terça-feira, 29 de setembro de 2015

VOCÊ PRESTA?


Me desculpe a pergunta acima. O que a despertou em mim foi um vídeo que recebi pelo whatsapp, uma entrevista com o filósofo brasileiro Mário Sérgio Cortella, onde ele analisa a atitude de um atleta espanhol, o qual estava em segundo lugar numa corrida (em 2012). Aquele que estava em primeiro se enganou com relação à linha de chegada e diminuiu a marcha antes da hora. O que estava em segundo percebeu o engano dele e o avisou de que deveria continuar correndo, o que acabou acontecendo e ele, então, ganhou a competição. Quando o repórter questionou o segundo colocado sobre o porquê ele não “aproveitou” a distração do que estava em primeiro para ultrapassá-lo, ele disse que, além de a vitória não ser justa, ele não saberia como “explicar” essa atitude “esperta” à sua mãe.    
Cortella explicou, então, que a figura da mãe representa a vergonha. “Se a pessoa que te trouxe ao mundo ficar com vergonha de ter te parido, é porque você não presta. Não presta pra quê? Pra conviver, pra estar junto, pra ser gestor público ou privado, pra ser professor, pra ser marido ou esposa, pra ser amigo ou amiga”, explicou o filósofo.
Vivemos tempos difíceis, onde muitos não sentem mais vergonha. Não sentem vergonha de mentir, roubar, trapacear; não sentem vergonha de se enriquecerem de maneira ilegal, de corromperem e serem corrompidos; não sentem vergonha em trair, adulterar, ser infiel; não sentem vergonha em serem uma pessoa dentro da igreja e outra fora; não sentem vergonha em não sustentarem hoje o que disseram ontem; não sentem vergonha em serem parasitas, vivendo sempre à custa dos outros etc.   
Talvez você pergunte: mas, o que é “vergonha”? Na entrevista, Cortella lembra uma frase de um outro filósofo, chamado Immanuel Kant: “Tudo o que não puder contar como fez, não faça!”. Esse é um princípio que vale para toda e qualquer pessoa, em toda e qualquer situação, em toda e qualquer área da vida. Se eu sentir vergonha em contar para alguém como eu fiz aquilo, significa que aquilo não é moralmente bom, nem justo.
Estamos ouvindo cada vez mais pessoas dizendo: “Os outros que se danem!”. Cada vez mais pessoas estão deixando de lado a vergonha, a honestidade e a fidelidade porque querem tirar proveito de alguma situação. Cada vez mais nós estamos convivendo com gente que não presta: não presta pra ser mãe, nem pai; não presta pra ser político, nem funcionário público; não presta pra ser médico, nem pedreiro, nem lixeiro; não presta para ser padre, nem pastor, nem cristão...
Mas, não nos enganemos. Ainda existe gente que presta. Ainda existe gente que sente vergonha. Quem sabe você seja uma dessas pessoas. Quem sabe você ainda não tenha perdido de tudo a vergonha. Quem sabe você tenha decidido não jogar a sua honestidade no lixo com a desculpa de que ninguém mais é honesto hoje em dia. Quem sabe você tenha decidido continuar a ser justo, mesmo que ao seu lado ninguém mais se preocupe em sê-lo. Se você ainda é capaz de sentir vergonha significa que você ainda presta. Preserve isso. Preserve sua vergonha. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O ESPÍRITO DA PROFECIA

Missa do 26º. Dom. comum. Palavra de Deus: Números 11,25-29; Tiago 5,1-6; Marcos 9,38-43.45.47-48.

            No último domingo de setembro, mês da Bíblia, celebramos o dia da Bíblia. Para entendermos a importância da Palavra de Deus em nossa vida, poderíamos lembrar aqui quando Deus mandou o profeta Ezequiel anunciar a Palavra aos exilados na Babilônia, os quais diziam: “Os nossos ossos estão secos, a nossa esperança está desfeita. Para nós está tudo acabado” (Ez 37,11). Então Deus disse a Ezequiel: “Profetiza a respeito desses ossos secos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor... Eis que vou fazer com que sejais penetrados pelo espírito e vivereis” (Ez 37,4-5).  
            Este dia da Bíblia precisa despertar em nós a consciência a respeito da força da Palavra de Deus em nossa vida e da importância do Espírito da profecia em nosso tempo. A Palavra é espírito e vida: só ela pode fazer com que sejamos penetrados pelo Espírito de Deus e tenhamos uma postura ativa diante das dificuldades. Além disso, a Palavra deve ser profetizada, isto é, anunciada, proclamada, principalmente diante de situações onde as pessoas dizem: “a nossa esperança está desfeita; para nós está tudo acabado”.     
            A Palavra é profecia: ela nos ajuda a ver além das circunstâncias, a enxergar aquilo que Deus quer para nós e para a humanidade. Ela denuncia a ilusão da riqueza (“Vossa riqueza está apodrecendo... Vosso ouro e vossa prata estão enferrujados...” Tg 5,3), desmascara a injustiça (“O salário... que deixastes de pagar está gritando...” Tg 5,4) e revela a consequência dela para a vida de quem a pratica (“Vós vivestes luxuosamente... cevando os vossos corações para a matança” Tg 5,5).
           Todos nós somos chamados a profetizar/proclamar/pronunciar a Palavra de Deus (“Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta” Nm 11,29), não esquecendo de que o Autor da profecia é o Espírito, pois é Ele quem sonda os corações. Isso significa que, antes de a Palavra passar por nós e chegar às outras pessoas, ela precisa penetrar em nós, dando retidão às intenções do nosso coração (cf. Hb 4,12). Além disso, devemos ter a humildade de reconhecer que o Espírito é livre (“O Espírito sopra onde quer...” Jo 3,8): Ele suscita a Palavra em quem Ele quer, até mesmo em pessoas que não são da nossa Igreja, como acabaram de nos mostrar a primeira leitura e o Evangelho. É o Espírito que se apropria de nós; nós nunca nos apropriamos d’Ele. É o Espírito quem nos diz a quem devemos levar a Palavra; nunca somos nós a dizer ao Espírito quem é que deve receber a Palavra.
            A profecia sempre “escandaliza”, porque desmascara as falsas boas intenções e denuncia as injustiças, até mesmo daqueles que se sentem muito “tranquilos” diante da Palavra. Da mesma forma, a liberdade do Espírito também escandaliza (cf. Nm 11,27-28; Mc 9,38). No entanto, Jesus acabou de deixar claro que o verdadeiro escândalo é a tentativa sempre frequente de “domesticar” o Espírito e de “alisar” as “asperezas” da Palavra, para que ela não venha a provocar alguma crise em nossa consciência. O verdadeiro escândalo é deixar de profetizar para não ser perseguido, para não perder “privilégios”, inclusive dentro das igrejas, ou para não ser privado dos mesmos.
            “Profetiza a respeito desses ossos secos...” (Ez 37,4). Crie o hábito diário de ler a Bíblia. Peça a Deus uma Palavra sobre os ossos secos do seu relacionamento, da sua vida profissional, da sua vida de fé... Profetize o Espírito sobre as famílias com as quais você tem contato, sobre aqueles com os quais você trabalha/estuda/convive diariamente. Profetize o Espírito sobre as estruturas sociais injustas, frutos da corrupção disseminada em nosso país. Permita que o Espírito sonde as profundezas da sua consciência e revele o quê você precisa cortar/modificar nas suas atitudes para não condenar-se ao “inferno”, isto é, a uma vida onde você tenha de admitir que os seus ossos estão secos, que a sua esperança está desfeita, e que, para você, tudo está definitivamente acabado...

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O PRIMEIRO EM QUE?

Missa do 25º. dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 2,12.17-20; Tiago 3,16 – 4,3; Marcos 9,30-37.

Quem de nós não se emocionou com a foto de Aylam Kurdi, um menino sírio de três anos, cujo corpo encontrado na praia se tornou símbolo da crise imigratória no mundo? Quem de nós não sentiu o desejo de fazer com ele o que Jesus acabou de fazer diante dos discípulos: pegar uma criança, colocá-la no meio deles e abraçá-la?  
            Abraçar uma criança pode não ser difícil para nós, mas o problema é o que a criança significava na cultura em que Jesus vivia. Ela não era nada. Era ignorada, desprezada, não levada em conta. Você abraçaria alguém que, aos olhos do mundo atual, nada vale? Até que ponto nós também já não nos acostumamos a ignorar, desprezar e não levar em conta tantas pessoas que cruzam o nosso caminho, se é que as enxergamos?
O que levou Jesus a colocar no meio dos discípulos uma pessoa “insignificante” aos olhos da sociedade do seu tempo e abraçá-la? Tudo começou com uma rejeição: os discípulos não quiseram se tornar conscientes do sofrimento pelo qual Jesus iria ter que passar (v.31). Além de não quererem entender o que Jesus disse e de ficarem com medo de perguntar – justamente por medo de se tornarem conscientes de tal sofrimento –, os discípulos mudaram de assunto e passaram a conversar sobre algo que realmente os preocupava e que importava para eles: ‘Quem de nós é o maior, o mais importante, o primeiro?’
Quem é o ‘maior’ na sua empresa ou na sua sala? Quem é o ‘maior’ na classe do seu filho? Quem é ‘maior’ na cidade? Quem é o ‘maior’ em nossa Paróquia ou Diocese? Bom, mas por que essa preocupação com “quem é o maior”? Deixemos que o apóstolo Tiago responda: “Onde há inveja e rivalidade, aí estão as desordens... De onde vêm as guerras? De onde vêm as brigas entre vós? Não vêm, justamente, das paixões que estão em conflito dentro de vós?” (3,16; 4,1).
A preocupação em querer ser o maior é fruto de algo muito mal resolvido dentro de nós e que se chama ‘sentimento de inferioridade’. Quanto mais eu me sinto inferior – e se eu me sinto inferior é porque estou me comparando com os outros, os quais eu considero ‘superiores’ a mim – mais eu preciso compensar esse sentimento buscando formas de me sentir superior. Dessa forma, nós nos afastamos da nossa criança interior – da simplicidade, da bondade e da espontaneidade – e passamos a viver atormentados por uma única preocupação: eu preciso me destacar; se não for pela inteligência, que seja pela esperteza; se não for pelo corpo, que seja pelo modelo do carro; se não for pelo trabalho, que seja pelo dinheiro etc.
O resultado disso é uma sociedade doente, um ambiente de trabalho doente, uma Igreja doente, porque nós estamos doentes. Existe cura para essa doença chamada ‘mania de grandeza’? Se você quiser se livrar dessa preocupação inútil em querer ser o maior, faça uma visita ao Hospital do Câncer de Barretos, sobretudo na ala infantil. Quando você vir a quantidade de crianças com câncer e os diversos tipos de câncer que existem, se dará conta do quanto é inútil a maioria das suas preocupações e do quanto você tem muito mais do que precisa pra viver e ser feliz.
Nós, padres, também precisamos desse ‘choque terapêutico’, nós que vivemos atormentados em sermos os maiores: Quem atrai mais multidões? Quem tem mais “amigos” ou “seguidores” no Face? Quem tem o Dízimo mais alto da Diocese? Quem faz a melhor homilia? Quem brilha mais aos olhos do bispo? (E a preocupação inconfessável em muitos: Quem será o próximo a “sair” como bispo?) Nós também somos doentes, assim como também somos em boa parte responsáveis pelas “desordens” em nossa Igreja. Nós sabemos muito bem o quanto de inveja e rivalidade existem entre nós.
Ao abraçar uma pessoa “insignificante” para a sociedade de seu tempo, Jesus deixou claro que o mais importante aos olhos de Deus – e que deve ser visto como o mais importante para o nosso cuidado pastoral – é o mais fraco, o mais rejeitado, o mais exposto à violência ou à dor no mundo atual. O abraço de Jesus nesta criança nos lembra uma pergunta: “Você já abraçou seu filho hoje?” Poderíamos desdobrá-la em outras perguntas: Você já abraçou a sua criança interior hoje? Você já abraçou a sua fraqueza, a sua ferida, o seu sentimento de inferioridade hoje? Você já abraçou um ‘estranho’ hoje, aquele para quem ninguém liga?
Dois pequenos lembretes: 1) O descaso com os “pequenos” da sociedade se volta contra nós em forma de violência. 2) Muito bom que seu filho seja o “primeiro” da classe. Mas ele também é o “primeiro” a ser justo, a se preocupar com o próximo, a ser honesto, a não mentir, a cuidar do meio ambiente, a ajudar os que estão à sua volta? 

Pe. Paulo Cezar Mazzi


sexta-feira, 11 de setembro de 2015

POR QUE NÃO COM VOCÊ?

Missa do 24º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 50,5-9a.; Tiago 2,14-18; Marcos 8,27-35.

Para nos convencer a comprar algo, a publicidade busca agradar ao máximo o nosso ego, usando frases do tipo: “Isto foi criado/construído/fabricado/projetado para o seu conforto, para a sua segurança, para o seu bem estar, para facilitar a sua vida...”. Justamente porque a vida moderna se tornou por demais complicada, nós sempre escolhemos aquilo que promete facilitar a nossa vida: o caminho mais curto, o acesso mais rápido, a solução mais imediata. Afinal de contas, nós não temos tempo para esperar, para suportar, para sofrer.
Para tomarmos consciência do quanto isso influencia a nossa fé e a nossa compreensão de Deus e da vida, Jesus nos coloca uma pergunta: “Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,27). Aqui podemos encontrar diversas respostas: ‘Jesus é uma ilusão – promete, mas não realiza’; ‘Jesus é uma fuga da realidade’;  ‘Jesus é um fracassado (morreu numa cruz)’; ‘Jesus é uma caixa de lápis de cor: ele exclui da nossa vida o cinza e o preto’; ‘Jesus é um empreendedor bem sucedido que tem receitas infalíveis de sucesso para a vida profissional/financeira’; ‘Jesus é o remédio para livrar você de todas as dores (físicas, emocionais e espirituais)’ etc.
As “imagens” de Jesus são inúmeras. No entanto, ainda que sejamos influenciados por essas imagens alheias, sempre chega o momento em que a pergunta se dirige exclusivamente para cada um de nós: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mc 8,29). Em outras palavras, Jesus está lhe perguntando: ‘O que você espera de mim quando me procura na oração, na Palavra (Evangelho) ou na Eucaristia?’ ‘Como você entende a minha presença na sua vida como Messias, Libertador e Salvador?’.  
Pedro deu a sua resposta pessoal: “Tu és o Messias” (Mc 8,29), isto é o “Esperado” desde Abraão, o “Libertador” de Israel, o “Ungido” de Deus, o “Salvador” do mundo. Todas essas respostas são perfeitamente corretas a respeito de Jesus. O problema é que Jesus esclarece que tipo de “Messias” ele é: “(...) o Filho do homem devia sofrer muito, ser rejeitado... ser morto e ressuscitar depois de três dias” (Mc 8,31). E o mais interessante é esse detalhe: “Ele dizia isso abertamente” (Mc 8,32a), ou seja: ‘Tome consciência de que a vida comporta essas coisas’; ‘Tome consciência de que você não é o centro do mundo’; ‘Tome consciência de que ninguém pode ter tudo, nem mesmo você’; ‘Tome consciência de que a cruz é maior para quem quer viver de acordo com a vontade de meu Pai’.
Mas, quem de nós quer viver conscientemente a vida? Quem de nós quer colocar as suas fantasias em diálogo com a realidade, com a sua realidade de pessoa humana? É por isso que Pedro reage: “Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo” (Mc 8,32b). Podemos imaginar o que Pedro disse a Jesus: ‘Deve haver um jeito de evitar o sofrimento!’; ou então ‘Você não merece passar por isso!’. Então, o evangelista Marcos sublinha que Jesus, olhando para os discípulos, olhando para mim e para você, que hoje supostamente somos discípulos de Jesus, repreendeu a Pedro: “Vai para longe de mim, satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens” (Mc 8,34).
Da mesma forma como satanás propôs a Jesus evitar o caminho da dor e buscar uma vida de glória na terra (cf. Mt 4,1-11), Pedro pensa a mesma coisa, assim como pensa a maioria de nós hoje em dia. Nós buscamos o bem estar próprio, o prazer, o benefício, o lucro. Enquanto isso, Deus busca o bem do outro, o direito, a justiça, aquilo que contribui para a paz, mesmo que isso custe algum tipo de renúncia e sacrifício da nossa parte. Dizendo de outra maneira, diante do sofrimento nós costumamos reclamar e perguntar: “Por que comigo?” E então, para decepção nossa, Deus responde sem meios termos: “Por que não com você?”
O Evangelho de hoje se conclui com uma palavra de Jesus dirigida a qualquer pessoa que aceite o desafio de se tornar discípula dele: ‘Ser cristão é o caminho mais difícil; não é para quem faz corpo mole, para quem se melindra, para quem quer que o seu ego seja massageado o tempo todo. Ser cristão é isso: renunciar a si mesmo (ao seu egoísmo), tomar a sua cruz e me seguir – viver como eu vivi, se comportar como eu me comportei, lidar com o sofrimento como eu tive que lidar. Quanto mais você quiser evitar dificuldades, lutas e desafios, menos você viverá a sua vida em plenitude. Quanto mais você abraçar a vida com tudo o que ela tem de alegria e tristeza, de conquista e de perda, de vitória e de derrota, mais você terá vivido a sua em plenitude.
Está dado o recado. Que cada um faça a sua escolha e tome a sua decisão. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

VOLTAR A OUVIR, A FALAR E A SE EXPRESSAR

Missa do 23º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 35,4-7; Tiago 2,1-5; Marcos 7,31-37.

         O que vem primeiro: o ouvir ou o falar? A criança só aprende a falar se consegue ouvir. Se ela nasce surda, consequentemente se torna muda. O nosso falar depende do nosso ouvir. Mas também pode acontecer que fechemos os nossos ouvidos e tomemos a decisão de não mais ouvir: não mais ouvir Deus, ou as pessoas da nossa casa; não mais ouvir o pedido de ajuda de quem está à nossa volta, ou as nossas próprias emoções. Também pode acontecer que, mesmo ouvindo, nós tomemos a decisão de não mais falar: nos calamos na oração e no louvor porque estamos com raiva de Deus; nos calamos porque estamos com raiva da pessoa que nos machucou; nos calamos diante das injustiças ou porque nos tornamos individualistas, ou porque não acreditamos que um outro mundo seja possível...
         O encontro de Jesus com esse homem surdo e que falava com muita dificuldade nos coloca algumas perguntas: O quê ou quem você ainda ouve? O quê ou quem você decidiu não mais ouvir? Com quem você tem conversado cada vez menos? Quantas palavras estão engasgadas na sua garganta? Quantas coisas você gostaria de “gritar” ou de dizer a Deus ou a uma determinada pessoa? Por quê não o faz? Por medo de ser “castigado” por Deus? Por medo de perder o afeto da pessoa?  
Falar é necessário. Falar liberta; faz a água que está represada dentro de nós voltar a fluir novamente. Falar é necessário porque a outra pessoa não tem como adivinhar o quê você está sentindo. Mas ouvir também é importante. Vencer o medo de ouvir é tão necessário quanto vencer o medo de falar. Quando ouvimos a palavra que o outro nos dirige, podemos passar a ver as coisas de uma outra forma, podemos enxergar coisas que não estávamos enxergando antes, seja a nosso respeito, seja a respeito do relacionamento, seja a respeito da outra pessoa, seja a respeito de Deus e da realidade à nossa volta.  
Para curar aquele homem surdo, Jesus afastou-se com ele para fora da multidão. Quem quer começar a ouvir, precisa fazer silêncio. A Palavra que cura, salva e liberta só pode ser ouvida no silêncio. Para ouvir a voz de Deus em sua consciência, você precisa se afastar para fora da multidão do barulho dos seus pensamentos, das suas preocupações e dos seus desejos. Você precisa também ouvir suas emoções. Quanto mais se recusa a ouvi-las, mais elas vão “gritar” com você, e esse grito vai se tornar sempre mais “agressivo”, até que ele seja ouvido.  
 Depois de tocar nos ouvidos e na língua daquele homem, Jesus, olhando para o céu, suspirou e lhe disse: “Efatá!” (Abre-te!). Abre-te! O que se fechou em você? Seus olhos decidiram não ver mais, para não se sentir questionado pela necessidade do outro? Seus ouvidos decidiram não mais ouvir os da sua casa? Você tem se tornado uma pessoa muda, sem vontade ou sem coragem de falar com o outro? O corpo fala, os gestos falam. Eu sei interpretar o que o outro está me dizendo com seu silêncio ou com suas atitudes? Estou fechado para os outros, para os que sofrem? Talvez eu tenha meus olhos, meus ouvidos e minha boca abertos, mas o meu coração fechado... Além disso, preciso questionar se as minhas palavras, quando dirigidas aos outros, abrem ou fecham o coração deles...
“O Senhor abre os olhos aos cegos, o Senhor faz erguer-se o caído” (Sl 146,8). Estamos no mês da Bíblia, e precisamos nos lembrar de que Deus escolheu se manifestar a nós como Palavra. Nossos ouvidos estão abertos para ouvir Deus? Nosso coração está disposto a obedecê-Lo? A cena mais comum nas ruas e nas academias é ver pessoas com seus ouvidos “tapados” por fones. No entanto, a Escritura afirma que “a fé só pode ser despertada na pessoa que ouve a palavra de Cristo” (citação livre de Rm 10,17). Como “educar” as pessoas hoje, especialmente as crianças, os adolescentes e jovens, para a escuta de Deus? Além disso, a Palavra de Deus existe não só para ser ouvida, mas também anunciada. O que você e eu temos feito concretamente para que ela chegue aos ouvidos e ao coração de outras pessoas?

Pe. Paulo Cezar Mazzi