quinta-feira, 25 de julho de 2024

COMO EU ALIMENTO AS RELAÇÕES QUE SÃO IMPORTANTES PARA MIM?

 Missa do 17º dom. comum. Palavra de Deus: 2Reis 4,42-44; Efésios 5,1-6; João 6,1-15

 

            Qual é a missão da Igreja: cuidar do corpo ou cuidar da alma das pessoas? Eis uma pergunta equivocada. Jesus veio salvar o ser humano nas suas três dimensões, segundo a mentalidade bíblica: corpo (físico), alma (psíquico) e espírito. Quando a Igreja levanta a sua voz para denunciar uma política e uma economia que produzem desigualdade social, fome, violência e morte, está sendo fiel a Jesus, que, “levantando os olhos, e vendo que uma grande multidão estava vindo ao seu encontro, Jesus disse a Filipe: ‘Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?’” (Jo 6,5). Jesus não ignorou a fome daquela multidão e nós também não devemos ignorar a fome, a miséria, a violência e tudo aquilo que atenta contra a vida das pessoas à nossa volta.

A fome no mundo não é um problema de falta de alimento, mas de concentração de renda, a qual produz desigualdade social. A fome de muitos é consequência direta da ganância de poucos, como afirmou Gandhi: “A Terra tem o suficiente para as necessidades de todos, mas não para a ganância de alguns”. Por isso, a solução do problema da fome passa pela partilha, como fizeram o profeta Eliseu e Jesus. Quando Eliseu mandou distribuir 20 pães de cevada para cem pessoas e foi questionado – “Como vou distribuir tão pouco para cem pessoas?” (2Rs 4,43) – respondeu: “Dá ao povo para que coma; pois assim diz o Senhor: ‘Comerão e ainda sobrará’” (2Rs 4,43). Diferente de Eliseu, nós temos uma mentalidade individualista, que nos leva a acumular, achando que aquilo garantirá a nossa sobrevivência.

            Hoje Jesus nos faz a mesma pergunta que fez a Filipe: “Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?” (Jo 6,5), uma pergunta que se desdobra em muitas outras: Por que seu relacionamento está definhando? O que você coloca da sua parte para alimentá-lo? Você identifica a sua fome de sentido de vida, que vai muito além do seu estômago? Você compreende que a sua relação conjugal não se alimenta somente de sexo, mas também de afeto, de diálogo e de companheirismo? Você tem consciência de que “cada vez mais as pessoas têm como viver (materialmente), mas elas não têm uma razão para viver” (Victor Frankl)? Você identifica o grito de fome das pessoas que necessitam do alimento da sua presença junto a elas?

            Andando pelo meio da multidão faminta, André descobriu um menino que tinha em sua bolsa cinco pães e dois peixes: “Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes. Mas o que é isso para tanta gente?” (Jo 6,9). “Pães de cevada” – eles estavam presentes na narrativa de Elias e reaparecem agora no Evangelho. Só os pobres comem pão de cevada. Portanto, esse menino era pobre. E nós dizemos que, se tivéssemos muito dinheiro, acabaríamos com a fome que há no mundo. Puro engano. Há coisas em nossa vida que o dinheiro não pode comprar, nem alimentar, nem resolver.

“Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez o mesmo com os peixes” (Jo 6,11). Os mesmos olhos de Jesus, que se levantaram para enxergar a multidão faminta (v.5), foram os olhos que se elevaram ao Pai para agradecer pelos cinco pães e pelos dois peixes: “Todos os olhos, ó Senhor, em vós esperam e vós lhes dais no tempo certo o alimento; vós abris a vossa mão prodigamente e saciais todo ser vivo com fartura” (Sl 145,15-16). Nós temos o hábito de agradecer a Deus pelo alimento que temos em nossa mesa? Depois de ter saciado aquela imensa multidão, Jesus orientou os discípulos: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!” (Jo 6,12). Eis aqui outra causa da fome no mundo: o desperdício de alimento. “Mais de 1 bilhão de refeições vão parar no lixo diariamente no mundo; número é maior que o de pessoas que passam fome” (G1). Outra forma de entender o desperdício: quanto tempo desperdiçado diante do celular, dos jogos eletrônicos ou da TV? Quantas ocasiões desperdiçadas que poderiam diminuir distâncias e favorecer o reencontro?

Após ter sido saciada pela partilha que Jesus realizou, a multidão quis proclamá-lo rei. “Mas, quando notou que estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo, sozinho, para o monte” (Jo 6,15). Sempre que quisermos transferir para Jesus responsabilidades que são nossas, ele vai se retirar e nos deixar falando sozinhos. Ele pode transformar toda e qualquer situação da nossa vida, desde que estejamos dispostos a fazer a nossa parte, a colocar em comum nossos cinco pães e nossos dois peixes. Todo e qualquer milagre exige a nossa participação, a nossa fé, a nossa disposição de mudar de atitude e o nosso esforço em colocar algo da nossa parte para alimentar aquilo que não queremos que morra.

Enfim, não nos esqueçamos do apelo do apóstolo Paulo: “Aplicai-vos a guardar a unidade do espírito pelo vínculo da paz” (Ef 4,3). Ao invés de alimentarmos brigas e discussões, alimentemos diálogo, respeito, perdão, aproximação e reconciliação, na família, no ambiente de trabalho, em nossas comunidades paroquiais, nas escolas/faculdades, na vida do dia a dia.

 

Naquele tempo, na China, um discípulo perguntou ao mestre: - "Mestre, qual a diferença entre o Céu e o inferno?" E o mestre respondeu: - "É muito pequena, mas com grandes consequências." E o mestre explicou: - "Vi um grande monte de arroz, cozido e preparado como alimento. Ao redor dele, havia muitos homens, quase morrendo de fome. Eles não podiam se aproximar do monte de arroz, mas possuíam longos palitos de 2 a 3 metros de comprimento. No entanto, embora conseguissem apanhar o arroz, não conseguiam levá-lo até à boca porque os palitos, em suas mãos, eram longos demais. Assim, famintos e moribundos, embora juntos, permaneciam SOLITÁRIOS, curtindo uma fome eterna, diante de uma fartura inesgotável. Meu amigo: isto é o inferno."

E o mestre prosseguiu: - "Vi outro grande monte de arroz, cozido e preparado como alimento. Ao redor dele, havia, também, muitos homens e mulheres famintos, mas cheios de vitalidade. Eles, também, não podiam se aproximar do monte de arroz, pois possuíam longos palitos de 2 a 3 metros de comprimento. Eles, também, encontravam as mesmas dificuldades para levar à própria boca o arroz, já que os palitos eram longos demais. Porém, eis a grande novidade: com seus longos palitos, em vez de levarem à própria boca, eles serviam o arroz uns aos outros. Dessa forma, numa grande comunhão fraterna, juntos e SOLIDÁRIOS, matavam sua fome. Meu amigo: isso é o Céu."

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 18 de julho de 2024

CUIDAR DE SI PARA PODER CUIDAR DO OUTRO

 Missa do 16º dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 23,1-6; Efésios 2,13-18; Marcos 6,30-34.

 

            Ovelhas e pastores: essas duas imagens marcam a liturgia de hoje. Enquanto “ovelha” é toda pessoa que necessita de cuidado, “pastor” é toda pessoa que exerce a função de cuidadora. Cada um de nós é ao mesmo tempo ovelha e pastor, ou seja, uma pessoa que necessita de cuidados e também uma pessoa chamada a cuidar de algo ou de alguém.

            Na Sagrada Escritura, Deus é o Pastor por excelência, o cuidador do seu povo: “O Senhor é o pastor que me conduz; não me falta coisa alguma” (Sl 23,1). Para cuidar, Deus escolhe pastores humanos – líderes políticos e religiosos –, a fim de garantir que seu povo tenha vida digna. No entanto, a função de liderar carrega consigo a tentação de usar o poder em benefício próprio: “Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos!” (Ez 34,2). “Ai dos pastores que deixam perder-se e dispersar-se o rebanho de minha pastagem, diz o Senhor” (Jr 23,1). Há uma relação direta entre o cuidador que se fecha em si mesmo, priorizando os seus interesses, e as ovelhas que ficam à mercê dos lobos do nosso tempo.

            Um exemplo concreto de ovelhas perdidas e dispersas em nosso país são as favelas das grandes cidades. A ausência do poder político abriu espaço para o domínio dos traficantes nas favelas. Ao mesmo tempo em que eles são cuidadores e protetores das favelas, cobram para “cuidar” desse imenso rebanho. Como esse “cuidado” dá muito dinheiro, surgiu um novo grupo de “cuidadores” – a milícia –, que vive em guerra com os traficantes para ocupar o lugar deles e lucrar em cima do rebanho (favelados). Paralelo a isso, temos muitos pastores evangélicos que fazem o que podem para cuidar das ovelhas expostas à constante violência nas favelas, ao mesmo tempo em que surge uma nova modalidade de líderes religiosos evangélicos: o narcopentecostalismo – traficantes evangélicos pentecostais que perseguem comunidades católicas e religiões de cunho afro, como a Umbanda.  

            Todo cuidador é pastor. Os pais são os primeiros cuidadores. Se a maior parte das famílias brasileiras é chefiada pela mãe, devido à separação ou à omissão do pai, precisamos nos perguntar: “Quem cuida da cuidadora?”. Além disso, temos muitos filhos que são criados pelos avós – sobretudo pela avó –, seja porque mãe e pai trabalham fora, seja porque um dos dois ou ambos vivem na rua, consumidos pelas drogas. Que tipo de amparo os avós recebem para cuidar dos seus netos, “órfãos” de pai e mãe?

            O salmo de hoje nos traz um detalhe importante sobre a forma como o pastor cuida das ovelhas: “Mesmo que eu passe pelo vale tenebroso, nenhum mal eu temerei; estais comigo com bastão e com cajado; eles me dão a segurança!” (Sl 23,4). Bastão e cajado: o primeiro serve para proteger as ovelhas de um animal selvagem; o segundo, para guiá-las e, quando preciso, resgatá-las. Mas o bastão tem ainda outra função importante: ele serve para bater na ovelha que teima em se afastar do pastor e expõe-se a perigos. O cuidado do pastor é tão sério que, para salvar a ovelha, ele às vezes precisa bater forte com o bastão na sua pata e quebrá-la, para que ela aprenda a ficar perto dele.

            Em grande parte das famílias, o cajado está sempre presente, mas o bastão nunca. Por desejarem ser amados por seus filhos, os pais não usam o bastão quando necessário – não dizem “não”, e, se dizem, não o sustentam; evitam que o filho sofra frustração, despreparando-o assim para enfrentar a vida. Quando usam o bastão, não é para corrigir o filho que erra, mas para atacar quem tenta educar o filho, principalmente a escola. Desse modo, enquanto nas escolas públicas você tem inúmeras ovelhas perdidas por falta de alguém que efetivamente as eduque em casa, nas escolas particulares você tem uma geração “intocável”, cujos professores e a própria direção são impedidos de educá-la porque, se tentarem fazê-lo, perderão o “cliente”.

Diante do abandono do seu povo por parte das lideranças políticas e religiosas da época de Jeremias, Deus fez uma promessa: “Eu reunirei o resto de minhas ovelhas... Suscitarei para elas novos pastores que as apascentem; não sofrerão mais o medo e a angústia, nenhuma delas se perderá, diz o Senhor” (Jr 23,3.4). Essa promessa se cumpriu em Jesus, o Pastor segundo o coração de Deus. Enquanto os maus pastores abandonavam o rebanho para priorizarem seus interesses pessoais, Jesus e seus discípulos passavam o dia cuidando do povo, de modo que não tinham tempo nem para comer! (v.31).  

            O primeiro cuidado que Jesus tem é com seus próprios discípulos: “Vinde sozinhos para um lugar deserto, e descansai um pouco” (Mc 6,31). Nenhum cuidador é uma fonte inesgotável de cuidado. Quem cuida dos outros precisa também cuidar de si. Todo cuidador precisa ter o seu lugar de deserto, onde descansar. Toda mãe, todo pai, todo avô ou avó precisa ter seu espaço, precisa de tempo para si mesmo(a): alimentação, descanso, exercício físico, oração, diversão. Filhos e netos não podem consumir a saúde física e psíquica de quem cuida deles.  

            Quando Jesus vai com seus discípulos para um lugar à parte, a fim de descansar um pouco, as multidões correm a pé e chegam lá antes deles! “Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6,34). Jesus é o verdadeiro cuidador, cuja prioridade não é seu próprio bem-estar, mas o de suas ovelhas. Mesmo necessitando de descanso, ele consegue deixar em suspenso por um pouco sua necessidade, para cuidar daqueles que estão precisando de sua Palavra. Não nos esqueçamos de que essa capacidade de Jesus de esquecer-se de si para doar-se aos outros vinha da sua vida de oração: descansando no Pai, ele encontrava forças para cuidar das ovelhas que o procuravam diariamente.

            Coloquemo-nos sob os cuidados do nosso Pastor, Jesus Cristo. Permitamos que o seu bastão nos corrija e que o seu cajado nos resgate. Entreguemos a ele os muros de separação que nós mesmos erguemos – a inimizade –, pois “Ele, de fato, é a nossa paz: do que era dividido, ele fez uma unidade. Em sua carne ele destruiu o muro de separação: a inimizade” (Ef 2,14). Trabalhemos com Jesus para derrubar muros e construir pontes, para trazer para perto aqueles que temos mantido distantes de nós, pois Jesus “veio anunciar a paz a vós que estáveis longe, e a paz aos que estavam próximos. É graças a ele que uns e outros, em um só Espírito, temos acesso junto ao Pai” (Ef 2,17-18).

 

             Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 12 de julho de 2024

A MISSÃO DE CADA UM DE NÓS: LEVAR UMA PALAVRA DE CONFORTO À PESSOA ABATIDA

 Missa do 15º dom. comum. Palavra de Deus: Amós 7,12-15; Efésios 1,3-14; Marcos 6,7-13.

 

A palavra-chave da nossa liturgia deste final de semana é “ENVIADO”. Para compreendê-la, podemos recordar as palavras de Jesus aos seus discípulos, na noite do domingo de Páscoa: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20,20). Esse envio se deu, num primeiro momento, no coração de Deus: “Em Cristo, ele nos escolheu, antes da fundação do mundo” (Ef 1,4). Nossa existência foi um desejo de Deus. Ele nos enviou ao mundo para uma tarefa, uma missão. Como gosta de afirmar o Papa Francisco, a nossa existência contém uma palavra única que Deus deseja dirigir à humanidade.

No Antigo Testamento, o sinônimo de enviado é “PROFETA”. Ele é a voz de Deus que deve ecoar na consciência dos homens. Ninguém se torna “profeta” ou “enviado” por iniciativa própria, mas de Deus. Além disso, a missão do profeta é anunciar uma palavra que não é sua, mas de Deus. Aqui podemos nos perguntar: nós aceitamos ouvir os profetas de Deus do nosso tempo, mesmo quando a mensagem que proclamam vai contra a corrente e exige de nós conversão?  

O diálogo que o profeta Amós tem com o sacerdote Amasias revela o custo em ser profeta: ele deve ser a consciência crítica não só da política, mas também da religião. Convocado e enviado por Deus, Amós denuncia um culto vazio e estéril, refém de interesses políticos e aliado da injustiça, um culto que não liberta nem salva. Todo cristão chamado a ser profeta não deve se calar diante das injustiças, sejam elas praticadas ou toleradas tanto pela política quanto pela religião. 

Enquanto a primeira leitura nos fala do envio de Amós, o Evangelho nos fala da do envio dos discípulos de Jesus. Até agora eles estavam ouvindo e aprendendo de Jesus, mas chegou o momento de serem ENVIADOS em missão. Neste sentido, cada um de nós é chamado a ser também discípulo e missionário: “O Senhor Deus me deu língua de discípulo para que soubesse trazer ao cansado uma palavra de conforto” (Is 50,4). Na celebração eucarística escutamos a Palavra de Deus como discípulos. Ao voltarmos para a nossa vida cotidiana, somos enviados para a missão de levar uma palavra de conforto à pessoa abatida.

Ao enviar os Doze, Jesus “recomendou-lhes que não levassem nada para o caminho, a não ser um cajado; nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura” (Mc 6,8). O cajado, na época, servia de apoio para caminhar e também para defender-se de animais selvagens. Em outras palavras, ao nos enviar em missão, Jesus quer que estejamos totalmente livres e não amarrados a bens materiais; caso contrário, a preocupação com os bens materiais pode nos roubar a liberdade e a disponibilidade para a missão. Jesus nos quer livres de interesses humanos, não presos a ninguém, nem nos apoiando em garantias humanas que supostamente garantam o sucesso da missão. Desprovidos de nós mesmos, inclusive das nossas próprias capacidades, devemos realizar a missão que nos foi confiada apoiando-nos unicamente na graça de Deus.

Um detalhe não pode ser esquecido. Antes de Jesus enviar os Doze em missão, quis que eles vissem o seu “fracasso” em Nazaré (evangelho de domingo passado – Mc 6,1-6). Portanto, os discípulos de ontem (os Doze) e de hoje (nós) devem estar preparados para a rejeição, o fechamento e a indiferença das pessoas em relação ao anúncio do Evangelho. Não é porque trabalhamos para Deus que as portas do mundo se abrirão gentilmente para nós; muito pelo contrário. Da mesma forma como a palavra de Amós incomodou a política e a religião do seu tempo, e da mesma forma como a palavra de Jesus incomodou os nazarenos, a nossa missão de sermos um Evangelho vivo para as pessoas enfrentará rejeição por parte de muitos.

Eis porque Jesus dá aos Doze a seguinte recomendação: “Se em algum lugar não vos receberem, nem quiserem vos escutar, quando sairdes, sacudi a poeira dos pés, como testemunho contra eles!” (Mc 6,11). Não devemos carregar conosco a poeira da rejeição daqueles que se fecharam à Palavra de Deus. Esse tipo de fechamento não deve nos contaminar, nos intimidar e nos convencer de que “não adianta” evangelizar o mundo no qual estamos. Sacudir a poeira dos pés significa, portanto, deixar que a atitude de fechamento fique somente com aqueles que, um dia, serão julgados pela Palavra que rejeitaram.

Uma última palavra: “Não há nada no mundo que habilite uma pessoa a superar dificuldades externas e limitações internas, como a consciência de ter uma tarefa na vida” (Victor Frankl). Quando tomamos consciência de que “somos uma missão nesta terra; por isso estamos neste mundo” (Papa Francisco, EG 273), encontramos força para transcender as adversidades momentâneas e sermos fiéis à tarefa que a vida nos confiou. Conta-se que, após Hitler ser derrotado, todos os judeus foram libertos dos campos de concentração. No campo onde Victor Frankl se encontrava, os judeus restantes foram colocados num caminhão, para serem transportados para casa. Por ser médico, Victor Frankl decidiu ficar no campo de concentração, cuidando dos doentes; portanto, fiel à sua missão. Minutos depois, o caminhão que transportava os judeus explodiu: era uma armadilha dos nazistas, seu último suspiro de ódio contra os judeus. Victor Frankl não morreu junto com aqueles judeus por ter se mantido fiel à sua missão. Em outras palavras, quem não se desvia do foco da sua missão sempre encontra sentido para viver e não “explode” diante dos reveses da vida. 

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 3 de julho de 2024

A DIFÍCIL E NECESSÁRIA VOCAÇÃO DE PROFETA

Missa do 14º dom. comum. Palavra de Deus: Ezequiel 2,2-5; 2Coríntios 12,7-10; Marcos 6,1-6.

 

Todos os textos bíblicos deste final de semana nos falam da vocação do profeta. A razão de ser dessa vocação está nas palavras que Deus dirigiu ao profeta Ezequiel: “Eu te envio aos israelitas, nação de rebeldes, que se afastaram de mim” (Ez 2,3). Ezequiel foi enviado para juntos dos israelitas que estavam exilados na Babilônia não apenas para consolá-los e fortalecê-los na fé, mas também para fazê-los tomar consciência de que aquela situação de sofrimento foi criada por eles mesmos, por não terem obedecido à voz de Deus. E aqui já se revela a difícil missão do profeta: falar não o que as pessoas gostam de ouvir, mas o que elas precisam ouvir.

Ezequiel deve exercer a sua missão de profeta consciente de que será uma missão difícil e ingrata: ele falará a pessoas de “cabeça dura e coração de pedra”, a um “bando de rebeldes”. Essas expressões lembram muito bem a nossa época: cada vez mais as pessoas estão fechadas à verdade. Não admitem ser advertidas, nem corrigidas. A vida fala constantemente com elas, mas elas não querem ouvir. São pessoas obstinadas nos seus erros. Assim como os israelitas no exílio, reclamam da vida, buscam constantemente um culpado pela situação em que se encontram e não admitem se responsabilizar pelo que lhes acontece: elas estão sempre certas; os outros é que estão errados.

Assim como Ezequiel, nossa presença junto às pessoas não é acidental, mas querida por Deus. Ele nos coloca ali para ajudarmos as pessoas a reverem suas atitudes, a se abrirem à verdade e a se tornarem melhores. Devemos estar conscientes de que vivemos num tempo onde as pessoas se ofendem por qualquer coisa; são pessoas melindrosas, que se magoam facilmente. Sempre que escutam o que não querem, se revoltam e partem para a agressão verbal. São doentes que não admitem ouvir o nome da doença que carregam em si. Ao invés de admitirem que precisam de tratamento, se rebelam contra o “médico” que diagnosticou a doença e mostrou a necessidade do tratamento. Em todo o caso, como Deus disse a Ezequiel, “quer te escutem, quer não, ficarão sabendo que houve entre eles um profeta” (Ez 2,5).

            Jesus também se identificou como profeta. Diante da pregação da Palavra de Deus na sinagoga de Nazaré, cidade em que cresceu, Jesus viu duas reações diferentes nos seus ouvintes: primeiro, admiração (v.2); depois, escândalo (v.3). Jesus sempre tinha uma palavra certa, na hora certa, para a pessoa certa. Mas, como ela falava o que as pessoas precisavam ouvir e não o que elas queriam ouvir, suas palavras “escandalizaram” os nazarenos. Ora, o que as pessoas fazem quando não admitem ouvir a verdade? Atacam aquele que está dizendo a verdade. Desse modo, começaram a menosprezar Jesus. Não perceberam que esse desprezo por sua pessoa comprovava justamente que ele era um verdadeiro profeta: “Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares” (Mc 6,4).

            Esse alerta serve para nós hoje. É mais fácil encontrar abertura em quem não nos conhece do que nas pessoas que convivem conosco. Além de conhecerem o nosso lado humano, essas pessoas podem nos rejeitar simplesmente por orgulho ou por inveja. O trágico é que a rejeição à palavra do profeta não o diminui como pessoa, muito menos o desacredita como profeta, mas invalida a ação de Deus na vida de quem poderia ser curado, liberto ou transformado pela Palavra: “E ali não pôde fazer milagre algum” (Mc 6,5). O Pai não autorizou Jesus a fazer nenhum milagre onde as pessoas ouvem com má vontade a sua Palavra. Pessoas que, ao invés de acolherem a Palavra de Deus, desviam o foco para julgar, criticar e menosprezar o pregador, ficarão privadas de todo e qualquer milagre do qual a Palavra de Deus é portadora.

            Para quem busca um pregador impecável, vale o alerta do apóstolo Paulo: não existe profeta ou pregador sem um “espinho na carne” (2Cor 12,7). Deus nunca cancelará o humano, a fragilidade, a imperfeição, a falha, naquele que anuncia a sua Palavra exatamente para que o pregador não se encha de soberba, de orgulho ou de autossuficiência. Todo profeta sempre será uma pessoa ferida, portadora de uma fraqueza que vez ou outra o humilhará, mas essa fraqueza será justamente a porta de entrada da força de Deus em sua vida de profeta. “Por isso, de bom grado, eu me gloriarei das minhas fraquezas, para que a força de Cristo habite em mim” (2Cor 12,9).

            O Evangelho termina afirmando que Jesus “admirou-se com a falta de fé deles” (Mc 6,6). É mesmo de admirar a geração atual, que se melindra e ofende quando uma verdade lhe é dita; é de admirar a hipocrisia de uma sociedade na qual o comportamento doentio não pode ser diagnosticado, e aquele que o diagnostica pode ser processado e preso por “preconceito”; é de admirar igrejas cheias de cristãos que, quando não escutam o que desejam na pregação, saem criticando o pregador; é de admirar e de lamentar a quantidade enorme de pessoas privadas de milagres por rejeitarem o “pacote” no qual o milagre veio embrulhado...     

           

Pe. Paulo Cezar Mazzi