva é a alegria do noivo, assim também tu és a alegria de teu Deus” (Is 62,1.4.5).
Todo ser humano carrega em si o desejo de ser amado. No entanto, é cada vez maior o número de pessoas em nosso mundo que se sentem não-amadas nem pelos homens, nem por Deus. O sentimento de solidão é cada vez mais frequente, além do fato de que nem toda pessoa casada se sente feliz, da mesma forma como nem toda pessoa não casada se sente infeliz. No caminho da busca por amor há muitos desencontros, feridas, decepção e até mesmo descrédito em relação ao próprio amor. Contudo, desde os primeiros profetas, a imagem do casamento sempre foi utilizada como símbolo da união do ser humano com Deus, símbolo não só do amor de Deus por todo ser humano, mas também da Sua dedicação incansável em fazer com que a vida de cada ser humano seja abraçada pela justiça e pela salvação.
Não por acaso, Jesus realiza o seu primeiro sinal como Salvador numa festa de casamento. “Eles não têm mais vinho” (Jo 2,3), disse Maria a Jesus. O vinho não é apenas vinho: o vinho é amor e alegria, fé e esperança, força e sentido de vida. O vinho é a alegria da salvação de Deus, prometida a toda a humanidade; o vinho é a resposta de Deus à alma do ser humano, que tem sede de sentido de alegria verdadeira. A falta de vinho nas bodas de Caná remete para a falta de Deus no coração de inúmeras pessoas hoje, a falta de alegria e paz em muitas famílias, a falta de saúde e proteção para inúmeras crianças e adolescentes, a falta de respeito para com a vida humana, a falta de fé e de esperança em nosso próprio coração...
Diante da intercessão de Maria, Jesus responde: “Mulher, (...) minha hora ainda não chegou” (Jo 2,4). Quase todas as vezes que a palavra “hora” aparece no Evangelho de João, se refere à hora da cruz, à hora em que o mundo reconhecerá Jesus como Salvador, como Aquele que nos amou até o fim, como o Esposo da Igreja e Esposo da alma de todo ser humano. A hora da cruz é a hora em que Jesus “entregará o Espírito” e o derramará como vinho novo nas talhas do coração humano. Em Caná ainda não era a “hora” de Jesus derramar o Espírito, mas Maria pediu uma antecipação dessa hora, e Jesus a atendeu.
Essas foram as palavras Maria aos servos da festa daquele casamento: “Fazei o que ele vos disser” (Jo 2,5). A atitude de Maria nos questiona: nós viemos ao mundo para servir ou para sermos servidos? Nós nos deixamos afetar pela realidade que nos cerca, pelo que acontece à nossa volta? Não precisamos fazer muito esforço para lamentar a falta de vinho novo em nossa vida, mas quantos de nós nos dispomos a ter uma atitude proativa e encher nossas talhas de água? Sem dúvida que o vinho novo jamais poderá ser produzido por nós, mas seu surgimento certamente depende da nossa colaboração: como os servos daquele casamento, nós devemos obedecer à orientação de Jesus e encher nossas talhas de água (cf. Jo 2,7-8).   
“O mestre-sala experimentou a água, que se tinha transformado em vinho... Chamou então o noivo e lhe disse: ‘(...) tu guardaste o vinho melhor até agora!’” (Jo 2,10-11). Nas bodas de Caná, o vinho melhor chegou no final, quando não se esperava mais nada, a não ser o fim da festa. Muitos de nós estamos convencidos de que a vida é assim mesmo: tudo começa bem e acaba mal; tudo se desgasta com o tempo; tudo vai aos poucos perdendo o sentido. É assim com os nossos relacionamentos, com os nossos sonhos e projetos, com a nossa vida profissional e até mesmo com a nossa fé, com a nossa própria vocação. O encanto inicial não resiste ao desgaste da rotina e, cedo ou tarde, se converterá em desencanto.
No entanto, há algo surpreendente no Evangelho de hoje! O melhor veio depois! A alegria depois da crise foi infinitamente melhor e mais significativa do que a alegria antes da crise. E é assim porque o vinho novo é símbolo do Espírito Santo, cuja graça tudo transforma e tudo renova. Quanto a nós, sempre poderemos experimentar a alegria do vinho novo na medida em que fizermos tudo o que Jesus nos disser, enchendo nossas talhas de água na certeza de que o milagre da transformação é e sempre será um trabalho conjunto entre a graça de Deus e as nossas atitudes.

Oração: Senhor Jesus, és o Esposo não somente da Igreja, mas da alma humana, alma que tem sede de sentido, de alegria e de salvação. Olha para a falta de vinho que existe no coração da humanidade, em nossas famílias e comunidades, e em tua própria Igreja. São inúmeras as pessoas que se sentem abandonadas e não-amadas. Derrama sobre o coração de cada uma delas o dom do teu Espírito, pois somente Ele pode nos fazer experimentar verdadeiramente o amor de Deus e a alegria da Sua salvação.
Seguindo o conselho de Tua Mãe, Maria Santíssima, a exemplo dos servos daquele casamento, queremos aprender a fazer tudo o que o Senhor nos disser. Nos comprometemos a encher nossas talhas de água, a fazer a nossa parte para que, onde o vinho antigo acabou, onde quer que exista ausência de alegria e de esperança, de justiça e de fraternidade, nós possamos colaborar para o surgimento do vinho novo, da transformação que o próprio Deus quer para o bem e a salvação de cada ser humano.
Enfim, Senhor, que nenhuma crise, nenhum desencontro, nenhuma ferida ou dificuldade nos faça perder a esperança de que o vinho novo sempre surgirá e sua alegria será abundantemente superior a tudo aquilo que até hoje experimentamos, pois o Teu Espírito continua a renovar a face de terra e nós cremos no Seu poder de reavivar a nossa Igreja, curar nossas feridas e transformar nossas tristezas em verdadeira e profunda alegria. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

POR QUE O BATISMO É ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIO?


  Missa do batismo do Senhor. Palavra de Deus: Isaías 42,1-4.6-7; Atos dos Apóstolos 10,34-38; Lucas 3,15-16.21-22.
            
        No diálogo que teve com Nicodemos, Jesus deixou claro que existem dois tipos de nascimento: um, da terra; outro, do céu; um, de baixo; outro, do alto; um, o nascimento segundo a carne; outro, o nascimento segundo o Espírito (cf. Jo 3,3-6).
Todo ser humano nasce de baixo, nasce segundo a carne, porque nasce da relação de um homem com uma mulher. Ora, quando a Sagrada Escritura chama o ser humano de “carne”, ela quer afirmar que ele é mortal, finito, perecível, passível de destruição e de aniquilamento. Além disso, o apóstolo Paulo, ao falar sobre a ressurreição, isto é, sobre a nossa destinação à vida eterna, afirma que “a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus” (1Cor 15,50). Portanto, todos nós, depois de termos nascido da carne, precisamos de um segundo nascimento, que é o nascimento operado por Deus, através do Espírito Santo. Isso nos faz compreender a absoluta importância do Batismo.
            Hoje, ao celebrarmos a festa do batismo de Jesus, poderíamos nos perguntar: Por que Jesus precisou ser batizado, se Ele já existia em Deus antes de vir ao mundo e assumir a nossa carne, isto é, a nossa condição mortal? Na verdade, Jesus não precisou ser batizado; Ele quis ser batizado, seja para nos falar da necessidade do batismo para a nossa salvação, seja para santificar as águas por meio das quais se realiza o batismo. De fato, São Máximo de Turim afirmou: “Cristo foi batizado não para ser santificado pelas águas, mas para santificá-las”.
            Como o Evangelho de hoje deixou claro, antes de Jesus começar seu ministério já existia um tipo de batismo: o batismo de João. No entanto, o próprio João revelou a superioridade do batismo de Jesus ao afirmar: “Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu... Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo” (Lc 3,16). Aqui podemos lembrar algo muito simples: a água tem o poder de lavar, de limpar, mas o fogo tem o poder superior de purificar. Por exemplo, a prata ou o ouro podem ser lavados o quanto forem, mas somente passando pelo fogo é que ambos perdem todas as suas impurezas. O fogo tem um poder superior ao da água para purificar o ouro e a prata. Além disso, o fogo tem o poder de transformar até mesmo o metal mais duro.
            Quando João Batista compara o seu batismo na água ao batismo de Jesus no fogo, ele está falando do Espírito Santo, que nos é dado no batismo como Aquele que opera em nós o nascimento do alto, Aquele cujo fogo nos purifica, nos santifica e nos transforma, quando nos deixamos conduzir por Ele. De fato, após o batismo realizado por João, Jesus se colocou em oração, e, “enquanto rezava, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma visível, como pomba” (Lc 3,21-22). O que São Lucas quer nos mostrar é que Jesus não recebeu o Espírito Santo da água, isto é, do batismo de João, mas do alto, do céu, que se abriu sobre Ele enquanto rezava.
            Conosco acontece algo novo. A partir do momento em que Jesus, ao ser batizado, santifica as águas, elas se tornam para nós o sinal visível da graça invisível do Espírito Santo. De fato, o próprio Jesus compara o Espírito Santo à água, mas O chama de “água viva” (cf. Jo 7,37-39), isto é, água capaz de transmitir a vida do alto, a vida eterna! Mas, atenção! O batismo não é algo mágico. Não basta receber o Espírito Santo no batismo e já estamos automaticamente destinados à vida eterna. Como muito bem afirma o apóstolo Paulo, “todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8,14). Paulo poderia ter afirmado: “todos os que são batizados são filhos de Deus”, mas preferiu colocar, no lugar de “ser batizado”, a expressão “ser conduzido” pelo Espírito Santo.
            Inúmeras pessoas já foram batizadas, mas quantas delas aceitam ser conduzidas pelo Espírito Santo? Aliás, cada um de nós, batizados, precisa fazer um sério exame da sua vida de batizado. Para isso, o profeta Isaías nos dá uma grande ajuda, ao mostrar como é o comportamento de uma pessoa que se deixa conduzir pelo Espírito de Deus: “Não quebra uma cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega; mas promoverá o julgamento para obter a verdade. Não esmorecerá nem se deixará abater, enquanto não estabelecer a justiça na terra” (Is 42,3-4). Também podemos lembrar aqui como foi a vida de Jesus após o batismo: “Ele andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo demônio; porque Deus estava com ele” (At 10,38).
            Uma coisa é ter sido batizado; outra coisa é procurar viver segundo a verdade do próprio batismo. Viver segundo o Espírito Santo recebido no batismo é ser paciente e tolerante consigo e com os outros; é pautar sua vida pela verdade e buscar em todas as coisas a verdade; é lutar incansavelmente pela justiça; enfim, é fazer o bem onde quer que se encontre e sempre que possível.
Mas há um outro aspecto muito importante, quando se fala do nosso batismo: nossa relação com Deus Pai. O fato de Jesus, após o batismo, se colocar em oração é algo fundamental para a nossa vida de batizados: todo filho de Deus vive numa absoluta dependência espiritual do Pai. São Lucas é o evangelista que mais destaca o quanto Jesus valorizava e cultivava sua vida de oração. Não por nada, foi durante sua oração após o batismo que o Pai declarou: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer” (Lc 3,22). O que essas palavras significam? Elas falam da nossa verdadeira origem. Nossa origem não é terrena, mas celeste! Nossa referência de vida não é a terra, mas o céu. Quem nos amou primeiro e nos chamou à vida não foram os nossos pais terrenos, mas o nosso Pai do Céu. A força que nos anima e nos faz enfrentar com coragem as dificuldades da vida não está em nossa carne, mas no Espírito que nos habita!  
            A cena final do batismo de Jesus – sua oração ao Pai e a confirmação de que Ele é Seu Filho amado – é um convite para que diariamente nos coloquemos em oração e voltemos a ouvir a voz do nosso Pai, que nos confirma como filhos Seus e nos confia uma missão sagrada: “Eu, o Senhor, te chamei para a justiça e te tomei pela mão; eu te formei e te constituí como o centro de aliança do povo, luz das nações, para abrires os olhos dos cegos, tirar os cativos da prisão, livrar do cárcere os que vivem nas trevas” (Is 42,6-7). Que a água viva do Espírito Santo renove a graça do batismo que um dia recebemos. Que o Seu fogo queime nossas impurezas e nos transforme na imagem do Filho único de Deus, cuja festa do batismo celebramos hoje. Assim seja. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

ONDE ENCONTRAR DEUS?

Missa da Epifania do Senhor. Isaías 60,1-6; Efésios 3,2-3a.5-6; Mateus 2,1-12.

“Eis que está a terra envolvida em trevas, e nuvens escuras cobrem os povos” (Is 60,2). Apesar de todas as luzes artificiais que o mundo acende para nos manter distraídos, iludidos, a verdade é que a humanidade vive momentos de grande escuridão – as guerras, a violência nas cidades, as doenças, o desemprego, a fome, o aquecimento global, a desestruturação das famílias etc. Essa escuridão atinge até mesmo a nossa fé. Hoje fala-se de um “eclipse de Deus”, uma espécie de sentimento de “ausência de Deus”, de um grande silêncio por parte de Deus, um silêncio que leva muitos ao abandono da fé e à desistência em buscá-Lo. Não são poucas as pessoas em cujo coração se apagou a luz da fé.
Mas o nascimento de Jesus foi o cumprimento da profecia de Isaías: “O povo que andava na escuridão viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,6). De fato, no dia de Natal ouvimos o Evangelho afirmar que Jesus é “a luz da verdade que, vindo ao mundo, ilumina todo ser humano” (Jo 1,9), e, no entanto, essa luz ainda não chegou a todas as pessoas, além do fato de que muitos a rejeitam, por terem se habituado a viver na escuridão.
A festa que celebramos hoje fala da manifestação de Jesus a todos os povos como “luz do mundo”. Se é verdade que “a terra está envolvida em trevas, e nuvens escuras cobrem os povos”, também é verdade que àqueles que acolhem a verdade do Evangelho são referidas essas palavras: “sobre ti apareceu o Senhor, e sua glória já se manifesta sobre ti” (Is 60,2). Se ao longo do seu ministério Jesus foi rejeitado por muitos do seu povo (os judeus), Ele foi reconhecido e acolhido como Salvador por muitos pagãos, aqui representados pelos magos do Oriente.
 “Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo” (Mt 2,2). Esses magos são a imagem de cada um de nós, quando perguntamos por Deus, quando nos sentimos mergulhados numa noite escura que parece nunca terminar, e, de repente, no meio da noite escura surge uma pequena luz, um pequeno sinal de que Deus está conosco e nos convida a caminhar, a buscar, a nos mover. Esses magos nos ensinam que as perguntas são muito importantes, pois somente quem leva a sério as perguntas da sua alma se coloca na busca da verdade; somente quem está insatisfeito com a escuridão sai em busca da luz.
Mas, onde encontrar Deus? Onde encontrar Aquele que é a verdadeira luz? “Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira” (Santo Agostinho). O caminho para encontrar Aquele que é a luz da verdade passa pela escuridão da nossa própria alma. Assim como Jacó, somente quando ficamos sozinhos conosco mesmos, somente quando paramos de fugir de nós mesmos e das nossas perguntas, e travamos uma sofrida luta com Deus no meio da nossa noite escura, é que finalmente encontramos a verdade que nos liberta (cf. Gn 32,23-33).
Os magos só encontraram Jesus porque foram persistentes em sua busca, foram fiéis ao caminho indicado pela estrela. Essa mesma estrela serve de questionamento para nós. Como podemos nos tornar um sinal de fé para inúmeras crianças e adolescentes, hipnotizados pela luz da tela do próprio celular, cuja vida espiritual está atrofiada por falta de cultivo? Como podemos ser luz para tantas pessoas que convivem conosco e se mostram avessas à nossa Igreja ou ao próprio cristianismo? A luz dessa estrela nos ensina que a luz do nosso testemunho cristão precisa sair de dentro das nossas igrejas e chegar àqueles que estão nas periferias existenciais, àqueles que se encontram doentes, desempregados, às famílias em conflito, às crianças expostas à violência e a abusos, aos adolescentes e jovens dependentes químicos etc.  
            O Evangelho de hoje nos convida, como Igreja, a prestar atenção às perguntas das pessoas, a ouvir suas inquietações, sua insatisfação, sua angústia. Alguns teólogos já afirmaram que nós, enquanto Igreja, estamos dando respostas a perguntas que as pessoas não nos fazem, ao mesmo tempo em que não queremos ouvir, não queremos nos deixar questionar por suas perguntas. Jesus nos provoca a sair debaixo da luz artificial das nossas falsas seguranças religiosas e a ir com Ele aonde quer que exista alguém na escuridão da sua desorientação, alguém que esteja lutando com Deus na noite escura da sua fé, alguém que teve a coragem de levar a sério a inquietação da sua alma, a insatisfação do seu coração. Se não fizermos isso enquanto Igreja, teremos perdido o sentido da nossa própria missão.
Finalmente, quando encontraram Jesus, os magos tiveram duas atitudes: o adoraram e lhe ofereceram presentes. Adorar significa, antes de tudo, respeitar Deus, colocar-se humildemente diante da Sua presença misteriosa, não apropriar-se d’Ele como se fosse um objeto sagrado que pudéssemos usar a nosso favor. Adorar significa dar menos espaço às palavras e mais ao silêncio, em nossa oração; significa desarmar-se, substituindo o medo pela confiança, permitindo que Deus possa tomar posse de nós e nos inundar com a Sua graça, que tudo transforma. 
Depois de adorar Jesus, os magos “abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes” (Mt 2,11). Segundo Pe. Silvano Fausti, o ouro, riqueza visível, representa aquilo que temos; o incenso, invisível como Deus, representa aquilo que desejamos; a mirra, bálsamo que cura as feridas e preserva da corrupção, representa aquilo que somos, pessoas expostas à dor e à morte. Que ao oferecer a Deus diariamente aquilo que temos, desejamos e somos como pessoa, nós possamos nos tornar um presente para a humanidade, convidando cada pessoa a oferecer a Deus o presente do seu tempo para a oração diária, o presente do seu esforço em viver na justiça e na santidade; o presente da sua renúncia a tudo aquilo que desagrada a Deus e do seu sacrifício em viver segundo o Evangelho de Seu Filho Jesus.


Oração: Ó luz do Senhor, que vem sobre a terra, inunda meu ser, permanece em nós! Senhor Deus, sobre todos os povos que vivem na escuridão da violência, da fome, das doenças e das injustiças sociais fazei brilhar a luz da vossa face! Visitai-nos nas noites escuras da nossa fé, e devolvei-nos o sentido da vossa presença. Voltai a vossa face para nós e salvai-nos!

Ó luz do Senhor, que vem sobre a terra, inunda meu ser, permanece em nós! Senhor Jesus Cristo, sois a luz da verdade que ilumina todo ser humano. Dissipai as trevas da nossa cegueira espiritual e iluminai-nos com a verdade do vosso Evangelho. Fazei de nós uma luz para aqueles que convivem conosco, sobretudo para aqueles de quem precisamos nos tornar próximos e ajudá-los a saírem da escuridão em que se encontram.


Ó luz do Senhor, que vem sobre a terra, inunda meu ser, permanece em nós! Espírito Santo, vós sois a Luz que vem do Alto. Sem a vossa luz, tudo em nós é escuridão. Iluminai o nosso caminho, fazei irradiar a vossa luz em nossas casas, escolas, locais de trabalho, igrejas e comunidades. Ensinai-nos a doar o melhor daquilo que temos, desejamos e somos, para o bem e a salvação da humanidade e para a glória de Deus, nosso Pai. Em nome de Jesus, amém! 

 Pe. Paulo Cezar Mazzi