quinta-feira, 28 de julho de 2022

A ILUSÃO DO AMPARO MATERIAL

 Missa do 18. dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiastes 1,2; 2,21-23; Colossenses 3,1-5.9-11; Lucas 12,13-21.

            Nós, seres humanos, buscamos por uma segurança, por uma garantia perante a vida, sobretudo em relação ao futuro, ao amanhã. Queremos nos garantir contra uma eventual doença ou velhice que exija que sejamos cuidados, e que, portanto, não fiquemos desamparados. Por vivermos numa sociedade capitalista, entendemos que somente o dinheiro pode nos garantir um futuro em não fiquemos desamparados.        

“Alguém, do meio da multidão, disse a Jesus: ‘Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo’” (Lc 12,13). Aqui a herança aparece como garantia de um futuro tranquilo, amparado, seguro. Na verdade, independente de “herança”, era para todos nós, brasileiros, termos o nosso futuro amparado por uma aposentadoria digna. Contudo, a corrupção, que está presente tanto no topo da pirâmide social (política) quanto na base dela (povo), tem sinalizado que, no futuro, não haverá mais aposentadoria (a não ser privada), contemplando apenas aqueles que dela sempre usufruíram com grande abundância: políticos, juízes e grandes empresários. O resto da população terá que sobreviver como conseguir, sem nenhum tipo de amparo do Estado.

Conhecendo o coração humano e sua busca pela enganadora garantia de amparo financeiro, Jesus afirma: “Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens” (Lc 12,15). Por acreditar que o futuro está garantido pela abundância de bens, pessoas têm recorrido ao tráfico de drogas, à venda de medicamentos roubados, ao tráfico de pessoas e de órgãos, à destruição da verdade e da justiça diante dos tribunais, à manipulação do Evangelho e das consciências religiosas, à propagação ou manutenção da violência para manter aquecida a indústria das armas etc.

Na sua Encíclica Social “Fratelli tutti”, o Papa Francisco, afirmou: “Precisamos fazer crescer a consciência de que, hoje, ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém” (n.137). Foi por isso que Jesus nos contou a parábola do homem que, fechado no seu individualismo, quis garantir seu futuro sem se importar com ninguém mais que não fosse ele mesmo: “Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!” (Lc 12,19). Para esse homem, as outras pessoas não existem; antes, se existem, é para que ele possa lucrar com elas de alguma maneira. Obcecado por garantir sua sobrevivência a partir do acúmulo de dinheiro, ele se esqueceu de que “ninguém se livra de sua morte por dinheiro nem a Deus pode pagar o seu resgate. A isenção da própria morte não tem preço; não há riqueza que a possa adquirir, nem dar ao homem uma vida sem limites e garantir-lhe uma existência imortal” (Sl 49,8-10).

Nós conhecemos não poucas pessoas ricas cuja fortuna foi incapaz de impedi-las de morrer. Mas o alerta de Jesus não é somente para os que fazem da sua riqueza seu porto seguro. Ele é válido para todos! Nós todos necessitamos de dinheiro para sobreviver no mundo atual, cujo deus é o mercado. Mas o problema nem está na sobrevivência, e, sim, na atitude insana de quem “gasta sua saúde para ganhar dinheiro; depois gasta seu dinheiro para tentar recuperar sua saúde, o que faz com que a pessoa viva como se nunca fosse morrer, e morre como se nunca tivesse vivido”, parafraseando Dalai Lama. O problema está em gastar tempo, saúde e dinheiro correndo atrás do que é vazio.

Nessa sociedade de valores invertidos, alimentar a própria vaidade tornou-se mais importante do que alimentar o próprio caráter. Para uma pessoa escrava da vaidade, “toda a sua vida é sofrimento, sua ocupação, um tormento. Nem mesmo de noite repousa o seu coração” (Ecl 2,23). É alguém constantemente insatisfeito, porque passa seu tempo tentando preencher vazio com vazio, pois vaidade significa exatamente isso: vazio. O contrário de uma vida vazia é uma vida com sentido, e o sentido da vida está em manter a consciência de que a nossa existência neste mundo é extremamente breve, como a “erva verde pelos campos: De manhã ela floresce vicejante, mas à tarde é cortada e logo seca” (Sl 90,11). Manter a consciência de que vamos morrer nos ajuda a viver com responsabilidade esta vida que nunca mais voltaremos a ter, pedindo diariamente ao Senhor: “Ensinai-nos a contar os nossos dias, e dai ao nosso coração sabedoria! Que a bondade do Senhor e nosso Deus repouse sobre nós e nos conduza! Tornai fecundo, ó Senhor, nosso trabalho” (Sl 90,12.16-17). 

            Enfim, que possamos nos deixar provocar pelo convite do apóstolo Paulo: “Esforçai-vos por alcançar as coisas do alto... aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres... Fazei morrer o que em vós pertence à terra: imoralidade, impureza, paixão, maus desejos e a cobiça, que é idolatria” (Cl 3,1.2.5). Se há algo pelo qual devemos trabalhar para nos garantir não é quanto a um futuro financeiramente tranquilo, mas quanto à vida eterna junto a Deus. Perdê-la, significa ter perdido tudo, e a vida eterna “se adquire” não ajuntando tesouros para si mesmo, mas socorrendo os que à nossa volta estão necessitados. São eles que nos receberão “nas moradas eternas” (Lc 16,9).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 21 de julho de 2022

ESTAR DIANTE DO PAI NÃO POR NECESSIDADE, MAS POR AMOR

 Missa do 17º. dom. comum. Palavra de Deus: Gênesis 18,20-32; Colossenses 2,12-14; Lucas 11,1-13.

 

            Muitas pessoas deixaram de elevar seus olhos e suas mãos ao céu, assim como também deixaram de dobrar seus joelhos para fazer uma oração. Elas se perguntam: “Para quê rezar a um Deus que eu não vejo, a um Deus que eu não sinto que me ama e que se importa comigo?”. “Para quê rezar a um Deus que não impede catástrofes, nem tragédias, um Deus que permite que o Mal ande livremente pelo mundo?”. “Para quê continuar rezando a um Deus que disse ‘não’, quando eu pedi que curasse meu filho, que salvasse meu casamento, que me livrasse de uma situação de dor?”.

            A primeira coisa que precisamos fazer, se não quisermos abandonar a nossa vida de oração, é desistir de querer usar Deus a nosso favor. Nossa oração, por mais bem feita que seja, não tem o poder de controlar Deus e de forçá-Lo a fazer aquilo que achamos que Ele tem que nos fazer. “Tu és um Deus que se esconde”, afirma o profeta Isaías (45,15), isto é, um Deus que nenhum ser humano pode manipular ou controlar. Ao mesmo tempo, Deus nos garante: “Eu nunca disse: ‘Procurem-me inutilmente’” (Is 45,19). Pelo contrário: “Ele está perto de toda pessoa que o invoca, de todos aqueles que o invocam sinceramente” (Sl 145,18).  

            Jesus sempre entendeu a oração como o momento em que Ele se deixava amar e cuidar pelo Pai, e é assim que Ele deseja que vivamos nossa vida de oração: não como escravos que suplicam migalhas ao seu patrão, mas como filhos que, quando iniciam sua oração, devem estar convencidos de uma coisa: “O Pai de vocês sabe do que vocês necessitam antes de lhe pedirem alguma coisa” (Mt 6,8). Portanto, a atitude mais importante em nossa oração é a confiança: “Aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram” (Hb 11,6). Essa recompensa não significa que Deus sempre nos dará exatamente aquilo que estamos lhe pedindo, mas a certeza de que Ele nos dará sempre aquilo que estamos necessitando para aquele momento. Assim como Jesus, precisamos ter a convicção de que toda oração que fazemos é ouvida por Deus: “Pai, eu sei que tu sempre me ouves” (Jo 11,41-42). Contudo, depois de nos ouvir, o Pai fará o que Ele sabe ser o melhor para nós, o que nem sempre coincide com os nossos desejos.   

            Normalmente, nós entendemos a oração como um momento de pedir coisas a Deus. Jesus quer nos ensinar a rezar de outra maneira, de modo que nossa oração se transforme em um relacionamento com o Pai. Como um pai ou uma mãe se sentiria se seu filho só o(a) procurasse quando estivesse precisando de algo? Jesus quer que vivamos a oração como um estar na presença d’Aquele que nos ama e que deseja cuidar de nós. Neste sentido, a atitude mais importante na oração é a disponibilidade, a mesma atitude do barro que se abandona confiantemente nas mãos do Oleiro, para que possa ser moldado, consertado, refeito, transformado: “Faça-se em mim, segundo a sua vontade” (Lc 1,38); “Completai em mim a obra começada” (Sl 138,8); numa palavra: Torna-me a pessoa que fui chamada a ser!

            Algo que precisamos ter cuidado na oração é revisar as nossas atitudes no dia a dia: “Quando vocês estendem as mãos, desvio de vocês os meus olhos; ainda que multipliquem as suas orações não ouvirei vocês. As mãos de vocês estão cheias de sangue... Parem de praticar o mal, aprendam a fazer o bem!” (Is 1,15-17). Se queremos que nossa oração seja ouvida, precisamos deixar de ter atitudes que favoreçam a injustiça e prejudiquem pessoas. Se na oração buscamos a Deus como Pai, devemos nos esforçar por viver como irmãos de todo ser humano.

            A oração de Abraão, intercedendo por Sodoma e Gomorra, nos lembra que nossa oração precisa ir além dos nossos interesses particulares. A humanidade como um todo necessita da nossa oração, especialmente as pessoas que estão sofrendo; as que estão perdidas; as que estão no erro, no pecado; as que estão desesperadas; as que nos perseguem e nos prejudicam; as que sofrem injustiças etc. Da mesma forma como Deus “quer que todos os homens sejam salvos” (1Tm 2,4), oramos pela salvação de todo ser humano.   

                Vejamos agora A ORAÇÃO DE JESUS* – “Pai!”. Esta é sempre a primeira palavra de Jesus ao dirigir-se a Deus. Ela convida a entrar numa atmosfera de confiança e intimidade que vai impregnar todos os pedidos que seguem. “Santificado seja o teu nome”. É o primeiro desejo que nasce da alma de Jesus, sua aspiração mais ardente. Que todos conheçam a bondade e a força salvadora que teu nome santo encerra. Que sejam banidos os nomes dos deuses e ídolos que matam teus pobres. Que todos bendigam teu nome de Pai bom. “Venha o teu reino”. É esta a paixão da vida de Jesus, seu objetivo último. Que a “semente” da tua força continue crescendo, e que o “fermento” de teu reino fermente tudo. Que os que sofrem sintam tua ação curadora. Enche o mundo com tua justiça e tua verdade, com tua compaixão e teu perdão. “Dá-nos hoje nosso pão de cada dia”. Que a ninguém falte pão hoje. Não te pedimos dinheiro nem bem-estar abundante, não queremos riquezas para acumular, só pão para todos. “Perdoa-nos os nossos pecados, pois nós também perdoamos a todos os nossos devedores”. Estamos em dívida com Deus. É nosso grande pecado: não corresponder ao amor do Pai. Não desejamos alimentar em nós ressentimentos nem desejos de vingança contra ninguém. Queremos que teu perdão transforme nossos corações e nos faça viver perdoando-nos mutuamente. “Não nos deixes cair na tentação”. Somos seres fracos. O mistério do mal nos ameaça. Dá-nos tua força. Não nos deixes cair derrotados na prova final. Que no meio da tentação e do mal possamos contar com tua ajuda poderosa (*José A. Pagola, Jesus – aproximação histórica, pp.392-396).    

            Enfim, após nos falar da importância da perseverança na oração, de modo a se tornar uma prática diária (cf. Lc 11,9-10), Jesus nos indica o pedido mais importante: que o Pai nos dê o Espírito Santo! Mais do que um pouco de água para saciar a nossa sede, o Espírito Santo é a fonte de água viva em nós. Mais do que um pouco de força para nos ajudar em nossas lutas, o Espírito Santo é a força do Alto que nos sustenta. Mais do que uma proteção temporária em nossa vida, o Espírito Santo é o Defensor que nos protegerá contra o Mal; mais do que um pouco de vida dentro de nós, o Espírito Santo é a garantia da nossa futura ressurreição; enfim, mais do que nos dar algum dom de Deus, o Espírito Santo é o Dom por excelência, o maior bem que o Pai pode dar a um filho Seu; Ele é o amor do Pai derramado em nossos corações (cf. Rm 5,5); somente Ele pode orar em nós segundo os desígnios do Pai a nosso respeito (cf. Rm 8,26)!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

quinta-feira, 14 de julho de 2022

DAS FALSAS NECESSIDADES PARA "O ÚNICO NECESSÁRIO"

 Missa do 16. dom. comum. Gênesis 18,1-10a; Colossenses 1,24-28; Lucas 10,38-42.

 

“Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém, uma só coisa é necessária” (Lc 10,41-42). Muitas coisas se apresentam como “necessárias” para sermos felizes, para termos segurança, para garantirmos o nosso futuro, para nos defendermos de tudo aquilo que nos ameaça, para não sermos ignorados pelas pessoas nas redes sociais etc.

Dizem que é necessário que você faça academia e tenha um corpo “sarado” para poder chamar a atenção das pessoas e ser desejado(a) por elas. Dizem que é necessário que você poste fotos e vídeos que lhe exponham todos os dias nas redes sociais, para que as pessoas saibam que você existe. Dizem que é necessário que você leia tal livro, assista tal filme ou tal série, porque “todo mundo” está comentando sobre isso. Dizem que é necessário que você use tal marca de roupa, tenha tal carro, faça tal curso, para ter projeção social. Dizem que você precisa acompanhar as notícias em tempo real, estar bem informado sobre o que se passa no mundo, para pode falar sobre os assuntos atuais... 

A lista do “é necessário” não tem fim, e quem cai na armadilha de fazer um monte de coisas achando que todas elas são realmente necessárias, acaba por perder o foco daquilo que é essencial, acaba por se perder e adoecer, nesse turbilhão de exigências desnecessárias. A única forma de você não ser agarrado por essa armadilha que lhe adoece e esgota é aprender a ouvir-se interiormente; aprender a definir-se a partir de dentro e não a partir de fora. Só quando você está em sintonia com a voz de Deus em seu coração consegue distinguir o necessário do desnecessário, o essencial daquilo que é aparentemente urgente e importante.

“Uma só coisa é necessária”, disse Jesus a Marta. Jesus nunca foi uma pessoa dispersa, atraída por diferentes interesses e fragmentada por necessidades que não eram verdadeiras. Ele sempre foi o Filho unificado em torno do Pai. Sua orientação interior sempre foi fazer a vontade do Pai. Até mesmo as pessoas que trabalham para Deus, que dedicam sua vida a Deus, correm o risco de serem como Marta: excessivamente atarefadas em fazer as coisas de Deus, sem tempo para estarem com Deus. Quando Jesus afirma que “uma só coisa é necessária” está nos lembrando que a única coisa necessária em nossa vida é o nosso relacionamento com o Pai, deixando-nos amar e cuidar por Ele.

Por não darmos ao Pai o tempo e o espaço necessários para que Ele nos ame e cuide de nós, somos tomados pela ansiedade e pela angústia de termos que fazer uma porção de coisas que “garantam” a nossa sobrevivência e a nossa felicidade. Nos esquecemos do que afirma o salmo 127,2: “É inútil levantar de madrugada ou à noite retardar o repouso para ganhar o pão sofrido do trabalho, pão que Deus concede aos seus amados enquanto eles dormem”.   

Justamente porque nos perdemos numa porção de falsas necessidades, acabamos não tendo tempo para aquilo que é essencial em nossa vida. E o mais trágico em tudo isso é que perdemos a oportunidade de que Deus entre em nossa casa e transforme a nossa vida. Jesus entrou na casa de Marta e de Maria, mas Marta, embora estivesse presente em casa, se manteve ausente em relação a Jesus. Muito diferente foi a atitude de Abraão. Ele estava “sentado à entrada da sua tenda, no maior calor do dia. Levantando os olhos, Abraão viu três homens de pé, perto dele” (Gn 18,1-2). A expressão “no maior calor do dia” pode designar desânimo ou até mesmo irritação. Além disso, Abraão estava com fome. Por fim, Abraão tinha uma questão não resolvida com Deus: já fazia 24 anos que Abraão estava esperando o cumprimento de uma promessa: ter um filho.

Nós temos a tendência a ficar mal humorados quando as coisas não estão indo bem. Temos a tendência a nos fechar em nossas feridas, em nossos problemas, e a culpar o mundo por isso. Por não estar fechado em seus próprios problemas, Abraão enxergou três homens que passavam próximos da sua tenda. Ele não só os enxergou, como se abriu a eles, acolhendo-os em sua casa e preparando-lhes um almoço. Abraão fez isso por pura gratuidade. Ele nem imaginava que, por meio daqueles três homens, o próprio Deus estava visitando a sua casa. Durante o almoço, Deus tocou na dor mais profunda de Abraão, a dor de não ser pai: “Onde está Sara, tua mulher?” “Está na tenda”, respondeu ele... “Voltarei, sem falta, no ano que vem, por este tempo, e Sara, tua mulher, já terá um filho” (Gn 18,9-10).

Quando vivemos fechados em nós mesmos, girando em torno das nossas necessidades não satisfeitas, não enxergamos a visita de Deus, nem nos deixamos ser cuidados por Ele. Pelo contrário, quando nos esquecemos de nós mesmos, quando entendemos que o sentido da vida está fora de nós, numa tarefa a ser realizada em favor de outras pessoas, nasce um espaço dentro de nós onde Deus pode entrar e agir, transformando uma situação que até então nos parecia impossível. Ao esquecer-se de si e ao amar e cuidar de três pessoas necessitadas, Abraão foi amado e cuidado por Deus. Quantas vezes Deus já passou por nossa vida, mas nós estávamos tão ocupados com falsas necessidades que não tivemos tempo para acolhê-Lo?  

“Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada” (Lc 10,42). Uma pessoa que se define a partir de dentro precisa fazer escolhas, e não aceitar viver comandada a partir de fora, das pressões e das cobranças de quem quer que seja. Em seu livro “A sociedade do cansaço”, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han adverte que a sociedade nos impõe a cobrança do sucesso, da produtividade. Isso nos transforma em pessoas mecanizadas e centradas no que é essencial para o sistema capitalista: a busca pelo lucro. Consequentemente, as pessoas traçam propósitos exagerados para o sucesso no trabalho, privando-se de lazer, de descanso e de atividades fundamentais para a saúde física e mental. O resultado é o esgotamento.

Todos os dias necessitamos nos sentar aos pés de Jesus e ouvir sua Palavra. Ela nos ajudará a distinguir o essencial do urgente, o único necessário das “necessidades” que o mundo consumista cria em nós. Como o próprio Senhor nos ensina, é na conversão e na calma que está a nossa salvação; é na tranquilidade e na confiança que está a nossa força (cf. Is 30,15). “Tranquilizem-se e reconheçam: Eu sou Deus, mais alto que os povos, mais alto que a terra” (Sl 46,11). Cuidemos da nossa relação com o Pai, revendo nossas prioridades, ordenando os nossos afetos e buscando, em tudo, fazer a Sua vontade. O resto Ele cuidará por nós.    

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 7 de julho de 2022

DE QUEM ESTOU SENDO CHAMADO(A) A ME FAZER PRÓXIMO(A)?

 Missa do 15. dom. comum. Deuteronômio 30,10-14; Colossenses 1,15-20; Lucas 10,25-37

 

Por causa da vacinação, tem sido possível voltar às atividades presenciais: aulas, celebrações, cultos, shows, festas, eventos etc. Nessa “volta” foi percebido um fator preocupante: nós “voltamos” da pandemia mais agressivos, mais intolerantes, mais irritados. Isso tem sido constatado nas salas de aula, sobretudo. Esperava-se que a pandemia nos tornasse mais simples, mais humildes, mais fraternos, mais humanos. No entanto, ela fez vir para fora, de modo mais agudo, o que cada um tem dentro de si: quem tinha uma tendência a ser ruim, se tornou pior; quem tinha uma tendência a ser bom, se tornou melhor.

Na sua homilia do dia 27 de março de 2020, em pleno isolamento mundial imposto pela Covid 19, o Papa Francisco afirmou que a pandemia nos obrigou a reconhecer que estamos todos “no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas, ao mesmo tempo, importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos necessitados de mútuo encorajamento”. Ele alertou que “não podemos continuar a estrada cada qual por conta própria, mas só o conseguiremos juntos”. Por fim, denunciou, por meio de uma oração dirigida a Jesus: “Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”.

Essas palavras do Papa Francisco nos colocam diante do Evangelho de hoje, onde Jesus deixa claro que a verdadeira religião deve nos humanizar e levar a amar: amar a Deus de todo o nosso coração e amar ao próximo como a nós mesmos. Ter uma religião é abrir-se a dois relacionamentos. O primeiro relacionamento é com o Pai: deixar-nos amar por Ele, tomar consciência de que Ele nos ama e, em resposta, amá-Lo desde o mais profundo do nosso ser. O segundo relacionamento é com o nosso próximo: amá-lo como gostaríamos de ser amados; tratá-lo como gostaríamos de ser tradados.

Não há dúvida de que o relacionamento mais exigente é o segundo: amar o próximo. A pergunta que o mestre da Lei faz a Jesus tem sua razão de ser: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10,29). Na época de Jesus, o conceito de “próximo” havia sofrido múltiplas restrições: os judeus se abriam somente aos estrangeiros simpatizantes do judaísmo; os fariseus excluíam do seu amor os pecadores e samaritanos; os essênios faziam o mesmo com os que eles consideravam “filhos das trevas”. Hoje, o conceito de “próximo” está ferido pela polarização, de modo que não apenas nos sentimos dispensados de amar quem pensa diferente de nós, mas nos damos ao direito de até mesmo odiá-lo.

Para nos ajudar a reconhecer quem é o nosso próximo, Jesus conta uma parábola que derruba todas as barreiras e elimina todos os limites, restrições e exceções que costumamos colocar na compreensão de quem é o nosso próximo. Propositalmente, Jesus inverte as coisas, nos ensinando que a pergunta correta não é: “Quem é meu próximo?”, mas sim “De quem eu sou chamado(a) a me fazer próximo(a)?”. Nós somos chamados a nos fazer próximos de toda pessoa que está ferida à nossa volta, de quem está sendo injustiçado, agredido, perseguido... Somos chamados a amar aqueles que não se sentem amados ou que, de fato, não são amados neste mundo.  

Se isto nos parece muito exigente, lembremos do que nos diz o nosso Pai: “Este mandamento que hoje te dou não é difícil demais, nem está fora do teu alcance... Esta palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu coração, para que a possas cumprir” (Dt 30,11.14). Religião significa “re-ligar” o ser humano com Deus. Qualquer pessoa que busca religar-se com Deus é chamada a religar-se com o seu próximo, sobretudo fazendo-se próxima de quem dela precise. O sinal da nossa religião cristã é o sinal da cruz: o traço vertical nos lembra do nosso relacionamento com Deus, enquanto que o traço horizontal nos lembra do nosso relacionamento com o próximo. Buscar a Deus é tão necessário quanto buscar nos fazer próximos de quem precisa de nós.

O apóstolo Paulo afirmou que o Pai colocou a plenitude do seu amor em seu Filho Jesus Cristo, em vista de “reconciliar consigo todos os seres, os que estão na terra e no céu, realizando a paz pelo sangue da sua cruz” (Cl 1,20). Tudo o que existe foi ferido pelo pecado do egoísmo e da exclusão, pelo pecado da divisão, do ódio e, principalmente, da indiferença. O Pai nos chama a trabalhar com Ele para “realizar a paz” pelo sangue da cruz de seu Filho, sangue que significa “amar até o fim”.

Não nos esqueçamos de que, na parábola contada por Jesus, dois homens religiosos não se fizeram próximos de quem estava ferido. Pelo contrário, ambos tiveram a mesma atitude de indiferença: “Quando viu o homem, seguiu adiante, pelo outro lado” (Lc 10,31); “viu o homem e seguiu adiante, pelo outro lado” (Lc 10,32). Já um terceiro homem “chegou perto dele, viu e sentiu compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas” (Lc 10,33-34). Peçamos ao Pai que eduque o nosso olhar e cure o nosso coração da doença da indiferença para com quem sofre. Lembremos de que a religião verdadeira é aquela que nos humaniza, isto é, que nos torna misericordiosos, sabendo que a misericórdia é o amor vivenciado na prática do dia a dia.

Hoje, ao comungar o Corpo de Cristo, tenha a coragem de perguntar: “Senhor Jesus, de quem eu estou sendo chamado(a) a me fazer próximo(a)?”.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi