Missa do 3º. dom.
comum. Palavra de Deus: Neemias 8,2-4a.5-6.8-10; 1Coríntios 12,12-30; Lucas
1,1-4;4,14-21.
Quando
algo que amávamos foi destruído, qual é a chance de que aquilo seja
reconstruído? Quando já sepultamos há muito tempo nossas esperanças e
enterramos nossos sonhos, existe alguma força que nos convença de que vale a pena
desenterrá-los? Enfim, existe algo que nos devolva coragem, ânimo, força, algo
que nos ofereça uma clara orientação, um norte, uma luz que nos ajude a sair da
escuridão em que nos encontramos e nos faça renascer por dentro? A resposta
para todas essas perguntas é uma só: a Palavra de Deus.
Numa
época de grande desolação, depois da sofrida experiência do exílio na
Babilônia, Esdras e Neemias têm a grande missão de convencer o povo de Israel a
voltar para a sua terra e reconstruir tudo: suas casas, suas cidades, seu país,
seu templo. A leitura que ouvimos hoje mostra que a única força capaz de tornar
possível essa reconstrução foi a força da Palavra de Deus, diante da qual o
povo ora permanecia em silêncio, escutando, acolhendo, deixando-se ensinar; ora
se colocava em pé, em sinal de prontidão e de uma obediência ativa; ora
inclinava-se e prostrava-se até o chão, como se o fizesse diante do próprio
Deus, em sinal de adoração; ora, enfim, proclamava diante da Palavra: “Amém!
Amém!”
Para
todos aqueles que creem na Sagrada Escritura, a Palavra não é algo, mas Alguém;
a Palavra é uma Pessoa; a Palavra é o próprio Deus. Durante a leitura da
Palavra, o povo ficou em pé; depois, levantou as mãos; depois, inclinou-se e
prostrou-se... Como e com qual disposição ouvimos a Palavra de Deus em nossas
celebrações? Quando nos deixamos tocar pela Palavra, ela provoca movimentos em
nossa alma; movimentos positivos, como consolação e orientação, mas também
movimentos negativos, como desolação e inquietação. Nós acolhemos a Palavra
como um todo, ou rejeitamos aquilo que nela está contra os nossos interesses
mundanos? Nós nos dobramos diante da verdade da Palavra de Deus, pronunciando o
nosso “amém”, ou questionamos a Palavra, procurando negociar com ela até que se
adapte aos nossos desejos, como se isso fosse possível?
Se
o texto de Neemias nos mostra que a Sagrada Escritura é a Pessoa do próprio
Deus que fala conosco, nós, cristãos, sabemos que a Palavra se fez pessoa
humana em Jesus Cristo e veio habitar entre nós (cf. Jo 1,14). Jesus não é somente
Aquele que nos anuncia a Palavra de Deus, mas Aquele capaz de falar ao coração
humano, Aquele que transforma a letra em espírito, Aquele que revela para o
hoje da nossa história pessoal e social o que Deus quer de nós. Se é verdade
que a Sagrada Escritura não é um livro de história, mas um livro de fé, um
livro escrito a partir de uma experiência de fé, de uma experiência de Deus,
para falar à fé daquele que “hoje” escuta ou lê algum texto deste Livro Sagrado,
Jesus nos convida a permitir que o “hoje” de cada um de nós seja iluminado pela
verdade da Palavra.
“Hoje
se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (Lc 4,21). Existem
fatos bíblicos que aconteceram há mais de quatro mil anos, assim como existem
textos bíblicos que foram escritos entre dois e três mil anos atrás. No entanto,
a Sagrada Escritura tem algo a nos dizer “hoje”. Para o evangelista Lucas, todo
“hoje” da nossa história pessoal e social é um momento único, um momento novo,
onde somos chamados a fazer escolhas e a tomar decisões, e essas escolhas e
decisões precisam ser orientadas pela Palavra de Deus. Se ontem nós acolhemos
ou rejeitamos a orientação que Deus nos deu na Sua Palavra, hoje é um momento
novo, a oportunidade que temos seja para confirmar nossos passos no caminho da
salvação, seja para reorientar esses mesmos passos, caso tenhamos nos desviado deste
caminho.
Como
está o nosso “hoje”? Ele está marcado por um forte individualismo e por uma
consequente indiferença uns para com os outros. Este nosso “hoje” é iluminado
pela palavra do apóstolo Paulo, que nos coloca diante da imagem do corpo.
Ninguém de nós é uma pessoa “solta” e totalmente autônoma no universo. Cada um
de nós está inserido num “corpo” e depende deste mesmo corpo para viver. Existe
o corpo-família, o corpo-escola/faculdade/universidade, o
corpo-ambiente-de-trabalho, o corpo-igreja/comunidade-de-fé. Além disso, existe
o corpo-social, o corpo-humanidade/universo. O apóstolo Paulo nos convida a
reconhecer o nosso valor, a nossa importância e a nossa responsabilidade para o
bom funcionamento do corpo no qual estamos inseridos, ao mesmo tempo
reconhecendo, valorizando e respeitando o outro como membro do mesmo corpo.
O
primeiro erro que precisamos evitar na maneira como nos inserimos no corpo
social é o de nos sentirmos autossuficientes: “O olho não pode, pois, dizer à
mão: ‘Não preciso de ti’. Nem a cabeça pode dizer aos pés: ‘Não preciso de vós’”
(1Cor 12,21). Nós precisamos uns dos outros. Ninguém sobrevive sozinho; ninguém
se salva sozinho. Quando uma pessoa se isola das demais, começa a fazer mal a
si mesma e ao próprio corpo no qual está inserida. Além disso, existe o risco
de desprezarmos pessoas que consideramos não importantes, não necessárias para
o bom funcionamento do corpo social: “Os membros do corpo que parecem ser mais
fracos são muito mais necessários do que se pensa... Deus, quando formou o
corpo, deu maior atenção e cuidado ao que nele é tido como menos honroso, para
que não haja divisão no corpo e, assim, os membros zelem igualmente uns pelos
outros” (1Cor 12,22.25). Quando não nos preocupamos com aqueles que estão na
injustiça e não são contemplados pelo mercado, isso acaba se voltando contra
nós, em forma de violência social.
Por
fim, Paulo nos fala da inter-relação que nos liga a todos ao mesmo destino de bem-estar
ou de mal-estar, de vida ou de morte, de salvação ou de condenação: “Se um
membro sofre, todos os membros sofrem com ele; se é honrado, todos os membros
se regozijam com ele” (1Cor 12,26). Apesar do forte individualismo que marca o
mundo moderno, somos desafiados a desenvolver relações humanas, marcadas pela
solidariedade, pela compaixão, o que significa sentir com o outro, sentir o que
ele sente, ser afetado pelo que afeta o outro. O resgate do corpo social não é
apenas possível, mas também necessário, e ele passa pelo cuidado de uns pelos
outros.
A
Palavra nos falou, nos provocou, nos iluminou. Façamos um momento de silêncio e
deixemos com que ela possa “decantar” em nós, chegando ao profundo de nós
mesmos e clareando o nosso “hoje”, o momento em que estamos vivendo...
ORAÇÃO:
Deus Pai, coloco-me diante da Tua Palavra. Minha alma em Tua voz busca direção!
Fala ao meu coração! Concede-me um coração que Te escute e Te obedeça, pois
minha vida só poderá ser reconstruída quando eu me orientar pela verdade da Tua
Palavra.
Senhor
Jesus, Teu Evangelho não é uma recordação de fatos passados, mas força de
salvação para o “hoje” da minha história. Abre meus ouvidos, para que ouça como
verdadeiro discípulo e me deixe iluminar, conduzir, corrigir e formar por Tua
Palavra. Que em cada “hoje” da minha vida não me falte a luz do Teu Evangelho
para me guiar no caminho da salvação.
Espírito
Santo, cada um de nós está inserido neste grande corpo social que é a
humanidade. Torna-nos instrumentos de comunhão, de solidariedade e de
fraternidade. Cura as feridas que o individualismo abriu em nós. Torna-nos
cuidadores daqueles que são os mais frágeis e mais necessitados de cuidados, colaborando
para a humanização do nosso mundo. Amém.
Pe.
Paulo Cezar Mazzi