Missa do 7. dom. comum. Palavra de Deus: 1Samuel 26,2.7-9.12-13.22-23; 1Coríntios 15,45-49; Lucas 6,27-38.
Quantos inimigos você tem na vida? Como
surgem os inimigos? Eles podem surgir a partir de atitudes injustas da nossa
parte. No entanto, algumas vezes nós “ganhamos” inimigos sem com que tenhamos
feito algo de errado ou prejudicado alguém. Basta que você receba a função de
liderar pessoas, ou de exercer um ministério (serviço) na Igreja; basta que
você seja honesto, sincero e verdadeiro; basta que você diga “não” a alguém ou
que pense diferente da outra pessoa; basta que você diga para uma pessoa aquilo
que ela precisa ouvir, e não aquilo que ela quer ouvir: isso é suficiente para
você “ganhar” um inimigo. “A verdade tem poucos amigos”, afirmou Santo
Agostinho.
Jesus também teve inimigos. Na
verdade, ele nunca tratou alguém como inimigo, mas foi visto e tratado como
inimigo sobretudo pelos fariseus, mestres da Lei e sumos sacerdotes. Em outras
palavras, Jesus encontrou inimigos muito mais dentro da religião do que fora,
no campo político, por exemplo. Assim como acontece conosco, Jesus precisou
lidar com esse sentimento ruim que é a inimizade. Mas, antes de olharmos para a
maneira como Jesus lidou com seus inimigos, olhemos para Davi, descrito biblicamente
como “um homem segundo o coração de Deus” (cf. 1Sm 13,14).
Por causa da inveja do rei Saul,
Davi foi duramente perseguido e ameaçado de morte por este rei, e a cena que o
texto bíblico nos traz hoje revela a maneira digna como Davi lidou com a
inimizade de Saul. Por mero acaso, Davi encontra o rei Saul dormindo
profundamente no deserto de Zif. Perto da cabeça de Saul está a sua lança,
fincada no chão, e sua bilha d´água. Abisai, amigo de Davi, vê nessa situação a
grande oportunidade que Davi tem de matar Saul e acabar com o sofrimento que
padece, por causa da inimizade do rei: “Deus entregou hoje em tuas mãos o teu
inimigo” (1Sm 26,8).
O mais perigoso nessas palavras de
Abisai é interpretar que a oportunidade de Davi matar seu inimigo foi providenciada
por Deus! Aqui precisamos nos colocar no lugar de Davi: o que faríamos se
tivéssemos a oportunidade de eliminar da nossa vida aquela pessoa que nos fez
ou nos faz tanto mal? Até que ponto nós misturamos Deus com a nossa sede de
vingança ou com o nosso ódio em relação aos nossos inimigos?
Davi se recusou a fazer qualquer mal
a Saul. Ao invés disso, ele pegou a lança e a bilha d’água, afastou-se bastante
de Saul e gritou, acordando Saul e sua tropa, mostrando-lhes que, se ele
quisesse, teria matado Saul enquanto ele dormia. Davi agiu assim justamente por
ser “um homem segundo o coração de Deus”, e, como Jesus afirmou no Evangelho, “Deus
é bondoso também para com os ingratos e os maus” (Lc 6,35). Em outras palavras,
o nosso Pai do Céu não tem inimigos a destruir na face da terra, mas filhos a
resgatar da violência, do ódio, da inimizade que mata cega e injustamente.
Olhando para Davi, eu preciso me
perguntar se sou uma pessoa segundo o coração de Deus ou segundo o coração do
mundo. O coração de Deus é movido pela compaixão, pela misericórdia e pela
gratuidade: ama a todos, indistintamente, porque quer salvar a todos. O coração
do mundo ama somente quem é igual a si e odeia o que é diferente. O coração do
mundo é intolerante e vê as pessoas que são e pensam diferente dos outros como
inimigos a serem mortos e eliminados.
Também
o apóstolo Paulo nos pergunta: você é uma pessoa reduzida ao seu instinto
natural ou também aberta à sua dimensão espiritual? A maneira como você lida
com a raiva e com as pessoas que te perseguem e querem te destruir revela se
você é apenas “natural” ou se deseja transcender e se tornar uma pessoa “espiritual”.
O “natural” simplesmente “reage” ao que o afeta. Já o “espiritual”, diante
daquilo que o afeta, consulta sua consciência e escolhe qual a melhor forma de “responder”
àquilo que o está afetando. Se Davi fosse apenas um homem “natural”, teria
eliminado Saul, mas, por ser também um homem “espiritual”, decidiu responder de
uma outra maneira aos ataques de Saul, confirmando, desse modo, ser uma pessoa
que escolheu viver segundo o coração de Deus.
Voltemo-nos, enfim, para Jesus, ele
que experimentou o ódio do mundo e que foi intensamente perseguido, atacado,
agredido pelos seus inimigos: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que
vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam”
(Lc 6,27-28). É humanamente impossível amar alguém que nos faz o mal. No
entanto, Jesus entende por “amor” não um sentimento de afeto, mas uma atitude
escolhida para com a pessoa que nos prejudica: “O que vós desejais que os
outros vos façam, fazei-o também vós a eles” (Lc 6,31). Eu posso não ter
controle sobre aquilo que o meu inimigo vai me fazer, mas eu tenho controle sobre
a forma como lidar com o mal que a pessoa está me fazendo. Enquanto o homem “natural”
simplesmente reage ao que recebe do outro, o homem “espiritual” escolhe responder
ao que recebe a partir da sua consciência cristã, a partir do seu desejo de ser
como Jesus, um homem verdadeiramente segundo o coração de Deus.
“Sede
misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Ser misericordioso
significa ter um coração que sente ou que se deixa afetar pela miséria do
outro. A misericórdia faz com que eu reconheça que toda pessoa que me fere é
uma pessoa que foi ferida por alguém e eu posso escolher repassar a ferida que
eu recebi, alimentando o círculo vicioso da inimizade, ou escolher não me
reduzir à ferida que eu recebi, mas transcender, ir além dela, e agir a partir
do Espírito que me habita, o Espírito que é o amor de Deus derramado em meu
coração (cf. Rm 5,5), amor que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera e tudo
suporta” (1Cor 13,7), amor capaz de responder, e não simplesmente reagir, àquilo
que o afeta.
Oração:
Senhor Jesus, teu Corpo crucificado derrubou o muro da inimizade que separava a
humanidade de Deus e os homens entre si (cf. Ef 2,14-18) Concede-nos a força de
transcender, de irmos além da mera reação diante daquilo que nos afeta para a
liberdade de escolher a resposta que mais convém a nós, teus discípulos, diante
dos nossos inimigos. Que o bálsamo do Espírito Santo seja derramado sobre as
feridas que eles trazem dentro de si. Que o amor do Pai tome em nosso coração o
lugar do ódio que nos adoece e nos desumaniza. Torna-nos a cada dia homens e
mulheres segundo o coração de Deus, ajudando-nos a enxergar em cada ser humano
não um inimigo a destruir, mas um irmão a resgatar na força da misericórdia do
Pai. Amém.
Pe.
Paulo Cezar Mazzi
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