sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

A CONDUTA REVELA OS VALORES DA PESSOA

 Missa do 8º. dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 27,5-8; 1Coríntios 15,54-58; Lucas 6,39-45.

 

As redes sociais fizeram surgir um novo tipo de “pessoa” e até mesmo de “profissional” no mundo todo: o “influencer”, isto é, o influenciador. Normalmente, o influencer tem milhões de seguidores nas redes sociais, sobretudo no Instagram. Entre as onze pessoas mais influenciadoras do Brasil estão: 1º. Neymar Jr (jogador de futebol, com 169 milhões de seguidores); 3º. Anitta (cantora, com 59 milhões de seguidores) e 4º. Whindersson Nunes (humorista, com 57 milhões de seguidores).

Quem você segue nas redes sociais, sobretudo no Instagram? Por que você segue essa pessoa? O que ela inspira em você? Ela influencia você para o bem ou para o mal? Para uma vida autêntica ou para uma vida fútil, vazia e de mera aparência?

Jesus também foi um grande influenciador de pessoas. Mas ele fez um alerta muito importante a respeito dos influenciadores, a respeito daqueles que são seguidos diariamente por milhões de pessoas nas redes sociais: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?” (Lc 6,39). Como é que uma pessoa que sempre teve atitudes nocivas nos seus relacionamentos pode aconselhar alguém que está com problemas no seu relacionamento? Como é que uma pessoa fútil e vazia pode aconselhar alguém que está buscando um sentido para a sua vida? Como é que uma pessoa que sempre foi incapaz de lidar com a dor pode aconselhar alguém que está sofrendo? Como é que uma pessoa que não tem uma religião definida e ou que costura retalhos espirituais, misturando doutrina católica com doutrina evangélica, espírita, umbandista, budista, islâmica etc., pode ajudar alguém a se encontrar com o Deus vivo e verdadeiro, revelado nas Sagradas Escrituras?

Muitas pessoas estão caminhando na direção de um buraco, ou mesmo de um abismo, porque estão seguindo cegos, deixando-se influenciar por pessoas desorientadas, por influenciadores que trocaram a busca pela verdade pela busca pela fama; pessoas preocupadas com a estética, mas não com a ética; pessoas para as quais valores como honestidade, decência, humildade, fidelidade, simplicidade não significam absolutamente nada.

O sucesso de muitos influenciadores que são cegos guiando cegos se deve ao fato de sermos um País que favorece a ignorância e a preguiça de pensar. Em lugar de leitura de bons livros, joguinhos eletrônicos e séries; em lugar de filmes de qualidade que levem à reflexão, pornografia ou jogos de futebol; em lugar de letras de músicas que edificam, barulho eletrônico que propagam palavrões e agressões, tornando a violência "normal". E a verdade é que cada um se alimenta daquilo que tem fome: enquanto a maioria das pessoas se alimenta de coisas estragadas, envenenadas, intoxicadas, uma minoria rejeita esse tipo de lixo e busca alimentar-se de coisas que edificam e levam ao crescimento de si mesmas.    

Nossa consciência precisa funcionar como um filtro. Diante de tudo o que eu vejo, leio e ouço, preciso me perguntar se aquilo me edifica ou não, se aquilo contribui para a minha saúde ou para me adoecer mental e emocionalmente; se aquilo que aproxima de Deus ou me distancia d’Ele. O Eclesiástico afirmou que “o fruto revela como foi cultivada a árvore; assim, a palavra mostra o coração do homem” (Eclo 27,7). O fruto do qual estou me alimentando, ao ouvir palavras e ao ver imagens, é um fruto saudável ou doente, estragado, intoxicado? Do quê eu tenho me alimentado nas redes sociais? Eu filtro as palavras e as imagens que todos os dias chegam a mim, ou engulo tudo como se eu fosse um esgoto?

Jesus afirmou que “toda árvore é reconhecida pelos seus frutos” (Lc 6,44). Você só conhece uma pessoa prestando atenção não nas palavras que ela diz, nem na imagem que ela aparenta ou ostenta, mas na maneira como ela se comporta. Você só conhece uma pessoa observando como ela trata os outros, especialmente os mais desfavorecidos; como ela lida com a dor, com a doença, com a perda; como ela lida com o dinheiro, com a sexualidade e com a liberdade. Os antigos diziam que, para conhecermos uma pessoa, precisamos comer um quilo de sal com ela. O sal é comido um pouquinho por dia, no tempero dos alimentos. Portanto, conhecer uma pessoa exige muito tempo... Além disso, as postagens nas redes sociais nunca revelam quem é a pessoa; elas mostram apenas aquilo que a pessoa que mostrar: sua "casca", uma imagem maquiada e não verdadeira de si mesma.  

Por fim, Jesus nos fala da conexão que existe entre nossa boca (palavras) e nosso coração (consciência): “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45). De novo é preciso lembrar: nós não somos produto do meio em que nos encontramos; nós somos produto daquilo que decidimos dizer e fazer, não obstante a influência externa. Antes de uma palavra sair da minha boca, ela precisa passar pela minha consciência: o que eu vou dizer vai edificar alguém? Diante daquilo que os outros estão comentando, a minha opinião vai trazer esclarecimento ou causar mais confusão? Diante de uma discussão, o que vai favorecer o restabelecimento da paz: a minha palavra ou o meu silêncio?

Prestemos atenção ao que falamos no dia a dia. O nosso falar revela como está o nosso coração: se habitado pela paz ou pela guerra; pela esperança ou pelo desespero; por uma vida com sentido ou por uma vazia fútil, vazia, sem sentido... Prestemos atenção a quem estamos seguindo nas redes sociais: essa pessoa tem valores cristãos? Ela tem uma visão profunda ou superficial da vida? Ela me ajuda a enxergar além ou é apenas uma pessoa cega que está me levando para o mesmo buraco em que ela vive? O filtro da minha consciência precisa ser limpo, para que eu não engula sem discernimento alguém tudo o que ouço e vejo? Cada um se alimenta daquilo que tem fome: estou me alimentando de palavras e de imagens que favorecem minha saúde emocional e espiritual ou que alimentam em mim um estilo de vida doentio?  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

INIMIGOS A DESTRUIR OU IRMÃOS A RESGATAR?

 Missa do 7. dom. comum. Palavra de Deus: 1Samuel 26,2.7-9.12-13.22-23; 1Coríntios 15,45-49; Lucas 6,27-38.

 

            Quantos inimigos você tem na vida? Como surgem os inimigos? Eles podem surgir a partir de atitudes injustas da nossa parte. No entanto, algumas vezes nós “ganhamos” inimigos sem com que tenhamos feito algo de errado ou prejudicado alguém. Basta que você receba a função de liderar pessoas, ou de exercer um ministério (serviço) na Igreja; basta que você seja honesto, sincero e verdadeiro; basta que você diga “não” a alguém ou que pense diferente da outra pessoa; basta que você diga para uma pessoa aquilo que ela precisa ouvir, e não aquilo que ela quer ouvir: isso é suficiente para você “ganhar” um inimigo. “A verdade tem poucos amigos”, afirmou Santo Agostinho.

            Jesus também teve inimigos. Na verdade, ele nunca tratou alguém como inimigo, mas foi visto e tratado como inimigo sobretudo pelos fariseus, mestres da Lei e sumos sacerdotes. Em outras palavras, Jesus encontrou inimigos muito mais dentro da religião do que fora, no campo político, por exemplo. Assim como acontece conosco, Jesus precisou lidar com esse sentimento ruim que é a inimizade. Mas, antes de olharmos para a maneira como Jesus lidou com seus inimigos, olhemos para Davi, descrito biblicamente como “um homem segundo o coração de Deus” (cf. 1Sm 13,14).

            Por causa da inveja do rei Saul, Davi foi duramente perseguido e ameaçado de morte por este rei, e a cena que o texto bíblico nos traz hoje revela a maneira digna como Davi lidou com a inimizade de Saul. Por mero acaso, Davi encontra o rei Saul dormindo profundamente no deserto de Zif. Perto da cabeça de Saul está a sua lança, fincada no chão, e sua bilha d´água. Abisai, amigo de Davi, vê nessa situação a grande oportunidade que Davi tem de matar Saul e acabar com o sofrimento que padece, por causa da inimizade do rei: “Deus entregou hoje em tuas mãos o teu inimigo” (1Sm 26,8).

            O mais perigoso nessas palavras de Abisai é interpretar que a oportunidade de Davi matar seu inimigo foi providenciada por Deus! Aqui precisamos nos colocar no lugar de Davi: o que faríamos se tivéssemos a oportunidade de eliminar da nossa vida aquela pessoa que nos fez ou nos faz tanto mal? Até que ponto nós misturamos Deus com a nossa sede de vingança ou com o nosso ódio em relação aos nossos inimigos?

            Davi se recusou a fazer qualquer mal a Saul. Ao invés disso, ele pegou a lança e a bilha d’água, afastou-se bastante de Saul e gritou, acordando Saul e sua tropa, mostrando-lhes que, se ele quisesse, teria matado Saul enquanto ele dormia. Davi agiu assim justamente por ser “um homem segundo o coração de Deus”, e, como Jesus afirmou no Evangelho, “Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus” (Lc 6,35). Em outras palavras, o nosso Pai do Céu não tem inimigos a destruir na face da terra, mas filhos a resgatar da violência, do ódio, da inimizade que mata cega e injustamente.

            Olhando para Davi, eu preciso me perguntar se sou uma pessoa segundo o coração de Deus ou segundo o coração do mundo. O coração de Deus é movido pela compaixão, pela misericórdia e pela gratuidade: ama a todos, indistintamente, porque quer salvar a todos. O coração do mundo ama somente quem é igual a si e odeia o que é diferente. O coração do mundo é intolerante e vê as pessoas que são e pensam diferente dos outros como inimigos a serem mortos e eliminados.

Também o apóstolo Paulo nos pergunta: você é uma pessoa reduzida ao seu instinto natural ou também aberta à sua dimensão espiritual? A maneira como você lida com a raiva e com as pessoas que te perseguem e querem te destruir revela se você é apenas “natural” ou se deseja transcender e se tornar uma pessoa “espiritual”. O “natural” simplesmente “reage” ao que o afeta. Já o “espiritual”, diante daquilo que o afeta, consulta sua consciência e escolhe qual a melhor forma de “responder” àquilo que o está afetando. Se Davi fosse apenas um homem “natural”, teria eliminado Saul, mas, por ser também um homem “espiritual”, decidiu responder de uma outra maneira aos ataques de Saul, confirmando, desse modo, ser uma pessoa que escolheu viver segundo o coração de Deus.

            Voltemo-nos, enfim, para Jesus, ele que experimentou o ódio do mundo e que foi intensamente perseguido, atacado, agredido pelos seus inimigos: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam” (Lc 6,27-28). É humanamente impossível amar alguém que nos faz o mal. No entanto, Jesus entende por “amor” não um sentimento de afeto, mas uma atitude escolhida para com a pessoa que nos prejudica: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles” (Lc 6,31). Eu posso não ter controle sobre aquilo que o meu inimigo vai me fazer, mas eu tenho controle sobre a forma como lidar com o mal que a pessoa está me fazendo. Enquanto o homem “natural” simplesmente reage ao que recebe do outro, o homem “espiritual” escolhe responder ao que recebe a partir da sua consciência cristã, a partir do seu desejo de ser como Jesus, um homem verdadeiramente segundo o coração de Deus.

“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Ser misericordioso significa ter um coração que sente ou que se deixa afetar pela miséria do outro. A misericórdia faz com que eu reconheça que toda pessoa que me fere é uma pessoa que foi ferida por alguém e eu posso escolher repassar a ferida que eu recebi, alimentando o círculo vicioso da inimizade, ou escolher não me reduzir à ferida que eu recebi, mas transcender, ir além dela, e agir a partir do Espírito que me habita, o Espírito que é o amor de Deus derramado em meu coração (cf. Rm 5,5), amor que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera e tudo suporta” (1Cor 13,7), amor capaz de responder, e não simplesmente reagir, àquilo que o afeta.    

 

Oração: Senhor Jesus, teu Corpo crucificado derrubou o muro da inimizade que separava a humanidade de Deus e os homens entre si (cf. Ef 2,14-18) Concede-nos a força de transcender, de irmos além da mera reação diante daquilo que nos afeta para a liberdade de escolher a resposta que mais convém a nós, teus discípulos, diante dos nossos inimigos. Que o bálsamo do Espírito Santo seja derramado sobre as feridas que eles trazem dentro de si. Que o amor do Pai tome em nosso coração o lugar do ódio que nos adoece e nos desumaniza. Torna-nos a cada dia homens e mulheres segundo o coração de Deus, ajudando-nos a enxergar em cada ser humano não um inimigo a destruir, mas um irmão a resgatar na força da misericórdia do Pai. Amém.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

ONDE ESTÁ O FUNDAMENTO DA SUA VIDA?

 Missa do 6. dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 17,5-8; 1Coríntios 15,12.16-20; Lucas 6,17.20-26.

 

            Toda casa precisa de um alicerce, sobre o qual ser construída e permanecer estável, segura. Toda árvore precisa de raízes profundas, a partir das quais se alimentar e não tombar diante dos ventos contrários. Assim também nós, seres humanos, precisamos de um fundamento. Sem ele, somos engolidos pelo medo, pela insegurança, pela ansiedade, pelo sentimento de ameaça. Na verdade, toda pessoa escolhe alguma coisa ou alguém por fundamento, ainda que nem todos tenham consciência dessa escolha.

            Os textos bíblicos deste final de semana estão nos fazendo uma pergunta: Quem ou o quê eu escolho como fundamento para a minha vida? Em quem ou no quê eu me apoio para viver, sobretudo nesses tempos de forte insegurança e instabilidade?

            “Maldito o homem que confia no homem e faz consistir sua força na carne humana, enquanto o seu coração se afasta do Senhor” (Jr 17,5). O profeta Jeremias poderia ter suavizado essa verdade bíblica, substituindo a palavra “maldito” por “infeliz”. Mas, não. Para todos nós é preciso ficar claro: toda vez que eu escolho uma coisa fabricada pelo ser humano ou uma pessoa sobre a qual me apoiar para viver, eu não sou apenas um “infeliz”, um “iludido”, mas um “maldito”, isto é, uma pessoa desprovida de bênção.

            Propositalmente, Jeremias fala do apoio humano nesses termos: “faz consistir sua força na carne humana”. Todo ser humano é “carne” e tudo o que o ser humano cria, por mais sofisticado e potente que aparente ser, é apenas “carne”. Dizer que o ser humano é “carne” é lembrar que nós somos finitos, limitados, falhos, infiéis, instáveis, fracos, mortais; sobretudo, nós somos passíveis de apodrecimento. Exatamente no contexto em que vivemos, onde se faz de tudo não apenas para disfarçar a nossa carne, mas para negar que somos carne, a Sagrada Escritura nos confronta com essa verdade: "sua vida terrena é limitada, passível de apodrecimento, e um dia você deixará de existir na Terra".

            Onde você tem feito consistir a sua força? Quem ou o quê você tem escolhido por fundamento? Sua beleza? Sua inteligência? Seu corpo? Seu dinheiro? Seu sobrenome? Suas aplicações financeiras? Sua casa? Seu carro? Sua influência nas redes sociais? Tudo isso é carne; tudo isso apodrecerá com o tempo, aceite você esse fato ou não. Negar que somos carne é criar um mundo paralelo, uma realidade paralela, é mentir para si mesmo(a), é escolher viver na ilusão, e quem escolhe viver na ilusão cedo ou tarde vai se desiludir, vai cair na real, vai se confrontar com a verdade da sua própria carne.

            Jeremias nos torna conscientes da loucura que é uma vida pautada na mentira, na aparência, na ilusão: a pessoa é como uma planta que “prefere vegetar na secura do deserto, em região solitária e desabitada” (Jr 17,6). A pessoa parece uma planta viva, cheia de beleza e de vigor, mas, na verdade, é apenas uma planta artificial: não tem perfume, não produz fruto, não tem vida. A pessoa posta fotos nas redes sociais que aparentam alegria, felicidade, sucesso, realização, mas tudo isso é apenas uma casca, uma maquiagem; a verdade é que o interior dessa pessoa é habitado pelo vazio, pela solidão, pela mentira, pela incapacidade de lidar com sua realidade de ser “carne”. Ela quer mostrar para os outros que “vive” intensamente, quando, na verdade, apenas “vegeta”.

            Para quem crê em Deus, só existe um fundamento: “Bendito o homem que confia no Senhor, cuja esperança é o Senhor; é como a árvore plantada junto às águas (...); não teme a chegada do calor: sua folhagem mantém-se verde, (...) e nunca deixa de dar frutos” (Jr 17,7-8). Somente a pessoa que escolhe Deus por fundamento experimenta ser amparada e sustentada por Ele. Somente quando escolhemos lançar nossas raízes em Deus – o que significa viver um relacionamento profundo com Ele – é que podemos atravessar os momentos de calor, de estiagem, de seca, sem que nossas folhas murchem, pois Deus é descrito biblicamente como “Fonte de água viva” (Jr 2,13). Somente a pessoa que escolhe viver enraizada em Deus experimenta fecundidade (“nunca deixa de dar frutos” – Jr 17,8). Portanto, se grande parte das pessoas à nossa volta está tomada de insegurança e vive como “palha seca e dispersada pelo vento” (Sl 1,4), nós precisamos ajudá-las a buscarem Deus e a escolhê-Lo como fundamento para suas vidas.  

            Enquanto o profeta Jeremias usa imagens agrícolas para falar dos diferentes fundamentos que as pessoas escolhem para suas vidas, Jesus usa da desigualdade social para fazer o mesmo questionamento. De um lado, temos os pobres, os que passam fome, os que choram e os que são perseguidos por causa do Evangelho. Jesus afirma que essas pessoas são “bem-aventuradas”, felizes, porque elas não têm nenhuma coisa e nenhum ser humano por fundamento; apenas Deus e a esperança na Sua justiça (cf. Lc 6,20-22). Do outro lado, temos os ricos, os que têm fartura, os que são felizes devido aos bens materiais e os que são elogiados devido à fama, à sua vida “bem sucedida” (materialmente). A essas pessoas Jesus se dirige como o Juiz que julgará cada ser humano no fim de sua vida (cf. Rm 14,10-12; 2Cor 5,10): “Ai de vocês!”, “Pobres de vocês!”, “Iludidos são vocês!”, “Dignos de pena são vocês!” (cf. Lc 6,24-26).

            Segundo Jesus, fazer do dinheiro e dos bens materiais o fundamento da nossa vida é uma loucura, uma verdadeira idolatria, pois transformamos Deus num mero pronto-socorro a ser procurado apenas nos momentos de urgência, enquanto prestamos o nosso culto diária, religiosa e fielmente ao dinheiro e ao que ele pode nos dar. Jesus quer que tenhamos consciência de que a desigualdade social que há no mundo nunca foi desejada por Deus e muito menos produzida por Ele; ela é fruto da ambição desmedida do coração humano e, por causar inúmeras injustiças e sofrimentos na humanidade, Deus porá fim nela exatamente “invertendo” a situação. Essa inversão seria vingança? Não; apenas justiça. “O que nós esperamos, conforme sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13).

            Uma última palavra. Quando nossa Igreja se posiciona criticamente em relação às desigualdades sociais e trabalha por uma sociedade mais justa, ela não está sendo movida por uma ideologia de esquerda, mas buscando ser fiel ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Da mesma forma que é um erro “reduzir” o Evangelho a questões sociais – “Se é para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, nós somos - de todos os homens - os mais dignos de compaixão” (1Cor 15,19) –, também é um erro pensar que Deus nada tem a ver com elas. Tudo o que atinge a “carne” humana, atinge o coração de Deus, que, embora sendo Espírito (cf. Jo 4,24), “se fez carne” (cf. Jo 1,14) na Pessoa de seu Filho Jesus Cristo, em vista de resgatar o ser humano também na sua carnalidade.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

A PALAVRA DE DEUS ABRE HORIZONTES

 Missa do 5. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 6,1-2a.3-8; 1Coríntios 15,1-11; Lucas 5,1-11.

 

            Nós podemos compreender a nossa existência de duas maneiras: ou como fruto do acaso, como algo acidental, ou como uma vocação, um chamado. No primeiro caso, a vida fica desprovida de sentido; no segundo, ela ganha um sentido. Na verdade, a vida é portadora de um sentido que somos chamados a descobrir, a nos tornar conscientes. O sentido está fora de nós, numa tarefa a ser realizada.  

As três leituras bíblicas que ouvimos falam de vocação: a vocação do profeta Isaías, a do apóstolo Paulo e a dos quatro primeiros discípulos de Jesus: Simão Pedro e André, Tiago e João. A vocação de cada um deles é narrada para nos tornar conscientes de que a nossa existência não é fruto do acaso, não é algo acidental, mas fruto de um chamado: Deus nos chamou à existência para que, com a nossa vida, que é única, possamos dizer ao mundo uma palavra única d’Ele para a humanidade.

O chamado de Deus a Isaías se dá no Templo, durante uma celebração. Isaías ouve em sua consciência uma pergunta de Deus: “Quem enviarei? Quem irá por nós?” (Is 6,8). Essa pergunta continua hoje a ressoar: Quem enviarei junto às famílias desestruturadas? Quem enviarei junto aos doentes e sofredores? Quem enviarei junto às pessoas deprimidas e desanimadas? Quem enviarei junto aos adolescentes e jovens desorientados e aprisionados nas drogas? Quem enviarei junto aos que decidem os caminhos da política e da economia mundial? Quem enviarei para procurar aquele que está perdido e trazer de volta à vida aquele que se sente morto?

Isaías se deixou interpelar pela pergunta de Deus e teve a coragem de responder: “Aqui estou. Envia-me” (Is 6,8). Como está a nossa consciência diante do chamado de Deus? Durante nossas celebrações, nós nos deixamos interpelar pela Palavra de Deus? Diante de realidades gritantes à nossa volta, nós estamos ouvindo Deus nos questionar? “Aqui estou. Envia-me”. O nosso estar numa celebração não pode ser reduzido às nossas necessidades espirituais. Deus deseja nos “enviar” aonde devemos ir, em seu Nome, em nome do seu amor pela humanidade e da sua vontade de salvar cada ser humano.

Diferente do profeta Isaías, a vocação do apóstolo Paulo aconteceu num momento em que ele estava perseguindo os cristãos. Ele foi “gerado” como apóstolo “fora do tempo” em que Jesus formou os doze apóstolos. É por isso que ele se chama de “abortivo” (1Cor 15,8). Apesar de se sentir em “último lugar” no grupo dos apóstolos, Paulo tinha a consciência da grandeza da sua vocação e missão: “É pela graça de Deus que eu sou o que sou. Sua graça para comigo não foi estéril: a prova é que tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos - não propriamente eu, mas a graça de Deus comigo” (1Cor 15,10). Deus nos chama não a partir das nossas capacidades, muito menos dos nossos méritos. A vocação é graça, dom, e a graça de Deus respeita a nossa natureza, as nossas limitações. Ela conta, sobretudo, com a nossa liberdade de corresponder ou não ao que ela deseja realizar em nós e por meio de nós. “Sua graça para comigo não foi estéril”. Precisamos examinar a nossa consciência e perceber se a graça de Deus tem encontrado em nós abertura ou fechamento, docilidade ou resistência, colaboração ou obstrução.  

Olhemos, enfim, para o chamado dos quatro primeiros discípulos. Ele se deu no cotidiano da vida deles, enquanto trabalhavam como pescadores. Devido à numerosa multidão que o apertava, Jesus precisou da barca de Pedro para se afastar um pouco da margem e anunciar a Palavra de Deus. Hoje Jesus nos convida a nos afastar da margem, sinônimo de superficialidade, e nos aprofundar um pouco mais na escuta da sua Palavra. Ela precisa chegar ao profundo de cada um de nós. Mas não só isso: “da barca, ensinava as multidões”. Da nossa barca, da nossa vida, da nossa existência, Jesus deseja falar ao coração das pessoas que convivem conosco.

 Mas, será que a palavra de Jesus ainda tem algo de significativo a dizer a nós e às outras pessoas? “Quando acabou de falar, disse a Simão: ‘Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca’” (Lc 5,4). Simão e seus companheiros haviam trabalhado a noite toda inutilmente. A pesca havia sido um fracasso. Jesus, com sua palavra, provoca aqueles pescadores a lidarem de uma outra forma com o seu fracasso: “Avança para as águas mais profundas”. Simão Pedro, apesar de não ver sentido nenhum em fazer isso, decide obedecer à palavra de Jesus: “Em atenção à tua palavra, vou lançar as redes” (Lc 5,5).

“Assim fizeram, e apanharam tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam” (Lc 5,6). O coração do Evangelho que estamos meditando é a força da Palavra de Deus, “viva e eficaz” (Hb 4,12): as multidões se apertam para ouvi-la; Jesus sobe na barca para comunicá-la; Simão Pedro enfrenta o fracasso iluminado por ela; os peixes são atraídos para as redes a partir dela... Por fim, a vida daqueles quatro pescadores ganha um novo sentido quando Jesus diz a Simão Pedro: “De hoje em diante tu serás pescador de homens” (Lc 5,10). Enquanto pescar um peixe significa matá-lo, pescar homens (pessoas) significa capturá-las vivas, salvá-las, retirá-las de uma situação de morte.

Olhemos à nossa volta. Pessoas estão se afogando nos vícios, estão se sentindo submergidas por dores, sofrimentos e injustiças, estão sendo tragadas para o fundo do mar de uma vida autodestrutiva... Cada vez mais estamos conectados na Internet. A expressão “navegar na Internet” tornou-se comum. “Net” significa “rede”. Como alcançar, com a rede do Evangelho, as novas gerações? As pessoas do nosso tempo precisam ser alcançadas pela Palavra de Jesus, Palavra que “resgata vivo” quem está afundando no mar da morte. Seja individualmente enquanto cristãos, seja no âmbito comunitário, paroquial, pastoral, precisamos aceitar o desafio de Jesus: “É preciso pescar diferente” (Pe. Zezinho). “Há muito trabalho a ser feito fora dos mares tranquilos das sacristias, que cheiram a mofo” (Pe. Adroaldo). É preciso avançar para as águas mais profundas. É preciso abraçar a nossa própria vocação de “pescadores de homens”, de resgatadores de pessoas.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi