Missa da Santíssima Trindade. Palavra de Deus: Provérbios 8,22-31; Romanos 5,1-5; João 16,12-15.
Existe uma história chamada “O frio
que vem de dentro”. Conta-se que seis homens ficaram presos numa caverna por
causa de uma avalanche de neve. Teriam que esperar até o amanhecer para receber
socorro. Cada um deles trazia um pouco de lenha e havia uma pequena fogueira,
ao redor da qual eles se aqueciam. Eles sabiam que, se o fogo apagasse, todos
morreriam de frio, antes que o dia clareasse. Chegou a hora de cada um colocar
sua lenha na fogueira. Era a única maneira de poderem sobreviver. O primeiro
homem era racista. Ele olhou demoradamente para os outros cinco e descobriu que
um deles tinha a pele escura. Então raciocinou consigo mesmo: “Aquele negro! Jamais
darei minha lenha para aquecer um negro!”. E guardou-a, protegendo-a dos
olhares dos demais. O segundo homem era um rico avarento. Ele olhou ao redor e
viu um homem da montanha que trazia sua pobreza no aspecto rude do semblante e
nas roupas velhas e remendadas. Ele calculava o valor da sua lenha e pensou: “Eu,
dar a minha lenha para aquecer um preguiçoso, nem pensar!”. O terceiro homem
era negro. Seus olhos faiscavam de ira e ressentimento. Não havia qualquer
sinal de perdão ou de resignação que o sofrimento ensina. Seu pensamento era
muito prático: “É bem provável que eu precise desta lenha para me defender. Além
disso, eu jamais daria da minha lenha para salvar aqueles que me oprimem!”. E
guardou sua lenha com cuidado. O quarto homem era um pobre da montanha. Ele
conhecia mais do que os outros os caminhos, os perigos e os segredos da neve. Esse
pensou: “Esta nevasca pode durar vários dias. Vou guardar minha lenha”. O
quinto homem parecia alheio a tudo. Olhando fixamente para as brasas, nem lhe
passou pela cabeça oferecer a lenha que carregava. Ele estava preocupado demais
com seus próprios pensamentos para dar-se conta de que poderia ser útil. O
último homem trazia nos vincos da testa e nas palmas calosas das mãos os sinais
de uma vida de trabalho. Seu raciocínio era curto e rápido: “Esta lenha é
minha. Custou o meu trabalho. Não darei a ninguém, nem mesmo o menor dos
gravetos!”. Com estes pensamentos, os seis homens permaneceram imóveis. A
última brasa da fogueira se cobriu de cinzas e, finalmente apagou. No alvorecer
do dia, quando os homens do socorro chegaram à caverna encontraram seis
cadáveres congelados, cada qual segurando um feixe de lenha. Olhando para
aquele triste quadro, o chefe da equipe de socorro disse: “O frio que os matou
não foi o frio de fora, mas o frio de dentro”.
Essa
história retrata o nosso tempo atual, marcado por um forte individualismo, pela
falta de vontade de doar-se ao outro, pela indiferença para com o próximo e
pela solidão que adoece cada vez mais pessoas. Diferente dessa história, o Pai,
o Filho e o Espírito Santo jamais “morreriam” de frio, porque a lenha que os
três possuem consigo se chama Amor. O Pai e o Filho se amam e se aquecem
mutuamente nesse amor, amor que se chama Espírito Santo. Segundo o apóstolo São
Paulo, “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que
nos foi dado” (Rm 5,5). A questão é saber se estamos deixando nos conduzir por
esse amor, que é o Espírito do Pai e do Filho em nós.
O
Deus em quem nós cremos nunca foi só e nunca esteve só. “No princípio”, o Filho
estava com o Pai: “Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo
1,1.3). Essa presença escondida de Jesus junto ao Pai aparece no livro dos
Provérbios como sendo a Sabedoria: “Desde a eternidade fui constituída, desde o
princípio, antes das origens da terra... Eu estava ao seu lado como
mestre-de-obras; eu era seu encanto, dia após dia, brincando, todo o tempo, em
sua presença, brincando na superfície da terra, e alegrando-me em estar com os
filhos dos homens".” (Pr 8,23.30-31). Tudo o que o Pai criou foi a partir
do Filho e em vista do Filho. O Filho é o encanto do Pai e sua alegria,
enquanto Filho, é estar junto aos seres humanos, seus irmãos.
O
Pai entregou ao Filho a tarefa de restaurar a criação, ferida e adoecida pelo
pecado. Essa restauração recebeu o nome de “justificação”. “Diante de ti,
nenhum ser vivente é justo” (Sl 143,2). O Filho nos deu na sua cruz a graça da
justificação. Não somos pessoas justas, impecáveis; somos pessoas justificadas,
perdoadas na cruz do Filho. Portanto, se recebemos do Filho a graça da
justificação, podemos estar em paz com o Pai. A graça da justificação iniciou
um processo em nós: estamos destinados a participar da glória, da comunhão de vida
e de amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Justamente
porque sabemos que estamos destinados à comunhão com o Pai, o Filho e o
Espírito Santo, podemos lidar com as tribulações da vida presente com alegria e
esperança, “sabendo que a tribulação gera a constância, a constância leva a uma
virtude provada, a virtude provada desabrocha em esperança” (Rm 5,3-4). A
tribulação não existe para nos fazer desanimar, mas para treinar em nós a
constância, a capacidade da resistência, da “suportação”, como diz o Papa
Francisco. Não nascemos capazes de constância, mas nos tornamos capazes dela
treinando, exercitando a nossa fé. A constância supõe entender a vida como um
processo que pede de nós perseverança, e não como algo que podemos mudar à
força e de maneira imediata.
A
constância deve gerar em nós “uma virtude comprovada”, ou seja, uma vontade
firme em nos tornarmos a pessoa que o Pai nos chamou a ser: pessoas configuradas
ao seu Filho. A virtude provada ou comprovada é como o arco e flecha: o arco
tensiona a corda para ter força suficiente de lançar a flecha e atingir o alvo.
E qual é o alvo? Ele se chama esperança – a força que nos faz transcender,
ultrapassar, enxergar a vida além do aqui e do agora. Essa esperança não é
humana, no sentido de que não nasce das nossas capacidades, mas sim de uma
certeza: o amor do Pai e do Filho foi derramado em nossos corações. Ele se
chama Espírito Santo, força do alto. Por isso, essa esperança jamais nos
decepciona, porque o Espírito Santo é a garantia da nossa redenção (cf. Ef
1,13-14; 4,30).
Celebrar
a nossa fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo é também abraçar a nossa tarefa
de sermos uma presença de comunhão onde há solidão, uma presença de amor onde há
ódio ou indiferença, uma presença de relação onde há isolamento; numa palavra a
tarefa de sermos presença onde há ausência. Há muito frio à nossa volta ameaçando
matar congelados ambientes, pessoas, famílias, relacionamentos, comunidades,
igrejas, cidades... Ofereçamos a lenha que a Santíssima Trindade nos deu, em
vista de aquecermos com o fogo do amor tudo aquilo que está se esfriando no
coração das pessoas à nossa volta.
Pe. Paulo Cezar Mazzi
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