quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

INIMIGOS A DESTRUIR OU IRMÃOS A RESGATAR?

 Missa do 7. dom. comum. Palavra de Deus: 1Samuel 26,2.7-9.12-13.22-23; 1Coríntios 15,45-49; Lucas 6,27-38.

 

            Quantos inimigos você tem na vida? Como surgem os inimigos? Eles podem surgir a partir de atitudes injustas da nossa parte. No entanto, algumas vezes nós “ganhamos” inimigos sem com que tenhamos feito algo de errado ou prejudicado alguém. Basta que você receba a função de liderar pessoas, ou de exercer um ministério (serviço) na Igreja; basta que você seja honesto, sincero e verdadeiro; basta que você diga “não” a alguém ou que pense diferente da outra pessoa; basta que você diga para uma pessoa aquilo que ela precisa ouvir, e não aquilo que ela quer ouvir: isso é suficiente para você “ganhar” um inimigo. “A verdade tem poucos amigos”, afirmou Santo Agostinho.

            Jesus também teve inimigos. Na verdade, ele nunca tratou alguém como inimigo, mas foi visto e tratado como inimigo sobretudo pelos fariseus, mestres da Lei e sumos sacerdotes. Em outras palavras, Jesus encontrou inimigos muito mais dentro da religião do que fora, no campo político, por exemplo. Assim como acontece conosco, Jesus precisou lidar com esse sentimento ruim que é a inimizade. Mas, antes de olharmos para a maneira como Jesus lidou com seus inimigos, olhemos para Davi, descrito biblicamente como “um homem segundo o coração de Deus” (cf. 1Sm 13,14).

            Por causa da inveja do rei Saul, Davi foi duramente perseguido e ameaçado de morte por este rei, e a cena que o texto bíblico nos traz hoje revela a maneira digna como Davi lidou com a inimizade de Saul. Por mero acaso, Davi encontra o rei Saul dormindo profundamente no deserto de Zif. Perto da cabeça de Saul está a sua lança, fincada no chão, e sua bilha d´água. Abisai, amigo de Davi, vê nessa situação a grande oportunidade que Davi tem de matar Saul e acabar com o sofrimento que padece, por causa da inimizade do rei: “Deus entregou hoje em tuas mãos o teu inimigo” (1Sm 26,8).

            O mais perigoso nessas palavras de Abisai é interpretar que a oportunidade de Davi matar seu inimigo foi providenciada por Deus! Aqui precisamos nos colocar no lugar de Davi: o que faríamos se tivéssemos a oportunidade de eliminar da nossa vida aquela pessoa que nos fez ou nos faz tanto mal? Até que ponto nós misturamos Deus com a nossa sede de vingança ou com o nosso ódio em relação aos nossos inimigos?

            Davi se recusou a fazer qualquer mal a Saul. Ao invés disso, ele pegou a lança e a bilha d’água, afastou-se bastante de Saul e gritou, acordando Saul e sua tropa, mostrando-lhes que, se ele quisesse, teria matado Saul enquanto ele dormia. Davi agiu assim justamente por ser “um homem segundo o coração de Deus”, e, como Jesus afirmou no Evangelho, “Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus” (Lc 6,35). Em outras palavras, o nosso Pai do Céu não tem inimigos a destruir na face da terra, mas filhos a resgatar da violência, do ódio, da inimizade que mata cega e injustamente.

            Olhando para Davi, eu preciso me perguntar se sou uma pessoa segundo o coração de Deus ou segundo o coração do mundo. O coração de Deus é movido pela compaixão, pela misericórdia e pela gratuidade: ama a todos, indistintamente, porque quer salvar a todos. O coração do mundo ama somente quem é igual a si e odeia o que é diferente. O coração do mundo é intolerante e vê as pessoas que são e pensam diferente dos outros como inimigos a serem mortos e eliminados.

Também o apóstolo Paulo nos pergunta: você é uma pessoa reduzida ao seu instinto natural ou também aberta à sua dimensão espiritual? A maneira como você lida com a raiva e com as pessoas que te perseguem e querem te destruir revela se você é apenas “natural” ou se deseja transcender e se tornar uma pessoa “espiritual”. O “natural” simplesmente “reage” ao que o afeta. Já o “espiritual”, diante daquilo que o afeta, consulta sua consciência e escolhe qual a melhor forma de “responder” àquilo que o está afetando. Se Davi fosse apenas um homem “natural”, teria eliminado Saul, mas, por ser também um homem “espiritual”, decidiu responder de uma outra maneira aos ataques de Saul, confirmando, desse modo, ser uma pessoa que escolheu viver segundo o coração de Deus.

            Voltemo-nos, enfim, para Jesus, ele que experimentou o ódio do mundo e que foi intensamente perseguido, atacado, agredido pelos seus inimigos: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam” (Lc 6,27-28). É humanamente impossível amar alguém que nos faz o mal. No entanto, Jesus entende por “amor” não um sentimento de afeto, mas uma atitude escolhida para com a pessoa que nos prejudica: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles” (Lc 6,31). Eu posso não ter controle sobre aquilo que o meu inimigo vai me fazer, mas eu tenho controle sobre a forma como lidar com o mal que a pessoa está me fazendo. Enquanto o homem “natural” simplesmente reage ao que recebe do outro, o homem “espiritual” escolhe responder ao que recebe a partir da sua consciência cristã, a partir do seu desejo de ser como Jesus, um homem verdadeiramente segundo o coração de Deus.

“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Ser misericordioso significa ter um coração que sente ou que se deixa afetar pela miséria do outro. A misericórdia faz com que eu reconheça que toda pessoa que me fere é uma pessoa que foi ferida por alguém e eu posso escolher repassar a ferida que eu recebi, alimentando o círculo vicioso da inimizade, ou escolher não me reduzir à ferida que eu recebi, mas transcender, ir além dela, e agir a partir do Espírito que me habita, o Espírito que é o amor de Deus derramado em meu coração (cf. Rm 5,5), amor que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera e tudo suporta” (1Cor 13,7), amor capaz de responder, e não simplesmente reagir, àquilo que o afeta.    

 

Oração: Senhor Jesus, teu Corpo crucificado derrubou o muro da inimizade que separava a humanidade de Deus e os homens entre si (cf. Ef 2,14-18) Concede-nos a força de transcender, de irmos além da mera reação diante daquilo que nos afeta para a liberdade de escolher a resposta que mais convém a nós, teus discípulos, diante dos nossos inimigos. Que o bálsamo do Espírito Santo seja derramado sobre as feridas que eles trazem dentro de si. Que o amor do Pai tome em nosso coração o lugar do ódio que nos adoece e nos desumaniza. Torna-nos a cada dia homens e mulheres segundo o coração de Deus, ajudando-nos a enxergar em cada ser humano não um inimigo a destruir, mas um irmão a resgatar na força da misericórdia do Pai. Amém.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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