quinta-feira, 26 de julho de 2018

FOME

Missa do 17º. dom. comum. Palavra de Deus: 2Rs 4,42-44; Efésios 4,1-6; João 6,1-15.

Por que nós precisamos nos alimentar? Porque nenhum ser humano possui a vida em si mesmo, mas deve recebê-la de fora, em forma de alimento. O alimento nos lembra que não somos pessoas autossuficientes; para viver, dependemos de algo que não está em nós. Biblicamente, o alimento também nos recorda a nossa dependência radical em relação a Deus; nós vivemos porque Ele nos sustenta: “Todos os olhos, ó Senhor, em vós esperam e vós lhes dais no tempo certo o alimento; vós abris a vossa mão prodigamente e saciais todo ser vivo com fartura (Sl 145,15-16).
No mundo em que vivemos há um grande contraste entre desperdício de alimento e fome. No Brasil, por exemplo, são desperdiçadas por ano 41 mil toneladas de alimento, quantidade suficiente para alimentar 25 milhões de pessoas (http://www.bancodealimentos.org.br/). Ao mesmo tempo, 32 milhões de pessoas passam fome em nosso país, e 65 milhões de brasileiros se alimentam de forma precária (https://brasilescola.uol.com.br/brasil/fome-no-brasil.htm). Portanto, a fome, seja no Brasil, seja no mundo, não é um problema de falta de alimento, mas de distribuição, de partilha, de solidariedade.
“Levantando os olhos, e vendo que uma grande multidão estava vindo ao seu encontro, Jesus disse a Filipe: ‘Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?’” (Jo 6,5). Jesus hoje quer que levantemos os olhos e enxerguemos o tipo de fome que está à nossa volta: fome de alimento, fome de afeto e de diálogo, fome de justiça e de paz, fome de respeito, de emprego e de oportunidade, fome de fé e de esperança, fome de sentido, fome de Deus... Como fez com Filipe, Jesus nos questiona: Como você lida com a fome à sua volta? Onde você acredita estar a solução para resolver esse tipo de fome?
Assim como Filipe, nós costumamos nos enganar a respeito da solução dos problemas, apostando tudo no dinheiro. Se tivéssemos dinheiro suficiente, resolveríamos os nossos problemas e os de toda a humanidade – assim pensamos. Jesus quer nos livrar dessa ilusão e nos provocar a enxergar a realidade de maneira mais profunda. Nem tudo se resolve com dinheiro. Dinheiro não sacia a fome de afeto, de diálogo, de respeito, de fé, de esperança, de sentido, de Deus, por exemplo. Na verdade, as coisas mais importantes da nossa vida não podem ser compradas com dinheiro; elas precisam ser construídas a partir das nossas atitudes.
No meio daquela imensa multidão, André descobriu algo valioso: “Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes” (Jo 6,9). No entanto, ele desprezou a força daquele pequeno recurso: “Mas o que é isso para tanta gente?” (Jo 6,9). Nós somos muito parecidos com André: deixamos nossos relacionamentos definharem, se tornarem desnutridos, porque achamos que aquilo que poderíamos fazer para alimentá-los e revigorá-los é insuficiente. Nosso erro é desprezar os pequenos gestos, as pequenas atitudes, por achar que eles não mudarão em nada a nossa realidade. Ao não valorizar nossos cinco pães de cevada (alimento de pessoas pobres) e nossos dois peixes, morremos de fome e deixamos morrer de fome aquilo que tanto gostaríamos que voltasse a viver...
Diferente de André, Jesus valoriza aquilo que aquele pequeno menino tem consigo: Ele “tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez o mesmo com os peixes” (Jo 6,11). A primeira atitude de Jesus diante dos cinco pães e dos dois peixes é “dar graças”, levantar os olhos para o céu e agradecer ao Pai, que sabe das nossas necessidades e a cada dia nos dá recursos suficientes para superarmos nossas dificuldades. “Dar graças” significa reconhecer que “o pouco com Deus é muito, e o muito sem Deus é nada” (ditado popular); significa ter consciência de que “a nossa felicidade não depende daquilo que não temos, mas do bom uso que fazemos daquilo que temos” (provérbio chinês).
“Quando todos ficaram satisfeitos, Jesus disse aos discípulos: ‘Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!’ Recolheram os pedaços e encheram doze cestos com as sobras dos cinco pães, deixadas pelos que haviam comido” (Jo 6,12-13). Já falamos acima sobre o problema do desperdício de alimento. Mas aqui podemos pensar em outros tipos de desperdício: quanto desperdício de tempo e de oportunidade em nossas casas de alimentarmos nossos relacionamentos! Quanto desperdício de investimento pastoral em estruturas e serviços paroquiais ultrapassados que não ajudam mais as pessoas do nosso tempo a se encontrarem com a fé! Precisamos valorizar “os pedaços que sobram”, as pequenas atitudes, os gestos aparentemente insignificantes, e não ficar esperando por oportunidades grandiosas para só então evangelizar.
“Vendo o sinal que Jesus tinha realizado, aqueles homens exclamavam: ‘Este é verdadeiramente o Profeta, aquele que deve vir ao mundo’. Mas, quando notou que estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo, sozinho, para o monte” (Jo 6,14-15). Assim como aqueles homens, nós sempre somos tentados a transformar Jesus num deus milagreiro que solucione nossos problemas sem que tenhamos que lutar e nos esforçar para superá-los. No entanto, Jesus se recusa a assumir esse papel de solucionador mágico dos nossos problemas. Quando procuramos transferir para ele nossas responsabilidades, ele desaparece, vai embora, e nos deixa falando sozinhos.
Ao final dessa reflexão, é importante voltarmos a considerar a figura do menino com os cinco pães e os dois peixes. Por que será que era um menino, e não um adulto, que tinha nas mãos o início da solução? Se fosse um adulto, talvez escondesse seu próprio alimento e se recusasse a partilhá-lo com os outros... Talvez seja esse o nosso problema: nós deixamos de ser meninos e nos tornamos adultos, pessoas movidas pelo individualismo, pelo egoísmo, pelo medo de partilhar... Consideremos, por fim, essas palavras: “Não podemos permanecer indiferentes a tantas pessoas que, dentro das nossas comunidades cristãs, buscam um alimento mais sólido que o que recebe. Não temos que aceitar como normal a desorientação religiosa dentro da Igreja... Não poucos cristãos buscam ser melhor alimentados” (Pagola). O que o Pe. Pagola diz a respeito da atividade pastoral da Igreja pode ser aplicado também ao nosso relacionamento familiar...  

Oração: Senhor, Tu me envias a falar de Ti como de um lar aberto no qual esperas todos os Teus filhos para a mesa posta, para um banquete que Tu mesmo preparas. Contudo, muitos rejeitam tal convite. Procuro explicar que o Teu sonho é trazer para a Tua mesa todos os Teus filhos e filhas, para que reencontrem a fraternidade perdida, para a comunhão que foi prejudicada por separações sem sentido, como o puro e o impuro, o santo e o pecador.
Teu Filho se assentou para comer com os pecadores e excluídos, provocando um escândalo ao nos dizer: “Meu Pai é assim! Meu Pai é festa, banquete, mesa partilhada!” Teu amor e Teu perdão são como um pão oferecido gratuitamente. O Senhor prometeu cuidar das nossas necessidades e provê-las a cada dia, mas nós continuamos a desconfiar disso e a nos encher de preocupação e ansiedade pelo que comer e beber, pelo que vestir e consumir.
Teu Filho transformou cinco pães e dois peixes em alimento que saciou uma multidão de cinco mil homens, e ainda sobraram doze cestos cheios... Ao tomar os pães e os peixes em suas mãos, Ele elevou os olhos ao céu, para orientar o nosso olhar para Ti, de quem tudo recebemos. A seguir, pronunciou a bênção, para devolver aquele alimento à sua verdadeira natureza, que é o de circular, dividir-se, gerar vida, convivialidade. A carência foi vencida pela generosidade e pela gratuidade. Mas nós, diante de tal situação, dizíamos: ‘Não temos’, ‘isto é pouco’, ‘despede-os’, ‘que vão eles próprios comprar’. Diante de qualquer imprevisto, olhamos para nós mesmos, medimos nossas próprias forças e nos angustiamos, ao invés de olharmos para Ti, Deus nosso Pai, que és a fonte inesgotável de todo dom. (Oração composta a partir de Ir. Dolores Aleixandre, no livro Revela-me teu nome – imagens bíblicas para falar de Deus, Paulinas).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 20 de julho de 2018

SEJA FLEXÍVEL EM CONVERTER SEU MURO EM PONTE SEMPRE QUE ISSO FOR NECESSÁRIO

Missa do 16º. dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 23,1-6; Efésios 2,13-18; Marcos 6,30-34.

            No mundo em que vivemos existem muros e pontes: os muros separam e distanciam, as pontes unem e aproximam. Nós podemos ser construtores tanto de muros quanto de pontes; nossas atitudes tanto podem nos separar e nos distanciar dos outros, como também podem nos unir e nos aproximar das pessoas. Com toda certeza, tanto os muros quanto as pontes têm sua importância: em relação àquilo que nos faz mal, nos adoece e ameaça nos destruir é preciso levantar muros. Porém, precisamos evitar a tendência a nos isolar sempre mais dos outros com a desculpa de que estamos decepcionados com o ser humano, pois são as pontes, não os muros, que nos humanizam, nos devolvem alegria e sentido, nos permitem crescer e amadurecer como seres humanos.
            O apóstolo Paulo compara a cruz de Cristo a uma ponte que foi estendida para devolver a comunhão entre o céu e a terra e também para devolver a comunhão entre as pessoas, independente das suas diferenças econômicas, sexuais, religiosas e culturais. A ponte que Cristo estendeu à humanidade a partir da sua cruz derrubou o muro da inimizade que separava pessoas entre si e a humanidade de Deus, de tal modo que essa ponte/cruz realizou a paz: “Ele veio anunciar a paz a vós que estáveis longe, e a paz aos que estavam próximos. É graças a ele que uns e outros, em um só Espírito, temos acesso junto ao Pai” (Ef 2,17-18).  
            O sacrifício redentor de Cristo tem o poder de alcançar todas as pessoas: as que estão longe e as que estão perto. Na mentalidade judaica de Paulo, “as que estão longe” eram os pagãos e “as que estão perto” eram os judeus. Hoje precisamos ampliar essa compreensão e jamais pensar que “os que estão perto” são os que estão dentro da Igreja e “os que estão longe” são os que estão “no mundo”, como se costuma dizer. Como Santo Agostinho certa vez afirmou, existem pessoas que estão dentro da Igreja, mas vivem como se estivessem fora (vivem como pagãos), e existem pessoas que estão fora da Igreja, mas vivem como se estivessem dentro (vivem como autênticos cristãos). Essa verdade é um excelente remédio para curar a presunção de nos acharmos melhores do que os outros.
            Ainda uma palavra a respeito da distinção entre “os de perto” e “os de longe”: nós, que nos julgamos estar perto de Deus porque dentro da Igreja, temos uma responsabilidade, já lembrada pelo Evangelho de domingo passado: assim como o lugar do médico é junto da pessoa doente e o lugar do advogado é junto da pessoa que precisa ser defendida de uma injustiça, assim o nosso lugar como cristãos é junto de toda pessoa que precisa ser alcançada pela paz do Evangelho. Portanto, estar perto de Deus não é um privilégio, mas uma responsabilidade, e a nossa fé jamais pode ser vivida como um muro que nos separa do mundo, mas como uma ponte que nos torna próximos de quem se sente longe de Deus, da Igreja, não alcançado pela salvação.
De uma certa forma, o Evangelho que hoje ouvimos também nos fala de muros e de pontes. Assim que os discípulos retornam da missão (Evangelho de domingo passado), Jesus lhes faz um convite: “Vinde sozinhos para um lugar deserto, e descansai um pouco” (Mc 6,31). Com essa atitude, Jesus quis erguer um muro de proteção para os discípulos, um muro necessário para evitar o esgotamento deles. Todas as pessoas que cuidam dos outros precisam também cuidar de si mesmas. Pais esgotados e sobrecarregados não conseguem cuidar bem dos filhos, nem do próprio relacionamento conjugal. A sobrecarga e o esgotamento nos adoecem física, emocional e espiritualmente. Essa atitude de Jesus de conduzir os discípulos para um lugar deserto, a fim de que pudessem descansar um pouco, nos lembra as sábias palavras do Pe. Henri Nouwen: “Temos de moldar nosso deserto onde possamos nos retirar todos os dias, livrar-nos de nossas compulsões e habitar na bondosa presença salutar de nosso Senhor. Sem esse deserto, perdemos nossa alma enquanto pregamos o Evangelho aos outros. Portanto, a primeira coisa que precisamos fazer é reservar tempo e lugar para estar com Deus e só com ele” (Do livro A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo).
Ainda em relação a esse “lugar deserto”, necessário para o descanso, é preciso evitar a atitude hipócrita dos pastores “braço curto”, cujo coração do seu ministério presbiteral não é a necessidade das ovelhas, mas o seu próprio bem estar, como denuncia o Senhor por meio do profeta Jeremias: “Ai dos pastores que deixam perder-se e dispersar-se o rebanho de minha pastagem, diz o Senhor! (...) Vós dispersastes o meu rebanho, e o afugentastes e não cuidastes dele; eis que irei verificar isso entre vós e castigar a malícia de vossas ações, diz o Senhor” (Jr 23,1-2). Enquanto existem pastores sobrecarregados e esgotados, que diariamente dão a vida por suas ovelhas, existem aqueles que se ausentam da paróquia diversas vezes ao longo do ano, em viagens programadas para “descansar”. Por serem “pastores de si mesmos”, fazem isso sem nenhum sentimento de culpa, sem nenhum peso de consciência, não se importando com o fato de que suas ovelhas se dispersem e se tornem pessoas afugentadas, cada vez mais distantes da Igreja que deveria cuidar delas. Esses pastores só acordarão para a vida quando as ovelhas que ainda estão no seu rebanho deixarem de ser ingênuas e pararem de sustentá-los financeiramente em seu estilo “bon vivant”. 
Retornando para a imagem do muro de proteção que Jesus quis construir para os discípulos cansados da missão, acontece algo surpreendente no Evangelho: o muro precisou se converter novamente em ponte! “Muitos os viram partir e reconheceram que eram eles. Saindo de todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles. Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6,33-34). Embora tenhamos uma necessidade legítima de descanso, embora seja importante evitar situações de esgotamento, embora não seja prudente nos deixar devorar pela necessidade das pessoas, a compaixão de Jesus está nos dizendo algo importante: o improviso também faz parte da missão. A dor das pessoas que a vida colocou sob os nossos cuidados nem sempre vai esperar termos tempo, estarmos descansados e bem humorados. Se queremos ser fiéis à nossa missão de pastores, de autênticos cuidadores, precisamos nos tornar pessoas flexíveis, capazes de mudar nossos planos sempre que isso for necessário para cuidar de quem precisa urgentemente ser cuidado. Não nos esqueçamos: a necessidade do rebanho tem prioridade em relação ao bem estar do pastor. Que o Espírito Santo nos dê a flexibilidade necessária para convertermos nossos muros em pontes, como fez Jesus.
             
           Oração: Senhor, ensina-me a derrubar os muros que me distanciam das pessoas e a construir pontes que me aproximam delas. Muito obrigado pelo Senhor ser o Deus tanto daqueles que estão perto quanto daqueles que estão longe! Peço que a Tua misericórdia se estenda sobre toda a humanidade e alcance especialmente aqueles que se sentem longe de Ti. Hoje eu assumo, diante da Tua palavra, o compromisso de ser uma ponte que faça com que as pessoas que convivem comigo voltem a se sentir próximas de Ti.
            O Senhor sabe que todos nós vivemos num mundo cheio de cobranças, cobranças que nos esgotam e nos adoecem. Concede-nos sabedoria e liberdade interior para não nos deixarmos devorar por essas cobranças. Ensina-nos a cuidar daquilo que realmente é essencial e não nos perder em preocupações desnecessárias. Que a nossa oração de cada dia nos conduza para aquele lugar deserto dentro de nós onde podemos nos colocar na Tua presença e sermos curados, corrigidos, orientados e fortalecidos.
            Enfim, Senhor, concede-nos um coração flexível, que não seja rígido e não fique preso nos nossos próprios interesses, um coração capaz de sair de seus próprios esquemas sempre que alguém precisar do nosso cuidado, da nossa atenção, do nosso socorro. Concede-nos um coração semelhante ao de Teu Filho Jesus, um coração que encontre o necessário equilíbrio entre cuidar de si mesmo e cuidar daqueles que a vida coloca sob os nossos cuidados. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 12 de julho de 2018

O LUGAR DE TODO MÉDICO É JUNTO DA PESSOA ENFERMA

Missa do 15º. dom. comum. Palavra de Deus: Amós 7,12-15; Efésios 1,3-14; Marcos 6,7-13.

            Nós estamos intimidados diante do mundo: intimidados diante da violência e do mal das drogas, intimidados diante das injustiças e dos sofrimentos humanos, intimidados diante do poder econômico e da corrupção, intimidados diante de tantas doenças e de tanta dor, intimidados diante dos conflitos que vivenciamos no seio da família ou no ambiente de trabalho. Todavia nós, cristãos, jamais deveríamos aceitar ser intimidados pelas dificuldades e pelos problemas da vida, pois a Escritura afirma: “Deus não nos deu um espírito de medo, mas de força” (2Tm 1,7). Todo cristão é uma pessoa ungida pela força do Alto, pelo Espírito de Deus, chamado a viver à altura dessa unção, consciente de que o Espírito que o anima e sustenta jamais vai levá-lo a intimidar-se diante da realidade que a cerca.
            Por nunca ter se intimidado diante da realidade, Jesus continua a chamar cada um de nós, discípulos seus, e nos enviar para junto de todas as pessoas que necessitam ser alcançadas pela força transformadora do Evangelho. Assim como o lugar do médico é junto da pessoa doente e o lugar do advogado é junto da pessoa que precisa de defesa, assim o nosso lugar como cristãos é junto de toda pessoa que precisa ser ajudada, defendida, resgatada, curada e salva. Assim como Deus enviou Isaías, Jeremias, Ezequiel, Amós e os demais profetas para salvar seu povo da destruição, assim hoje Ele envia cada um de nós como discípulos de seu Filho, enviado pelo Pai com a missão de procurar e salvar todo aquele que está correndo o risco de se perder (cf. Lc 19,10).
            Cada um de nós é chamado a tomar consciência de que é um “enviado”. Jesus nos envia para o seio da família, da escola, do local de trabalho, para o seio da sociedade, com a missão de nos colocar junto de toda pessoa que precisa receber a palavra da verdade, o Evangelho que nos salva (cf. Ef 1,13). Neste sentido, precisamos superar o medo de nos colocar diante do outro, diante do diferente; o medo de não saber o que fazer diante da dor, da injustiça ou do sofrimento que atinge o outro. Quando sentimos esse medo, precisamos nos lembrar de que Jesus, ao nos enviar, sempre nos reveste do poder do Espírito Santo, para afastarmos o espírito do mal da vida das pessoas.
            Toda pessoa enviada nunca é enviada em seu próprio nome, mas em nome de alguém: Jesus foi enviado pelo Pai e nós somos enviados por Jesus. Não estamos ali em nosso próprio nome ou por nossa própria vontade, mas obedecendo a um envio, a uma missão que nos foi confiada: “Vai profetizar para Israel, meu povo” (Am 7,15). Assim como fez com Amós, o Pai nos convida a sair de nossas seguranças para colocar os pés no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes e protegidos para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis e desprotegidos. Deus nos envia para entrarmos em contato com a realidade das pessoas e nos deixarmos afetar pelo drama da vida delas. Quando nos mantemos distantes da realidade das pessoas, acabamos colaborando para que elas sintam Deus distante e indiferente à dor pela qual estão passando. Um cristianismo intimidado ou acomodado acaba alimentando o ateísmo no mundo, isto é, a sensação de que Deus não existe ou, se existe, não se importa com o ser humano. 
            Jesus nunca se acomodou. Ele não permaneceu num único lugar, nem se fechou em uma casa, mas sempre se colocou a caminho; sempre fez questão de estar junto das pessoas que sofriam. É assim que Ele nos quer como seus discípulos: em movimento, desacomodados, não intimidados pelo mundo. Ao recomendar que não levemos “nada para o caminho, a não ser um cajado; nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura” (Mc 6,8), Jesus nos quer livres e disponíveis, não preocupados com o nosso próprio bem-estar, mas preocupados em sermos testemunhas do essencial, pessoas que não se apoiam nos recursos financeiros e na tecnologia para evangelizar, mas que confiam na força própria do Evangelho que, quanto mais anunciado a partir da simplicidade e da autenticidade do evangelizador, mais transforma a vida daqueles que o recebem.
            Eis uma segunda recomendação de Jesus: “Quando entrardes numa casa, ficai ali até vossa partida” (Mc 6,10). Não devemos ser superficiais com as pessoas; precisamos “ficar” com elas, nos deixar afetar pelo que elas estão vivendo, e não simplesmente “passar” por elas. Por fim, Jesus faz uma última recomendação: “Se em algum lugar não vos receberem, nem quiserem vos escutar, quando sairdes, sacudi a poeira dos pés” (Mc 6,11). Sempre que nos dispomos a sair do conhecido e enfrentar o desconhecido, corremos o risco de experimentar a rejeição ou mesmo a agressão. O mal e a injustiça que tanto ferem a humanidade jamais vão nos receber de braços abertos; pelo contrário, vão combater contra nós, na esperança de nos fazer desistir. É aí que entra o conselho de Jesus: devemos sacudir a poeira dos pés, no sentido de não nos deixar contaminar pelo desânimo e pelo pessimismo só porque não fomos acolhidos em nossa tentativa de ajudar determinada pessoa. Ainda que nossas intenções sejam as melhores, precisamos contar com o fato de que nem todos os doentes querem ser curados de suas doenças, assim como nem todos os prisioneiros querem ser libertos de suas prisões...
            “Então os doze partiram e pregaram que todos se convertessem. Expulsavam muitos demônios e curavam numerosos doentes, ungindo-os com óleo” (Mc 6,12-13). Todos nós precisamos de conversão, porque os nossos valores estão invertidos: o supérfluo tomou o lugar do essencial e o essencial passou a ser tratado como supérfluo por nós. Essa inversão de valores tem adoecido nossos relacionamentos e, consequentemente, nossas famílias, nossos locais de trabalho, nossa sociedade. Nós nos tornamos uma humanidade mentalmente adoecida, exposta aos ataques de “demônios” como a depressão, o pânico, a esquizofrenia, a angústia, a ansiedade etc. No entanto, Jesus nos deu poder sobre esses demônios; precisamos confiar nisso. Jesus nos ungiu com o Espírito Santo; precisamos levar essa unção para todos aqueles que dela precisam. Não nos omitamos diante da missão que nos foi confiada. Lembremos mais uma vez: o lugar do médico é junto daquele que está doente. O nosso lugar como cristãos é junto de toda pessoa que não está sendo alcançada pela “pastoral de manutenção” da nossa Igreja.        
“Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo... Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo” (Papa Francisco, Evangelii Gaudium 49).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 5 de julho de 2018

A ABSOLUTA NECESSIDADE DA PALAVRA PROFÉTICA

Missa do 14º. dom. comum. Palavra de Deus: Ezequiel 2,2-5; 2Coríntios 12,7-10; Marcos 6,1-6.   

            Houve um tempo em que nossa Igreja era reconhecida como uma Igreja profética, uma Igreja portadora de vozes proféticas como Dom Helder Câmara, Dom Aloysio Lorscheider, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom Paulo Evaristo Arns, entre outros. Essa Igreja profética parece ter dado lugar hoje a uma Igreja um tanto tímida e insegura diante da realidade sócio-político-econômico-religiosa em que vivemos. Mas essa ausência de profetismo não se faz sentir somente em nossa Igreja. Ela parece ser a marca do nosso tempo, um tempo em que os grandes sonhos e as grandes esperanças de transformação social deram lugar à mera luta pela sobrevivência e à busca individual de bem estar.
            Seja como for, os textos bíblicos da liturgia de hoje nos falam da importância do profeta na Igreja e na sociedade. O profeta é uma pessoa suscitada por Deus, uma pessoa impulsionada pelo Espírito Santo a se colocar no meio de uma situação de apatia, de dor e de ausência de esperança, para começar a despertar a consciência adormecida de um povo que se acostumou a viver sem desejo de mudança e sem perspectiva de futuro: “Filho do homem, eu te envio aos israelitas, nação de rebeldes, que se afastaram de mim... A estes filhos de cabeça dura e coração de pedra, vou-te enviar... Quer te escutem, quer não... ficarão sabendo que houve entre eles um profeta” (Ez 2,3-5).
            Quando olhamos nossa vida a partir da vocação profética, nos damos conta de que o lugar em que nos encontramos não é acidental, mas providencial: Deus nos colocou ali para sermos uma presença profética, para reconduzir a Ele pessoas que se afastaram do bem, da verdade e da justiça. E assim como fez com Ezequiel, Deus quer que estejamos conscientes de que a nossa missão profética sempre será uma missão ingrata, marcada mais pela rejeição do que pela aceitação da nossa mensagem. No entanto, precisamos seguir firmes nessa missão, colaborando para manter viva em nós mesmos a palavra da profecia.
            Mas, o que é a palavra da profecia? É uma palavra que, na maioria das vezes, nos coloca em crise, nos questiona, nos desinstala e nos provoca uma séria revisão de vida. Enquanto a maioria das pessoas procura por uma palavra que as mantenham ou as coloquem de volta na sua zona de conforto, a palavra profética visa nos tirar da zona de conforto e nos responsabilizar pela cura ou pela transformação que gostaríamos que acontecesse conosco – quem sabe, de forma mágica, sem grandes sacrifícios da nossa parte. Enquanto muitas pessoas hoje abandonam a verdade e se rodeiam de falsos profetas que falam somente o que elas gostam de ouvir, a palavra profética nos coloca diante da verdade, a verdade que não gostamos de ouvir, mas que precisamos ouvir se queremos ser libertos e salvos.
            O Evangelho que acabamos de ouvir deixa claro que todos nós, de maneira consciente ou inconsciente, rejeitamos a palavra profética. Sem dúvida que a nossa primeira reação diante dela é a da admiração. No entanto, a admiração por si só não provoca mudança, conversão, cura e salvação em ninguém. Depois de terem sido impactados pela palavra profética de Jesus, os nazarenos passaram a questioná-lo. Nós conhecemos muito bem esse questionamento. Quando alguém nos diz uma verdade que não estamos a fim de ouvir, normalmente procuramos desautorizar a pessoa com perguntas do tipo: “Quem você pensa que é pra me dizer isso? O que você sabe a respeito da minha vida pra me falar isso? Quem a Igreja pensa que é pra me dizer como eu devo educar meu filho, lidar com a minha sexualidade ou conduzir a minha vida financeira? A Igreja tem que cuidar do espiritual, e não ficar opinando a respeito de política e de economia!”
            É preciso dizer novamente: não há uma pessoa que não se sinta incomodada com a verdade da palavra profética. Por isso, ao invés de voltarmos a nossa agressividade para o profeta – seja ele um médico, um psicólogo, um padre, um pastor, um amigo, a Igreja – o melhor que temos a fazer é nos questionar: “Por que o que ele disse me incomodou tanto?” Se incomodou, é porque, certamente, tem um fundo de verdade. O Evangelho deixa claro que rejeitar a verdade da palavra profética significa perder a oportunidade de mudar, de crescer, de se libertar; significa jogar fora a cura, o milagre, a transformação que tanto estávamos desejando, esperando: “E (Jesus) ali não pôde fazer milagre algum” (Mc 6,5).
“E admirou-se com a falta de fé deles...” (Mc 6,6). É mesmo de admirar como a nossa geração se melindra e se sente ofendida quando escuta a verdade. É mesmo de admirar como facilmente ‘deletamos’ dos nossos contatos toda pessoa que fala aquilo que não queremos ouvir. É mesmo de admirar como a nossa fé é feita de caprichos e resiste a mudanças e questionamentos. É mesmo de admirar como não falamos a verdade para as pessoas porque não queremos magoá-las e, consequentemente, correr o risco de perder o afeto delas. É mesmo de admirar como nossa palavra não tem credibilidade, porque nós somos os primeiros a não sustentá-la diante de uma crítica ou de uma rejeição ao que dissemos. Enfim, é mesmo de admirar que para nós seja mais importante ter a aprovação das pessoas do que a aprovação de Deus, o Deus da verdade, cuja Palavra é a única fonte de salvação.
            Ao concluir esta reflexão, é importante nos dar conta de que todo verdadeiro profeta é uma pessoa visada pelo mal, alguém que luta contra o mal e sente a ação do mal em si mesmo. Por quê? Porque Deus escolheu para a missão profética não anjos, mas pessoas humanas, expostas ao mesmo mal que atinge a humanidade. Como Paulo acabou de testemunhar, Deus escolheu revelar a Sua força através da fraqueza do profeta (cf. 2Cor 12,9). Além disso, Paulo entendeu que Deus escolheu não anular as fraquezas humanas do profeta porque Ele sabe que, pior do que as fraquezas e ambiguidades humanas, aquilo que mais faz mal ao profeta é o risco da presunção, o risco da arrogância, da autossuficiência, do achar-se pronto (cf. 2Cor 12,7).

Oração: Senhor Deus, envia-me a Tua palavra profética para me corrigir dos meus erros, para me levantar das minhas quedas, para me iluminar o caminho em vista da minha cura e da minha libertação. Dá-me ouvidos de discípulo e língua de profeta, sobretudo para que eu possa levar uma palavra de conforto à pessoa abatida. Senhor Jesus, ensina-me a ser uma presença profética onde quer que eu me encontre. Que a Tua verdade sempre oriente a minha consciência e cada uma das minhas atitudes, e que eu não me deixe abater diante da rejeição dos homens, mas me mantenha fiel à verdade do Evangelho. Divino Espírito Santo, sustenta-me na minha missão profética. Livra-me do orgulho e da presunção. Concede-me a graça da Tua força quando experimento a verdade da minha fraqueza. Apesar das minhas limitações humanas, que a minha presença junto às pessoas seja cada vez mais marcada pela coerência e pela obediência à Palavra da verdade. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi