quinta-feira, 27 de agosto de 2020

SEGUIR A CRISTO POR INTEIRO, NÃO APENAS NA PARTE AGRADÁVEL

 

Missa do 22º dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 20,7-9; Romanos 12,1-2; Mateus 16,21-27

 

Ouçamos o desabafo do profeta Jeremias: “A palavra do Senhor tornou-se para mim fonte de vergonha e de chacota o dia inteiro” (Jr 20,8). Hoje nós podemos ouvir desabafos semelhantes: “Participar da Igreja tornou-se para mim causa de vergonha e de chacota”; ou então, “Seguir Jesus Cristo, isto é, procurar viver como cristão, só me trouxe sofrimento e humilhação”; ou ainda, “Defender os valores do Evangelho só me traz críticas e desprezo por parte de outras pessoas”.

O desabafo de Jeremias, atual na vida de muitos cristãos, nos faz perguntar sobre o que fazer quando o caminho da fé se transforma num caminho de sofrimento. É verdade que todo ser humano sofre, mas é verdade também que o sofrimento se intensifica na vida de uma pessoa que deseja seguir Jesus Cristo e viver segundo os valores do Evangelho, uma vez que o mundo em que vivemos distancia-se cada vez mais dos valores propostos por Jesus. Para evitar tal sofrimento, para evitar sofrer a rejeição do mundo, muitos cristãos deixam de manifestar sua fé, guardando-a somente para si e procurando se adaptar ao estilo de vida do mundo atual.

Se essa postura nos ajuda a sermos poupados de críticas e de perseguições por parte dos que não são cristãos, ela vai no sentido contrário ao que o Senhor nos pede na sua Palavra: “Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, isto é, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito” (Rm 12,2). Como cristãos, precisamos nos lembrar de que estamos no mundo, mas não somos do mundo. Nosso pior erro é nos “conformar” com o mundo, ou seja, permitir que o mundo nos “deforme”, distanciando nossa consciência dos valores do Evangelho.

Diversas vezes, o Papa Francisco já nos alertou sobre o “mundanismo espiritual”. “O mundanismo – explica o Papa – é uma proposta de vida, é uma cultura do efêmero, uma cultura do aparecer, da maquiagem, uma cultura do ‘hoje sim, amanhã não’, uma cultura que não sabe o que é fidelidade, porque muda segundo as circunstâncias, negocia tudo. É uma cultura sem fidelidade, um modo de viver também de muitos que se dizem cristãos. São cristãos, mas são mundanos” (Homilia, 16/05/2020). Sendo uma ameaça a todas as igrejas, o mundanismo espiritual tem como objetivo principal deformar a imagem de Deus em nós. É por isso que o Evangelho de hoje se propõe restaurar a verdadeira imagem de Jesus diante de nós.

Surpreendentemente, encontramos o mundanismo espiritual presente já nos discípulos de Jesus, sendo Pedro seu principal expoente. Diante da revelação de que Jesus “devia” sofrer muito, ser rejeitado, morrer e ressuscitar ao terceiro dia, Pedro reagiu imediatamente, afirmando a Jesus que o sofrimento não somente pode, mas, sobretudo, deve ser evitado. Em outras palavras, Pedro formou para si uma imagem de Jesus forte, glorioso, vencedor, um Jesus sem dor, sem sofrimento, sem morte, sem cruz.

Assim como Pedro, nós também temos uma imagem deformada de Jesus. Essa imagem deformada foi muito bem descrita pelo Pe. Zezinho, ao afirmar: “Não querem Jesus, querem a parte suave de Jesus. Não querem o Cristo, querem a parte agradável do Cristo. Não querem a cruz, querem a parte menos dolorosa da cruz. Não querem o manto, querem a parte mais bonita daquele manto. Não querem a Bíblia, querem parte dela: a que prova que estão certos. Assim agem muitos cristãos. Assim talvez nós ajamos” (Pe. Zezinho, Cristo aos pedaços).

Que Pedro fosse um exemplo de “mundanismo espiritual” fica claro nessas palavras de Jesus: “Você não pensa as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens” (Mt 16,24). Deus vê a vida a partir de um sentido, de um objetivo, de uma missão; os homens veem a vida a partir do próprio bem estar egoísta, em nome do qual todo sofrimento deve ser evitado, toda dor deve ser anestesiada e toda cruz deve ser eliminada. Ora, se Jesus abraçou a sua cruz não foi por gostar do sofrimento, mas por causa do seu “deve”: “Eu devo enfrentar isso, se quero ser coerente com aquilo que acredito”. Na vida de cada um de nós sempre vai existir um “devo”: é aquele sofrimento que devemos enfrentar se quisermos ser uma pessoa autêntica, inteira, livre, curada.

Eis porque Jesus faz esse alerta a todas as pessoas, indistintamente: “quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 16,25). Quem não supera seu comodismo e seu instinto de preservação e só procura por caminhos fáceis, onde não haja sofrimento, não chegará a lugar algum. Quem só vive em função de si e dos seus desejos egoístas passará pela vida como um ser humano atrofiado, uma pessoa que jamais encontrou sentido para sua própria vida. O sentido da nossa vida não está em nós mesmos, mas em algo fora de nós, algo que pede para ser abraçado como uma missão, missão que só nós podemos realizar.

Numa época de forte repulsa à cruz e de rejeição à dor e ao sofrimento, Jesus nos desafia a percorrer um caminho de amadurecimento, tornando-nos pessoas que se libertaram do seu próprio egoísmo para abraçar a missão que a vida nos confiou, uma missão que nos coloca diante do nosso “devo”, do sofrimento que nos cabe enfrentar e da cruz que nos cabe carregar como consequência de uma vida autêntica e plena de sentido.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

FÉ É UMA QUESTÃO DE RELACIONAMENTO

 Missa do 21. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 22,19-23; Romanos 11,33-36; Mateus 16,13-20.

 

Muitos de nós, cristãos, procuramos por Jesus porque esperamos encontrar nele respostas para a nossa vida. No passado, muitos cristãos se colocaram no seguimento de Jesus porque esperavam algo dele. Mas Jesus entende que, de tempos em tempos, é importante fazermos uma parada em nosso caminho de fé e nos deixarmos questionar: Quem ele é para nós? O que esperamos dele? Por que nos identificamos como cristãos? Se hoje muitas pessoas desistem de seguir Jesus, por que nós continuamos a segui-lo? Se muitas pessoas decidiram sair da Igreja, por que nós continuamos a pertencer a ela?

Todas as vezes que a pessoa de Jesus Cristo é vulgarizada, ridicularizada ou atacada por alguém, sobretudo na mídia, assim como todas as vezes que a Igreja Católica ou mesmo o cristianismo é criticado ou combatido por alguém, Jesus volta a nos perguntar: “E pra você, quem eu sou?”. Ao nos perguntar isso, ele está nos convidando a revisar o nosso relacionamento com a sua pessoa: nosso cristianismo é um seguimento cego ou irracional de doutrinas religiosas ou é um relacionamento pessoal e profundo com a pessoa do Filho do Deus vivo?

O apóstolo Paulo afirmava: “Sei em quem coloquei a minha fé” (2Tm 1,12). Nós ainda hoje colocamos a nossa fé em Jesus Cristo? Apesar de ele ultrapassar nossos esquemas e nossos conceitos e nem sempre corresponder às nossas expectativas, nós continuamos a colocar nele a nossa fé? Apesar dos escândalos, dos contratestemunhos de alguns católicos e das falhas humanas da Igreja que Jesus fundou sobre os apóstolos, nós continuamos a dizer “creio na Igreja Católica”?

Diante da pergunta: “E para vocês, quem eu sou?”, Pedro respondeu: “Tu és o Cristo (Messias), o filho do Deus vivo” (Mt 16,16). Jesus é o Messias prometido por Deus ao seu povo. Ele é o Filho do Deus vivo, habitando entre nós. Ele é o Salvador do mundo (cf. Jo 4,42). Ele é o nosso Médico (cf. Mt 9,12). Ele é a Verdade (cf. Jo 14,6). Ele é fonte de Água viva (cf. Jo 4,10; 7,37-38). Ele é o Pão vivo (cf. Jo 6,35.51). Ele é a Porta (cf. Jo 10,9). Ele é a Luz do mundo (cf. Jo 8,12). Ele é o verdadeiro Pastor (cf. Jo 10,11.14). Ele é a Videira verdadeira (cf. Jo 15,1). Ele é a Ressurreição e a Vida (cf. Jo 11,25). Todas essas respostas, nós as encontramos nos Evangelhos. Mas a questão principal é: Jesus está no centro da nossa vida? Ele é a pessoa com a qual nos relacionamos todos os dias?

“Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (Mt 16,17). Só o Pai pode nos revelar seu Filho: “Ninguém vem a mim (crê em mim), se o Pai que me enviou não o atrair” (Jo 6,44). Só a graça do Pai pode atrair nosso coração, nossos afetos e nossos pensamentos para a pessoa de Jesus Cristo. Portanto, crer em Jesus não é uma questão de mera vontade ou esforço humano, mas uma graça concedida pelo Pai, uma moção interior do Espírito Santo: “Ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’ a não ser no Espírito Santo” (1Cor 12,3). Sem uma experiência interior com a pessoa de Jesus Cristo, aos poucos deixaremos de ser cristãos, porque isso não terá mais sentido para nós.  

Jesus é o Salvador do mundo. Eu tenho consciência de que preciso ser salvo? Jesus é o Médico dos corpos e das almas. Eu me reconheço doente? Eu permito que ele me cure? Jesus é a Verdade. Eu permito que sua Verdade revele o mal que as minhas mentiras me causam? Jesus é fonte de Água viva. Eu busco essa fonte todos os dias, para saciar minha sede de sentido de vida? Jesus é o Pão vivo. Eu tenho fome desse Pão? Eu alimento minha fé? Jesus é a Porta. Eu me esforço por entrar pela Porta estreita do Evangelho? Jesus é a Luz do mundo. Eu desejo caminhar sob a sua luz? Jesus é o verdadeiro Pastor. Eu me deixo conduzir por sua voz em minha consciência? Jesus é a Videira verdadeira. Eu procuro permanecer ligado a esse tronco, para receber dele a seiva do Espírito Santo todos os dias? Jesus é a Ressurreição e a Vida. Eu creio nele para além da dor da morte? Eu me apoio nele diante da dor da perda de pessoas que eu amo?   

Se nós reconhecemos ou não quem Jesus é, isso não muda nada nele, mas pode mudar tudo em nossa vida. Santo Agostinho afirmava: “Quando você se afasta do fogo, ele continua aceso e aquecendo, mas você se esfria. Quando você se afasta da luz, ela continua brilhando, mas você se cobre de escuridão. O mesmo acontece quando você se afasta de Deus”. Podemos também entender que não responder quem Jesus é para nós não vai mudar nada no que ele é, mas vai fazer nossa fé perder o sentido com o passar do tempo, porque, como vimos, da resposta a essa pergunta depende o nosso relacionamento com ele. Tenhamos, portanto, a coragem de nos confrontar com essa pergunta, para que ela atualize a nossa fé e dê um sentido novo e mais profundo ao nosso relacionamento com Jesus.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

O TEMPO DO COMBATE É TAMBÉM O TEMPO EM QUE A PODEROSA MÃO DE DEUS NOS SOCORRE

 Missa da Assunção de Maria. Palavra de Deus: Apocalipse 11,19a; 12,1-6a.10ab. 1Coríntios 15,20-26.28; Lucas 1,39-56

           

            Qual será o ponto final da história terrena de cada um de nós? O ponto final da história terrena de Jesus foi a sua ascensão ao céu, a sua subida, a sua elevação até junto de Deus Pai. Pelo fato de Maria estar unida ao seu Filho desde o momento da concepção, passando por sua vida pública e terminando na cruz, nossa Igreja acredita que, no momento da sua morte, Maria foi assunta, isto é, foi elevada em corpo e alma ao céu. Por que “em corpo e alma” e não somente “em alma”? Porque o corpo de Maria foi um corpo sem a mancha do pecado, preparado por Deus desde toda a eternidade para gerar seu Filho Jesus. “Sendo Maria a ‘cheia de graça’, sem sombra alguma de pecado, quis o Pai associá-la à ressurreição de Jesus” (Missal dominical).

            Mas o que o dogma (afirmação de fé) da Assunção de Nossa Senhora tem a nos dizer? Esse dogma aponta para a “meta final da redenção: a glorificação da humanidade em Cristo. Maria chama hoje os cristãos a se considerarem inseridos na história da salvação e destinados a conformar-se a Cristo na glória... É a mãe que nos espera e convida a caminhar para o reino de Deus” (Missal dominical). Desse modo, podemos entender que o ponto final da nossa história terrena é a nossa glorificação em Cristo. Embora já tenhamos sido salvos por Jesus, nós somos, enquanto Igreja, aquela Mulher grávida que grita em dores de parto. Somos homens e mulheres grávidos de sonhos e de esperanças. Trabalhamos e lutamos diariamente para gerar justiça, reconciliação e libertação para a humanidade, mesmo sabendo que no mundo em que vivemos age o dragão do mal, tentando devorar aquilo que com tanto esforço geramos.  

            Maria nos convida a confiar na intervenção de Deus na história humana. Justamente porque “sua misericórdia se estende de geração em geração, sobre aqueles que o temem” (Lc 1,50), Deus volta seus olhos para os pequenos e humilhados, como “olhou para a humilhação de sua serva” (Lc 1,47). Agindo com a força do seu braço, Ele salva o Filho que nasceu em meio a grandes dores de parto, impedindo que o dragão do mal o devore (cf. Ap 12,5). Isso significa que, se o maligno nos persegue e nos ataca por sermos cristãos, devemos saber que pertencemos a Deus e, justamente no momento mais crítico, onde o mal parece estar muito próximo da vitória, ali Deus intervém e nos salva como seu povo. Portanto, essa imagem do Apocalipse quer nos tornar conscientes de que o mundo sempre será para nós, cristãos, o lugar do combate, da ameaça, de uma fidelidade custosa, o tempo em que o mal parece prevalecer nos seus ataques, mas, sobretudo, é o tempo em que a poderosa mão de Deus nos socorre, nos protege e nos impede de sermos alcançados pelo mal.

            Neste terceiro domingo do mês vocacional, lembramos e rezamos pelas vocações religiosas, por tantas mulheres e tantos homens que escolheram não se casar por amor ao Reino de Deus (cf. Mt 19,12). A vocação à vida consagrada é um chamado a amar: “amar a Deus acima de todas as criaturas (de todo coração, de toda a alma e com todas as forças) para amar com o coração e a liberdade de Deus cada criatura, sem se ligar a nenhuma e sem excluir alguma, amando em particular quem é mais tentado a não se sentir amável ou, de fato, não é amado” (Amedeo Cencini, Virgindade e Celibato hoje). Numa época em que o amor foi reduzido a uma busca egoísta de afeto para preencher as próprias carências, a mulher religiosa e o homem religioso testemunham o amor de Deus, que escolheu amar preferencialmente aqueles que o mundo não ama.  

Também hoje, celebra-se em muitas paróquias e comunidades o encerramento da Semana da Família. De maneira bela e profunda, o Papa Francisco encerra a sua Exortação Apostólica sobre “A alegria do amor” afirmando que “nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar... Deixemos de pretender das relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções e uma coerência que só poderemos encontrar no Reino definitivo... Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida” (AL 325).

 

ORAÇÃO À SAGRADA FAMÍLIA

 

“Jesus, Maria e José, em Vós contemplamos o esplendor do verdadeiro amor, confiantes, a Vós nos consagramos. Sagrada Família de Nazaré, tornai também as nossas famílias lugares de comunhão e cenáculos de oração, autênticas escolas do Evangelho e pequenas igrejas domésticas. Sagrada Família de Nazaré, que nunca mais haja nas famílias episódios de violência, de fechamento e divisão; e quem tiver sido ferido ou escandalizado seja rapidamente consolado e curado. Sagrada Família de Nazaré, fazei que todos nos tornemos conscientes do caráter sagrado e inviolável da família, da sua beleza no projeto de Deus. Jesus, Maria e José, ouvi-nos e acolhei a nossa súplica. Amém” (Papa Francisco).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

NÃO RETROCEDER DIANTE DOS VENTOS CONTRÁRIOS

Missa do 19. dom. comum. Palavra de Deus: 1Reis 19,9a.11-13a; Romanos 9,1-5; Mateus 14,22-33.

 

            Estamos no mês vocacional. Depois de termos celebrado a vocação sacerdotal, no domingo passado, hoje celebramos a vocação paterna, meditando na figura do pai no seio da família. Exatamente hoje a Palavra do Senhor nos fala sobre dois tipos de tempestade: aquela que aconteceu no coração do profeta Elias e aquela que aconteceu com os discípulos, durante a travessia no mar. Isso significa que toda vocação tem seus momentos de tempestade. Toda pessoa que foi chamada por Deus a uma missão tem que lidar com tempestades dentro de si mesma (Elias) e também com tempestades que acontecem no seio da Igreja (discípulos) e da sociedade humana.    

            Assim como aconteceu com o profeta Elias, às vezes a nossa alma transforma-se num mar agitado. Nós desejamos e precisamos nos encontrar com Deus, mas não o conseguimos de maneira imediata, pois Ele não está no furacão dos nossos afetos desordenados e das nossas emoções cegas e descontroladas. Deus também não está no terremoto da nossa raiva intensa e do nosso ódio contra tudo aquilo que consideramos errado e pensamos que deva ser destruído. Enfim, Deus também não está no incêndio da nossa intolerância e do nosso desejo de eliminarmos de uma vez por todas nossas imperfeições e sermos ouro ou prata totalmente puros. Somente quando silenciamos o barulho provocado pelo furacão, pelo terremoto e pelo incêndio que nos habitam, é que podemos encontrar o Senhor e ouvi-Lo na brisa suave do seu Espírito.  

            Assim como Elias, o pai é um homem às vezes perdido dentro de si mesmo, perdido na sua própria tempestade interior, um homem que deve enfrentar seus furacões, terremotos e incêndios interiores, um homem chamado a ter a coragem de silenciar e de ouvir o murmúrio de uma brisa suave, de ouvir a voz de Deus, vivendo sua vocação paterna não mais a partir da sua carne, dos seus instintos egoístas, mas a partir do Espírito Santo que torna o seu espírito humano capaz de domínio de si mesmo. Como fez com Elias, Deus confiou ao pai a missão de purificar a fé da sua família e de dar à sua casa a firmeza e a confiança necessárias para resistir às tempestades da vida.

            Justamente porque nossa vocação nunca é vivida de maneira individualista, mas comunitária e social, o Evangelho nos fala das tempestades que se fazem presentes na Igreja e na sociedade humana. Recentemente, o Papa Francisco afirmou que em um mundo doente como o nosso, a Igreja não pode pretender ser totalmente saudável. Em outras palavras, as tempestades que afetam o mundo, afetam também a nossa Igreja. As doenças e os conflitos que atingem a humanidade atingem também a nós, cristãos. Os ventos contrários que atentam contra a vida das pessoas também sopram contra a Igreja de Jesus Cristo, na tentativa de silenciar a voz do Papa Francisco, dos bispos e de todos os cristãos que se colocam na defesa da vida, da ecologia e contra uma economia que produz morte.   

            Enquanto a barca dos discípulos, imagem bíblica da Igreja, “era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário, Jesus... veio até os discípulos, andando sobre o mar” (Mt 14,24-25). O mesmo Jesus que caminha sobre as águas agitadas e não afunda nelas é aquele que estava em oração ao Pai, por si e pelos seus discípulos de todos os tempos. Isso significa que somente a oração nos capacita lidar com as tempestades; somente a força da oração nos faz atravessar as tempestades sem sermos tragados por elas. Assim como Elias, assim como Jesus, é na oração que podemos silenciar nossas tempestades e voltarmos a ouvir a voz de Deus.

            Àqueles discípulos, que gritavam de medo, Jesus disse: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (Mt 14,27). Jesus quer que nós o reconheçamos junto a nós, em nossas tempestades. Se a voz do medo fala conosco, em nossas travessias e na vivência diária da nossa vocação, a voz da coragem precisa falar mais alto. Quando não superamos esse medo, nossa vocação acaba ficando comprometida. Portanto, assim como Pedro, nós também estendemos nossa mão a Jesus e gritamos: “Senhor, salva-me!” (Mt 14,30). E Jesus prontamente aceita a fraqueza da nossa fé e nos estende a mão todas as vezes que nós caímos ou nos afundamos. “Jesus oferece, pois, à sua Igreja, a vitória sobre as forças do mal e a segurança nas provações, mas pede como condição essencial uma confiança sem hesitação” (Missal dominical, p.769).

            Na Bíblia, o mar representa o mal, cuja força grandiosa tudo domina, uma força ameaçadora para todos nós. Na vida do pai, na vida de cada um de nós, da nossa Igreja, das nossas comunidades e da sociedade humana, o mal é uma realidade presente que precisa ser enfrentada. O mal quer nos fazer acreditar que a travessia para a outra margem não é possível, não dará certo. Ele sempre procura nos manter paralisados no medo e no desânimo, tirando do nosso horizonte a perspectiva da mudança. Mas Jesus continua a nos encorajar e a nos incentivar a fazer a travessia, mantendo os olhos fixos nele, que vem ao nosso encontro nas horas mais sombrias da nossa vida e nos entende a sua mão, para que possamos enfrentar os ventos contrários e chegar à outra margem, à meta que está no horizonte da vocação de cada um de nós.     

             “Senhor, salva-me!” (Mt 14,29). Esse é o grito que o pai e cada um de nós hoje dirige a Jesus. Que o Senhor nos salve de afundarmos na falta de fé; que Ele nos salve de ficarmos paralisados no medo e no desânimo; que Ele salve cada pai  e cada família de serem tragados pelo mal que há no mundo; que Ele salve a nossa Igreja, especialmente o Papa Francisco, nossos bispos, nossos padres, enfim, todos os cristãos. “O vento pode soprar o quanto quiser; a montanha jamais se curva diante dele” (provérbio chinês). Que nós não nos curvemos diante dos ventos contrários, mas diante do Senhor Jesus, o Filho de Deus, que silencia nossas tempestades e navega conosco, levando-nos com segurança e firmeza até o outro lado.

 

            Pe. Paulo Cezar Mazzi