Missa
do 9º. dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 5,12-15; 2Coríntios 4,6-11;
Marcos 2,23 – 3,1-6.
“A lei existe para ser
cumprida” – você já deve ter ouvido essa frase alguma vez. A sociedade
humana se organiza a partir de leis. Não só; as religiões e as igrejas também têm
suas leis. Até mesmo a Sagrada Escritura está repleta de leis, sobretudo no
Antigo Testamento. Mas a atitude de Jesus no Evangelho de hoje nos traz uma
importante pergunta: Em que circunstância uma lei deve ser obedecida e em que
circunstância ela deve ser questionada?
Ao
colocar um homem doente no centro da sinagoga de Cafarnaum, Jesus está nos
dizendo que, tanto no centro da sociedade humana como no centro da religião,
quem deve estar ali não é a lei, mas o ser humano, sobretudo aquele
prejudicado, injustiçado ou não contemplado pelas leis. Portanto, toda lei – seja
ela civil, seja ela religiosa – deve ser respeitada enquanto protege e favorece
a vida, e deve igualmente ser questionada quando prejudica ou se coloca contra
a vida e a dignidade do ser humano.
O pano de fundo da cura desse homem
na sinagoga é o problema do sábado. Como ouvimos no texto do Deuteronômio, o
sábado é um dia sagrado e deve ser “guardado”, “santificado”, por dois motivos:
1º. Em consideração ao descanso de Deus (cf. Ex 20,11); 2º. Em consideração à
liberdade do ser humano, que não deve se tornar escravo de nada, nem de ninguém
(cf. Dt 5,15). Desde que nosso Senhor Jesus ressuscitou no primeiro dia da
semana, o sentido religioso do sábado passou para o domingo, mudança testemunhada
pela própria Sagrada Escritura (cf. Lc 24,1.13; Jo 20,19.26; At 20,7; 1Cor
16,2; Ap 1,10 – para maior aprofundamento, leia https://pt.aleteia.org/2017/01/20/por-que-a-igreja-guarda-o-domingo-e-nao-o-sabado/).
Aqui cabe nos perguntar se o domingo
ainda tem um sentido cristão para nós, ou se ele tem sido vivido num sentido
pagão. Como as pessoas vivem o final de semana? Elas descansam física e
emocionalmente ou o vivem escravas do dinheiro e do consumismo? Elas têm o
cuidado de “santificar” o dia do Senhor, alimentando sua espiritualidade e sua
comunhão com Deus? Quantos de nós vivemos o final de semana como escravos do
dinheiro e do consumismo, descuidando das coisas essenciais, como a saúde
física e emocional, a vida espiritual, a presença e a convivência em família? Além
disso, se o apóstolo Paulo se refere a nós, cristãos, como “vasos de barro”
(cf. 2Cor 4,7), é importante lembrar que o domingo é o momento privilegiado e
oportuno para que cada um de nós, vaso de barro, se coloque nas mãos de Deus, o
Oleiro, para que Ele restaure esse vaso e continue a depositar dentro dele o
tesouro da Sua graça...
Voltemos ao Evangelho. Diante da
frieza dos homens religiosos do seu tempo em estarem mais preocupados com a lei
do que com a necessidade de salvação do ser humano, Jesus “olhou ao seu redor,
cheio de ira e tristeza, porque eram duros de oração” (Mc 3,5). Hoje esse olhar
de Jesus, cheio de ira e tristeza, se dirige para o Congresso e para o Senado,
em Brasília, onde a maioria dos nossos políticos cria leis em benefício de si
mesmos, dos seus interesses financeiros, assim como cria leis para que se
mantenham fora do alcance da lei (Justiça). Esse mesmo olhar de Jesus, cheio de
ira e tristeza, se dirige igualmente para o Supremo Tribunal Federal, onde parte
daqueles juízes trabalha a favor da manutenção da injustiça, virando as costas
para todos os brasileiros cuja vida está prejudicada por uma política e uma
economia centrada nos interesses do Mercado e não nas necessidades do ser
humano.
Mas, com certeza, o olhar de Jesus,
cheio de ira e tristeza, se dirige também a toda Igreja e religião que “mantém
a verdade prisioneira da injustiça” (Rm 1,18), que se preocupa com a
observância da lei, ao mesmo tempo em que se mantém distante do drama real da
vida das pessoas, cuja maioria vive “fora” das leis religiosas, muitas vezes
porque esta mesma Igreja ou religião não se faz próxima das periferias
existenciais onde vivem tais pessoas. Aqui são extremamente oportunas as
palavras do Pe. Pagola: “Não é suficiente defender a disciplina da Igreja, se
esta disciplina não ajuda, de fato, a viver com alegria e generosidade o
Evangelho. Não é suficiente defender a ordem e a segurança do Estado, se este
Estado não oferece, de fato, segurança alguma para os mais fracos. No nosso
meio existem pessoas necessitadas. Continuamos a defender a ordem, a segurança
e a disciplina ou nos preocupamos em ‘salvar’ realmente as pessoas? Se nos
calamos, deveríamos sentir sobre nós o olhar duro de Jesus”.
Para curar aquele homem com a mão
atrofiada, Jesus lhe disse: “‘Estende a mão’. Ele a estendeu e a mão ficou
curada” (Mc 3,5). Hoje Jesus diz a cada um de nós, cuja mão, cujos olhos e cuja
boca talvez estejam atrofiados por causa do egoísmo, do individualismo ou da
acomodação: “Estende a mão! Estende o teu olhar para além da lei, para que você
possa enxergar as pessoas que à sua volta precisam ser salvas. Estende a tua
voz para questionar toda lei civil ou religiosa que está a serviço da injustiça
e não a serviço da verdade. Estende a compreensão que você tem da vida, para
acolher aquilo que a realidade está pedindo de você. Reconhece aquilo que está
atrofiado em você por comodismo, por ignorância ou por medo. Enfim, não reduza
o seu relacionamento com Deus a uma observância fria e mecânica de leis
religiosas, mas permita com que Ele faça de você uma presença de misericórdia
diante de todo ser humano necessitado de que alguém lhe faça o bem,
independente do dia da semana”.
Ao encerrarmos esta reflexão,
lembremos de que, enquanto algumas pessoas vivem sua fé na estreiteza míope de
leis que ignoram o drama da vida humana, existem muitas outras pessoas que, em
nome da “ditadura” da felicidade pessoal, rejeitam toda e qualquer lei; rejeitam,
inclusive, a distinção entre certo e errado, justo e injusto, porque a única
“lei” que vale para elas é a “lei” do seu bem estar, a “lei” da sua felicidade
pessoal, “lei” que todos os demais devem não apenas respeitar, mas à qual devem
se sujeitar.
Oração: Senhor Jesus, hoje eu entrego a
Ti o meu vaso de barro. Tu és o meu Oleiro; restaura-me, Senhor! Ajuda-me a
acolher o barro que eu sou; ajuda-me a reconhecer e a acolher a minha
fragilidade. Sobretudo, torna-me consciente do tesouro que eu carrego em mim, o
tesouro da fé, da esperança e da caridade, o tesouro do Evangelho, o tesouro da
solidariedade para com todo ser humano que necessita do bem que eu posso fazer
não apenas sábado ou domingo, mas sempre. Liberta-me de uma vivência religiosa
reduzida ao cumprimento mecânico de leis, devoções e tradições. Que no centro
da minha vida esteja a verdade do Teu Evangelho, e que em nome dessa verdade eu
tenha um posicionamento crítico e livre diante de toda lei, seja ela civil,
seja ela religiosa. Que no centro da minha vida de fé não esteja a pergunta:
‘Que lei devo observar hoje?’, mas ‘A quem eu sou chamado a fazer o bem hoje?’.
Amém.
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