Missa
do 1º. domingo da quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 2,7-9; 3,1-7; Romanos
5,12-19; Mateus 4,1-11.
Conta a História que, na época em
que os colonizadores chegaram ao Brasil, os índios que aqui habitavam ficaram
fascinados com algo que nunca tinham visto: espelhos. Então, alguns
colonizadores convenciam os índios a trocar suas riquezas, como ouro e outros
objetos com os quais costumavam se enfeitar, pelos espelhos dos colonizadores. Alguns
séculos mais tarde, o grupo Legião Urbana fez uma crítica a esta realidade na
música “Índios”, ao cantar: “Nos deram espelhos, e vimos um mundo doente”.
A Sagrada Escritura descreve para nós o homem
e a mulher colocados num Jardim – o planeta Terra –, tendo a liberdade de comer
de todos os frutos da terra, respeitando, porém, o limite de não comer da
árvore do conhecimento do bem e do mal (cf. Gn 2,16-17). De repente, surge a
tentação da ambição, a tentação de anular os limites estabelecidos por Deus, a
tentação de não precisar consultar Deus para saber o que é o bem e o que é o
mal, mas de decidir por si mesmo o que é o bem e o que é o mal; pior ainda – e
é o nosso caso hoje – a tentação de inverter os valores, chamando o bem de mal
e o mal de bem (cf. Is 5,20).
A tentação deu ao homem e à mulher o
espelho da ambição, o espelho que os fez achar que “o que é demais nunca é o
bastante” (Legião Urbana, Teatro dos
Vampiros). Desse modo, o ser humano deixou de cuidar do Jardim e de
respeitar os limites da natureza, para se apropriar dele segundo a sua ganância.
E o Jardim foi aos poucos sendo devastado, transformando-se naquilo que
conhecemos hoje: uma Terra onde a cultura de diversos alimentos, necessários e
suficientes para a vida dos seres humanos, deu lugar à monocultura de poucos
alimentos e de bens que visam o enriquecimento de poucos, causando,
consequentemente, o empobrecimento de muitos. “Nos deram espelhos, e vimos um
mundo doente”. Olhando a vida através do espelho da ganância, nós passamos a
ver como normal a injustiça que fere e que mata não só o Jardim, mas as pessoas
que dele precisam para viver com dignidade.
O apóstolo Paulo nos tornou
conscientes de que todos nós pecamos (cf. Rm 5,12); todos nós achamos normal decidir
por nós mesmos o que é bem e o que é mal, segundo os nossos interesses; todos
nós nos habituamos a olhar a realidade através do espelho do individualismo e
da indiferença para com as necessidades do meio ambiente e das pessoas
empobrecidas. Além disso, quem de nós hoje não fica maravilhado com os espelhos
de última geração que a tecnologia pode nos vender (celulares, especialmente)? Estes
espelhos nos encantam de tal forma que ficamos anestesiados, viciados e até
mesmo alienados diante da realidade que nos cerca. Eles influenciam muito mais a
compreensão de mundo das novas gerações do que a família, a escola ou a
religião.
Jesus, como qualquer outro ser
humano, também se viu diante da proposta de olhar a realidade da sua vida e da
sua missão através do espelho do tentador. “Ele mesmo foi provado em tudo como
nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15). Enquanto o homem e a mulher escolheram
desobedecer a Deus, Jesus escolheu obedecer, e a sua obediência se tornou
caminho de salvação para todos nós (cf. Hb 5,9). Hoje Ele nos ensina a
importância de dialogar com as tentações que surgem dentro de nós.
Toda
tentação chega a nós disfarçada de um bem aparente; ela nos promete o bem, mas
produz em nós o mal. Daí a importância do discernimento: “‘Posso fazer tudo o
que quero’, mas nem tudo me convém” (1Cor 6,12). Sou livre, mas não vou permitir
que a minha liberdade me torne escravo de alguma coisa. Se os espelhos que me
deram – mídia e novas tecnologias – estão me fazendo ver o mundo de maneira
doentia, eu preciso ter um olhar crítico para estes espelhos e procurar enxergar
a realidade à luz de Deus.
Assim
como o Espírito de Deus conduziu Jesus para o deserto, Ele também nos conduz ao
deserto quaresmal, para que ali Deus possa falar ao nosso coração (cf. Os
2,16). Ao mesmo tempo, é numa experiência de deserto que nos damos conta de que
o maligno também fala conosco, nos propondo falsas soluções para os nossos
problemas, falsas consolações para a desolação que porventura estejamos
passando. Assim como Jesus, precisamos nos aproximar da Palavra de Deus, para
que ela nos dê condições de separar o trigo do joio, a voz de Deus da voz do
maligno, e usarmos a nossa liberdade para escolher a vida e não a morte,
escolher obedecer a Deus e não às nossas tentações.
Como
vimos na liturgia da quarta-feira de cinzas, a Quaresma é o “momento favorável”
para a nossa cura, a nossa conversão, a nossa purificação, a nossa restauração.
No horizonte da nossa vida espiritual está a Páscoa, a passagem da morte para a
vida, passagem que desejamos fazer e que o próprio Deus quer que façamos. Mas
tal passagem não depende só da graça de Deus; ela depende também da nossa
colaboração humana, da firme decisão da nossa liberdade em obedecer à voz de
Deus em nossa consciência. Façamos como Jesus: obedeçamos
à voz de Deus em nossa consciência; resistamos ao mal e ele fugirá de nós; aproximemo-nos
de Deus e Ele se aproximará de nós (cf. Tg 4,7-8).
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