quinta-feira, 9 de junho de 2022

O FOGO DO AMOR NOS FOI DADO PARA COMBATER O FRIO QUE VEM DE DENTRO

 Missa da Santíssima Trindade. Palavra de Deus: Provérbios 8,22-31; Romanos 5,1-5; João 16,12-15.

 

            Existe uma história chamada “O frio que vem de dentro”. Conta-se que seis homens ficaram presos numa caverna por causa de uma avalanche de neve. Teriam que esperar até o amanhecer para receber socorro. Cada um deles trazia um pouco de lenha e havia uma pequena fogueira, ao redor da qual eles se aqueciam. Eles sabiam que, se o fogo apagasse, todos morreriam de frio, antes que o dia clareasse. Chegou a hora de cada um colocar sua lenha na fogueira. Era a única maneira de poderem sobreviver. O primeiro homem era racista. Ele olhou demoradamente para os outros cinco e descobriu que um deles tinha a pele escura. Então raciocinou consigo mesmo: “Aquele negro! Jamais darei minha lenha para aquecer um negro!”. E guardou-a, protegendo-a dos olhares dos demais. O segundo homem era um rico avarento. Ele olhou ao redor e viu um homem da montanha que trazia sua pobreza no aspecto rude do semblante e nas roupas velhas e remendadas. Ele calculava o valor da sua lenha e pensou: “Eu, dar a minha lenha para aquecer um preguiçoso, nem pensar!”. O terceiro homem era negro. Seus olhos faiscavam de ira e ressentimento. Não havia qualquer sinal de perdão ou de resignação que o sofrimento ensina. Seu pensamento era muito prático: “É bem provável que eu precise desta lenha para me defender. Além disso, eu jamais daria da minha lenha para salvar aqueles que me oprimem!”. E guardou sua lenha com cuidado. O quarto homem era um pobre da montanha. Ele conhecia mais do que os outros os caminhos, os perigos e os segredos da neve. Esse pensou: “Esta nevasca pode durar vários dias. Vou guardar minha lenha”. O quinto homem parecia alheio a tudo. Olhando fixamente para as brasas, nem lhe passou pela cabeça oferecer a lenha que carregava. Ele estava preocupado demais com seus próprios pensamentos para dar-se conta de que poderia ser útil. O último homem trazia nos vincos da testa e nas palmas calosas das mãos os sinais de uma vida de trabalho. Seu raciocínio era curto e rápido: “Esta lenha é minha. Custou o meu trabalho. Não darei a ninguém, nem mesmo o menor dos gravetos!”. Com estes pensamentos, os seis homens permaneceram imóveis. A última brasa da fogueira se cobriu de cinzas e, finalmente apagou. No alvorecer do dia, quando os homens do socorro chegaram à caverna encontraram seis cadáveres congelados, cada qual segurando um feixe de lenha. Olhando para aquele triste quadro, o chefe da equipe de socorro disse: “O frio que os matou não foi o frio de fora, mas o frio de dentro”.

Essa história retrata o nosso tempo atual, marcado por um forte individualismo, pela falta de vontade de doar-se ao outro, pela indiferença para com o próximo e pela solidão que adoece cada vez mais pessoas. Diferente dessa história, o Pai, o Filho e o Espírito Santo jamais “morreriam” de frio, porque a lenha que os três possuem consigo se chama Amor. O Pai e o Filho se amam e se aquecem mutuamente nesse amor, amor que se chama Espírito Santo. Segundo o apóstolo São Paulo, “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). A questão é saber se estamos deixando nos conduzir por esse amor, que é o Espírito do Pai e do Filho em nós.

O Deus em quem nós cremos nunca foi só e nunca esteve só. “No princípio”, o Filho estava com o Pai: “Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,1.3). Essa presença escondida de Jesus junto ao Pai aparece no livro dos Provérbios como sendo a Sabedoria: “Desde a eternidade fui constituída, desde o princípio, antes das origens da terra... Eu estava ao seu lado como mestre-de-obras; eu era seu encanto, dia após dia, brincando, todo o tempo, em sua presença, brincando na superfície da terra, e alegrando-me em estar com os filhos dos homens".” (Pr 8,23.30-31). Tudo o que o Pai criou foi a partir do Filho e em vista do Filho. O Filho é o encanto do Pai e sua alegria, enquanto Filho, é estar junto aos seres humanos, seus irmãos.

O Pai entregou ao Filho a tarefa de restaurar a criação, ferida e adoecida pelo pecado. Essa restauração recebeu o nome de “justificação”. “Diante de ti, nenhum ser vivente é justo” (Sl 143,2). O Filho nos deu na sua cruz a graça da justificação. Não somos pessoas justas, impecáveis; somos pessoas justificadas, perdoadas na cruz do Filho. Portanto, se recebemos do Filho a graça da justificação, podemos estar em paz com o Pai. A graça da justificação iniciou um processo em nós: estamos destinados a participar da glória, da comunhão de vida e de amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Justamente porque sabemos que estamos destinados à comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, podemos lidar com as tribulações da vida presente com alegria e esperança, “sabendo que a tribulação gera a constância, a constância leva a uma virtude provada, a virtude provada desabrocha em esperança” (Rm 5,3-4). A tribulação não existe para nos fazer desanimar, mas para treinar em nós a constância, a capacidade da resistência, da “suportação”, como diz o Papa Francisco. Não nascemos capazes de constância, mas nos tornamos capazes dela treinando, exercitando a nossa fé. A constância supõe entender a vida como um processo que pede de nós perseverança, e não como algo que podemos mudar à força e de maneira imediata.

A constância deve gerar em nós “uma virtude comprovada”, ou seja, uma vontade firme em nos tornarmos a pessoa que o Pai nos chamou a ser: pessoas configuradas ao seu Filho. A virtude provada ou comprovada é como o arco e flecha: o arco tensiona a corda para ter força suficiente de lançar a flecha e atingir o alvo. E qual é o alvo? Ele se chama esperança – a força que nos faz transcender, ultrapassar, enxergar a vida além do aqui e do agora. Essa esperança não é humana, no sentido de que não nasce das nossas capacidades, mas sim de uma certeza: o amor do Pai e do Filho foi derramado em nossos corações. Ele se chama Espírito Santo, força do alto. Por isso, essa esperança jamais nos decepciona, porque o Espírito Santo é a garantia da nossa redenção (cf. Ef 1,13-14; 4,30).

Celebrar a nossa fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo é também abraçar a nossa tarefa de sermos uma presença de comunhão onde há solidão, uma presença de amor onde há ódio ou indiferença, uma presença de relação onde há isolamento; numa palavra a tarefa de sermos presença onde há ausência. Há muito frio à nossa volta ameaçando matar congelados ambientes, pessoas, famílias, relacionamentos, comunidades, igrejas, cidades... Ofereçamos a lenha que a Santíssima Trindade nos deu, em vista de aquecermos com o fogo do amor tudo aquilo que está se esfriando no coração das pessoas à nossa volta.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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