quinta-feira, 25 de abril de 2024

O NECESSÁRIO CULTIVO, SEM O QUAL NÃO HÁ FRUTO

 Missa do 5º dom. Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 9,26-31; 1João 3,18-24; João 15,1-8.

 

            O processo de industrialização retirou o homem do campo e o transportou para a cidade, fazendo-o perder o contato com a terra. Além disso, o avanço da tecnologia se impôs de tal forma que a maioria das pessoas vive desconectada da natureza, o que nos distancia muito das palavras do Evangelho de hoje: videira, agricultor, ramos, frutos. Por isso, a única palavra que talvez nos ajude a compreender o ensinamento de Jesus no dia de hoje seja a palavra “cultivo”. Se a maior parte da humanidade vive longe do lugar onde se cultivam plantas e se produzem frutos – ainda que dependa absolutamente do alimento para viver –, todo ser humano é chamado a cultivar relações, sem as quais a sua vida se torna insuportavelmente solitária.

            Cultivar relações significa cultivar vínculos. Ao mencionar diversas vezes a palavra “permanecer”, Jesus nos convida a cultivar o vínculo que temos com Ele, pois, sem tal vínculo, nós nada podemos fazer: “Aquele que permaneceu em mim, e eu nele, esse produz muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). O problema é que “permanecer” é uma atitude cada vez mais rara na vida moderna: as pessoas não permanecem mais por muito tempo no mesmo emprego, na mesma empresa, no mesmo relacionamento, na mesma cidade, na mesma igreja etc. No lugar do “permanecer” entrou o desenraizar-se: não se cria mais raízes, o que significa que não se cria mais vínculos profundos.  

            Jesus deixa claro que, sem vínculo profundo, não existe fruto. Se o galho não permanece vinculado ao tronco da árvore, não recebe a seiva que procede do tronco e não consegue produzir fruto algum. Essa verdade deve nos fazer examinar as áreas da nossa vida que estão murchando, secando ou morrendo por descuido da nossa parte em relação ao cultivo. Quando não se cultiva um relacionamento, o mesmo perde o sentido; murcha, seca e não produz mais fruto, isto é, não alimenta afetivamente as pessoas envolvidas naquele relacionamento.

            O cultivo do nosso relacionamento com Jesus passa por quatro coisas: vida de oração, contato diário com o Evangelho, comunhão com a Eucaristia e solidariedade com os necessitados, com os quais Jesus se identifica. Porém, não deveríamos cultivar essas atitudes unicamente visando o fruto, sobretudo se ele for material (teologia da prosperidade). Como nos sentiríamos se percebêssemos que uma pessoa se vincula a nós não por amor, mas por interesse? Jesus conhece o ser humano por dentro (cf. Jo 2,25); Ele sabe quais são as reais motivações que levam uma pessoa a se vincular a Ele: se é por causa d’Ele ou se é por causa de algo que a pessoa espera conseguir d’Ele.

            Ao se comparar ao tronco de uma árvore e ao nos comparar aos galhos da mesma, Jesus fala do Pai como um agricultor que executa duas tarefas importantes: corta os galhos que nada produzem e poda aqueles que produzem, para que produzam frutos melhores ainda. Cortar e jogar fora um galho que nada produz significa lembrar que “quem não vive para servir, não serve para viver” (Mahatma Gandhi). Em outras palavras, “aquele que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4,17). Nenhum ser humano deve viver como parasita. Então, o que dizer dessa geração que nasceu para ser servida? (Ou o mais correto seria afirmar que “foi educada a ser servida”).

            A outra função do agricultor é podar os galhos que produzem frutos, para que se tornem mais fortes, mais fecundos, e seus frutos sejam melhores ainda. Toda poda causa dor na árvore. Isso está provado cientificamente. O Pai não tem receio em nos podar, em nos causar dor, quando aquela poda é necessária para o nosso crescimento, para nos tornar mais fecundos, melhores seres humanos e melhores cristãos. Como interpretamos essas podas? Elas são acolhidas com a confiança de que o Pai sabe o que está fazendo, ou se tornam causa de revolta da nossa parte para com Ele? O que o Pai hoje está querendo podar em nossa vida, porque aquilo está sugando nossas melhores energias e tornando os nossos frutos doentes, fracos e insuficientes?  

            De certa forma, cada um de nós é uma árvore que o divino Agricultor plantou na Terra, para produzirmos o fruto da bondade, da justiça, da fraternidade, da vida e da esperança. Nós estamos frutificando aonde a mão do Pai nos plantou? Nossas raízes estão em Deus? Somos pessoas capazes de “permanecer”, de ter disciplina e constância na vida de oração, de meditação diária da Palavra de Deus, de comunhão com Jesus na Eucaristia e na pessoa do próximo? Estamos correndo o risco de sermos cortados e jogados ao fogo por causa da nossa preguiça ou má vontade em fazer o bem de que somos capazes? Temos cultivado diariamente os relacionamentos que são significativos para a nossa vida?

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 18 de abril de 2024

ESCOLHER SER PASTOR NUM MUNDO DE MERCENÁRIOS

 Missa do 4º dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 4,8-12; 1João 3,1-2; João 10,11-18.

 

Ninguém de nós veio ao mundo a passeio. Ninguém de nós nasceu para simplesmente desfrutar da vida, mas, sim, para doá-la. Na verdade, o sentido da vida não está em desfrutá-la, mas em doá-la. Como afirma o Papa Francisco, “o nosso caminho sobre esta terra nunca se reduz a uma labuta sem objetivo nem a um vaguear sem meta; pelo contrário, cada dia, respondendo ao nosso chamado, procuramos realizar os passos possíveis rumo a um mundo novo, onde se viva em paz, na justiça e no amor” (Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações 2024). Em outras palavras, todo ser humano foi chamado à vida para uma tarefa, e essa tarefa consiste em cuidar de algo ou de alguém. Esse cuidado foi expresso por Jesus na imagem do pastor. O verdadeiro pastor cuida das ovelhas que lhe foram confiadas, e não desfruta delas. É por isso que Jesus contrapõe à imagem do pastor a do mercenário.

Enquanto o verdadeiro pastor dá a vida por suas ovelhas – dedica-se, esforça-se, sacrifica-se, doa-se diariamente para cuidar delas –, o mercenário não se importa com as ovelhas; seu interesse não está no bem-estar delas, mas no lucro que ele obtém ao “cuidar” das ovelhas. Jesus nos dá uma pista para sabermos diferenciar o verdadeiro pastor do mercenário: a hora da dor, da ameaça, a hora em que o lobo ataca as ovelhas. Enquanto o verdadeiro pastor enfrenta o lobo, o mercenário abandona as ovelhas e foge, pois a única coisa que ele visa é salvar sua própria pele.

A primeira pergunta que o Evangelho nos coloca é esta: quais são as ovelhas que a vida tem colocado sob os meus cuidados – filhos, pais, avós, subordinados no ambiente de trabalho, trabalho pastoral na minha paróquia? Como eu me comporto quando chega a hora da dor, da frustração com o “resultado” do trabalho realizado, com a ameaça dos lobos que visam destruir o que eu construí com tanto sacrifício? Uma ressalva importante: cuidar das ovelhas (filhos) nunca pode ser traduzido em superproteger, muito menos em acobertar erros. Cuidar não é apenas proteger, mas educar, formar o caráter, ensinar o filho a responsabilizar-se por suas atitudes.

Quem exerce a função de pastor/cuidador precisa cuidar de si também. Ninguém é uma fonte inesgotável de cuidado para os outros. Jesus disse que o bom pastor dá a vida por suas ovelhas, e não que se deixa devorar por elas. Quem cuida precisa deixar-se cuidar também. O nosso modelo de pastor/cuidador é Jesus: mesmo doando-se incansavelmente pelas ovelhas perdidas do seu povo, ele se retirava com frequência para lugares solitários a fim de descansar, rezar e deixar-se cuidar pelo Pai. Uma perigosa armadilha para um pastor/cuidador é não saber dizer não às suas ovelhas e carregá-las no colo quando elas podem andar por si mesmas.

Eis a segunda pergunta do Evangelho de hoje: eu dedico tempo para cuidar de mim da mesma forma como dedico tempo para cuidar dos outros? Sei reconhecer os meus limites? Consigo admitir que não sou – e não tenho a obrigação de ser – uma fonte inesgotável de cuidado para os outros? Eu dedico um tempo diário de oração para nela me deixar cuidar pelo Pai, assim como Jesus?

Quando olhamos para o nosso mundo hoje, percebemos que a presença de mercenários é muito maior do que a de bons pastores. É cada vez menor o número de pessoas que se dedicam a trabalhos voluntários. Esquece-se do que afirma o Papa Francisco: “Não somos ilhas fechadas em si mesmas, mas partes do todo” (Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações 2024). A maioria das pessoas só se dispõe a fazer algo pelos outros que isto lhes trouxer algum tipo de ganho, de benefício. Em outras palavras, perde-se o senso de gratuidade. A consequência disso é o aumento de ovelhas perdidas – pessoas abandonadas a si mesmas – enquanto que a grande maioria vive fechada no seu mundo particular, esvaziando a sua vida de sentido por viverem fechadas sobre si mesmas.

Ao descrever-se como bom pastor, Jesus afirmou: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16). Há muito mais pessoas afastadas do Evangelho do que alcançadas por ele. Aqui entra a missão de cada um de nós: fazer ecoar na vida dessas pessoas a voz de Jesus, ajudando as pessoas que estão desorientadas a encontrarem no Evangelho a orientação para a sua vida. No fundo, todo ser humano procura por um salvador, por um cuidador, e nós precisamos ajudar as pessoas a terem a convicção de que “não existe debaixo do céu outro nome  dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12), a não ser o nome (a pessoa) de Jesus Cristo.

O desejo de Jesus é que haja um só rebanho e um só pastor; “formar uma só família, unida no amor de Deus e interligada pelo vínculo da caridade, da partilha e da fraternidade” (Papa Francisco, Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações 2024). Como eu me relaciono com as pessoas de outras igrejas e outras religiões? Eu consigo dialogar com quem crê diferente de mim, mantendo-me firme nas minhas convicções? Nessa época em que a nossa Igreja é ferida a partir de dentro, devido à polarização entre cristãos “de direita” e cristãos “de esquerda”, minhas atitudes alimentam e aprofundam a divisão interna da Igreja ou ajudam a derrubar muros e a construir pontes? Não esqueçamos a advertência de Jesus: “Quem não ajunta comigo, dispersa” (Lc 11,23).

Abracemos o chamado que o Senhor Deus nos faz, de sermos “peregrinos de esperança e construtores de paz”, fundando “a própria existência sobre a rocha da ressurreição de Cristo, sabendo que todos os nossos compromissos, na vocação que abraçamos e levamos adiante, não caiem no vazio... Cada um de nós, no seu lugar próprio, no seu estado de vida, pode ser, com a ajuda do Espírito Santo, um semeador de esperança e de paz... Apaixonemo-nos pela vida e comprometamo-nos no cuidado amoroso daqueles que vivem ao nosso lado e do ambiente que habitamos” (Papa Francisco, Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações 2024).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi


CORPO GLORIFICADO E NÃO ESPÍRITO DESENCARNADO

Missa do 3º dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 3,13-15.17-19; 1João  2,1-5a; Lucas 24,35-48.

 

Estamos no 3º domingo do tempo pascal e o Evangelho narra para nós a terceira aparição de Jesus ressuscitado aos discípulos. Ele os encontra preocupados e cheios de dúvidas: “Por que estais preocupados, e porque tendes dúvidas no coração?” (Lc 24,38). Também nós temos o coração cheio de dúvidas e de preocupações: instabilidade econômica, relacionamentos frágeis, doenças e violência que ameaçam a vida, futuro dos filhos, desinformação provinda das redes sociais e, mais do que tudo, a sensação de que estamos abandonados e nós mesmos (crise de fé).

Para dissipar as preocupações e dúvidas dos discípulos, Jesus lhes dirige primeiramente uma palavra: “A paz esteja convosco!” (Lc 24,36). Essa palavra está presente em praticamente todas as aparições do Ressuscitado (cf. Jo 20,19.21.28). A paz que o Ressuscitado nos oferece não ignora as nossas angústias, dúvidas, tribulações e preocupações, mas é a paz daquele que venceu o mundo: “Eu vos disse tais coisas para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33). Nós só podemos ter paz “em” Jesus, permanecendo unidos a Ele, na comunhão com a presença no Evangelho e na Eucaristia. Mesmo que Ele tenha ressuscitado, as tribulações continuarão a existir, sobretudo na vida dos seus discípulos, pois o mundo é contrário ao Evangelho.

Eis a segunda atitude do Senhor ressuscitado: “‘Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede! Um fantasma não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho’. E dizendo isso, Jesus mostrou-lhes as mãos e os pés” (Lc 24,39-40). A ressurreição glorificou o corpo de Jesus, de modo que ele está modificado, o que dificulta que os seus discípulos o reconheçam imediatamente. No entanto, o corpo glorificado do Senhor carrega as marcas da sua crucificação. O Ressuscitado é o Crucificado! Tanto os discípulos ontem, como nós hoje, precisamos compreender que Jesus não é um fantasma! Ele é uma presença real no meio de nós, na palavra do Evangelho e no sacramento da Eucaristia! É por isso que ele insiste em “comer” na presença dos seus discípulos: “‘Tendes aqui alguma coisa para comer?’ Deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o tomou e comeu diante deles” (Lc 24,41-43).

Ninguém de nós duvida que Jesus morreu numa cruz, mas quantos de nós o sentem vivo, ressuscitado, no coração? Precisamos levar a sério sua promessa: “Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). “Eu estou com você! Eu estou em você, através do Espírito Santo. Cada vez que você acolhe com fé a minha palavra no Evangelho e recebe o meu Corpo e Sangue na Eucaristia, minha presença se atualiza em você e na sua vida. Você não está sozinho!”.   

A terceira atitude dos Ressuscitado é relembrar aos discípulos aquilo que as Escrituras (Bíblia) profetizaram a seu respeito: “Era preciso que se cumprisse tudo
o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 35,44). Para o evangelista Lucas, todo acontecimento que se deu na vida de Jesus nunca foi obra do acaso, mas permissão do Pai. O Pai previu e permitiu o sofrimento e a morte de seu Filho em vista da nossa salvação: “Assim está escrito: ‘O Cristo sofrerá
e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia, e no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações’” (Lc 35,46-47).

Exatamente como Jesus, nós não estamos no mundo abandonados às mãos do acaso. Na vida de cada um de nós que cremos existe um “é preciso”. Se nós não queremos ser engolidos por nossas dúvidas e preocupações, “é preciso” buscar diariamente no Evangelho a Palavra do Ressuscitado, para vencermos o mundo. Se nós acreditamos que nossa vida tem um sentido, que a nossa existência tem uma razão de ser, que a nossa realização pessoal depende da fidelidade à tarefa que a vida nos confiou, temos que tomar consciência do nosso “é preciso”: É preciso enfrentar o que estou enfrentando; é preciso lutar para me manter fiel à vontade de Deus; é preciso me manter firme na minha vida de oração; é preciso dizer ‘não’ a mim mesmo, renunciar ao pecado e ‘morrer’ para o mundo, se eu quiser ser verdadeiramente salvo...

As três leituras bíblicas de hoje nos falam de conversão e de perdão dos pecados: “Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para que vossos pecados sejam perdoados” (At 2,19); “Se alguém pecar, temos junto do Pai um Defensor: Jesus Cristo, o Justo. Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,1-2); “No seu nome (na pessoa do Senhor ressuscitado), serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações” (Lc 24,47). Como anda a nossa consciência em relação ao pecado. No sentido bíblico, pecar significa “fazer o que é mal aos olhos de Deus” (cf. Sl 51,6). A maioria das pessoas não está preocupada em não pecar, mas em ser feliz, ainda que essa felicidade faça o mal à própria vida delas, dos outros ou do planeta. Todo pecado gera a morte naquele que peca (cf. Rm 5,12). Quem insiste em viver numa situação de pecado, invalida a ressurreição de Cristo para si. Da mesma forma como “Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras” (Lc 24,35), necessitamos que Ele nos torne conscientes em relação a qual atitude precisamos nos arrepender e nos converter, para que façamos a passagem da morte provocada pelo pecado para a vida que só o Ressuscitado pode nos dar.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 4 de abril de 2024

FÉ PARA FAZER A VONTADE DE DEUS E NÃO PARA "DOBRÁ-LO" À NOSSA VONTADE

 Missa do 2º dom. de Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 4,32-35; 1João 5,1-6; João 20,19-31.

 

“Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (Jo 20,25). A exigência de Tomé em ver para crer é o retrato da nossa época. Nós, humanos, temos necessidade de tocar, de sentir, de “apalpar” Deus. Nossa fé é movida pela necessidade de “experimentar” Deus. No entanto, só faz experiência de Deus quem desiste de fazê-Lo caber dentro de uma ideia, de um sentimento, de uma emoção ou de algo que possa ser visto ou tocado. O grande problema da nossa fé é que Deus é sempre o Transcendente, ou seja, Ele é sempre mais do que podemos compreender, sentir e experimentar. Além disso, não vê-Lo, não senti-Lo e não experimentá-Lo não significa que Ele não exista ou não se interesse por nós. Ele é absolutamente livre e é Ele quem decide quando e de que forma se manifestar em nossa vida.

Desde a pessoa de Abraão, chamado “pai da nossa fé” (cf. Rm 4,11), Deus se revelou como Aquele que fala, Aquele que se manifesta por meio da Palavra. Por isso, ter fé em Deus significa obedecer e confiar na sua Palavra. Essa Palavra ecoa na Igreja, a mesma Igreja que disse a Tomé: “Vimos o Senhor!” (Jo 20,25), mas para Tomé não bastou a Palavra da Igreja: ele exigiu ter uma experiência pessoal com o Ressuscitado. Jesus lhe deu essa experiência, mas o advertiu: “Acreditaste, porque me viste? Felizes os que creram sem terem visto!” (Jo 20,29). Enquanto nós julgamos que os discípulos de Jesus foram felizes por terem convivido pessoalmente com Ele, Jesus afirma que felizes são todos aqueles que, não convivendo pessoalmente com Ele, creram na sua presença contida na Palavra do Evangelho e na Eucaristia (cf. Lc 24,30-31).  

            Não há como negar que a nossa fé está cansada, desencantada e ferida. Nosso mundo se alimenta de fortes emoções e de constantes novidades, e isso “contamina” a nossa fé: nós também exigimos fortes emoções e constantes novidades em nossa vida de fé. Além disso, a realidade à nossa volta, marcada por dores, injustiças, sofrimentos e desigualdades, parece negar tudo aquilo que cremos. Como afirma o Pe. Tomás Halík, “a cruz da fé é a própria ambivalência da realidade” (A noite do confessor, p.34). Essa ambivalência é como que o avesso de um bordado: o que vemos são muitos fios trançados, misturados e aparentemente sem sentido; no entanto, quando olhamos o bordado do lado direito, vemos que ele mostra uma realidade que faz sentido.

            Por não suportarem a ambivalência da realidade, muitos cristãos têm escolhido deformar a sua fé em fundamentalismo, não entendendo que “o fundamentalismo é um distúrbio de uma fé que tenta entrincheirar-se no meio das sombras do passado, defendendo-se da perturbadora complexidade da vida” (Tomás Halík, A noite do confessor, p.35). São cristãos que vivem a sua fé como fuga do mundo, traindo a própria vocação que lhes foi dada por Jesus: “Vocês são o sal da terra... Vocês são a luz do mundo” (Mt 5,13.14). Esses cristãos querem uma Igreja protegida por uma doutrina, ao invés de se deixar desafiar constantemente pelo Evangelho a se tornar a presença do próprio Ressuscitado junto aos perdidos e feridos deste mundo.

            A fé não é uma opção para nós, mas a única condição de “sobrevivência”: “Quem não é correto vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (Hab 2,4; cf. Rm 1,17). Quem não se mantiver firme na sua fé, não sobreviverá a um mundo que cada dia mais afunda na sua própria desorientação. Além disso, não podemos nos esquecer da experiência de “fracasso” que Jesus viveu em sua própria cidade, Nazaré: Ele não pôde realizar ali nenhum milagre, por causa da incredulidade deles (cf. Mc 6,5-6). O Pai não autorizou o Filho a realizar nenhum milagre na vida de quem não crê na pessoa do Filho; de quem, ao contrário, se escandaliza com a humanidade do Filho. Foi por isso que São João afirmou que a nossa fé não é fé numa doutrina ou em algum espírito, mas numa Pessoa concreta: Jesus Cristo, “o que veio pela água (batismo) e pelo sangue (morte de cruz)” (1Jo 5,6).

            A fé de Tomé morreu junto com Jesus na cruz. Da mesma forma hoje, a fé “morre” no coração de muitas pessoas quando Deus permite que elas sejam feridas por uma dura experiência de cruz. Elas se esquecem de que o Ressuscitado só foi reconhecido pelos discípulos ao mostrar suas mãos e o seu lado, isto é, as feridas da cruz em seu Corpo agora glorificado pela ressurreição. As feridas do Ressuscitado nos recordam que não existe fé sem luta. Nós não lutamos somente com um mundo contrário à fé e ao Evangelho, mas lutamos também com Deus, como Jacó (cf. Gn 32,23-33). A fé nunca vai funcionar em nós como um “calmante”, mas como um “energético”, para olharmos a vida nos olhos e enfrentarmos os desafios que nos cabem enfrentar em nome da nossa obediência à vontade de Deus.

             Enquanto muitos entendem a fé como receita para o seu sucesso pessoal e leem o Evangelho como um livro de autoajuda, a Sagrada Escritura nos ensina que a fé é “obediência” (cf. Rm 1,5): nós nunca poderemos usar a nossa fé para “dobrar” Deus aos nossos desejos. A fé só será força de salvação em nós quando se tornar docilidade do nosso espírito ao que Deus quer de nós, sabendo que a Sua vontade poderá às vezes nos ferir profundamente, mas é uma ferida que produzirá ressurreição em nós. Enfim, tenhamos em conta que, justamente por crerem na ressurreição e na vida eterna, os primeiros cristãos abriam mão de suas posses e colocavam tudo “em comum”, para que entre eles não houvesse necessitados (cf. At 4,32-35). A fé no Ressuscitado nos faz ver com outros olhos o significado dinheiro em nossa vida.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi