quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

RECUPERAR NOSSA OBEDIÊNCIA DE FILHOS


Missa do 1º dom. quaresma 2020. Palavra de Deus: Gênesis 2,7-9; 3,1-7; Romanos 5,12-19; Mateus 4,1-11.

As tentações de Adão e Eva, assim como as tentações de Jesus, são as nossas tentações. Todo ser humano se sente tentado: quando está sofrendo, se sente tentado a desistir da vida; quando está feliz, se sente tentado a pensar que sua felicidade é definitiva; quando está com Deus, se sente tentado a usá-Lo para seus interesses egoístas; quando está sem Deus, se sente tentado a se tornar desumano para poder sobreviver nesse mundo injusto, desigual e violento.
As tentações nunca vêm de Deus; elas nascem da nossa própria mania em querer uma vida sem cruz, um caminho sem dificuldade, uma vida feita somente de vitórias e de sucesso, sem qualquer tipo de luta ou sacrifício. Ora, as tentações estão presentes em nossa vida justamente para nos lembrar de que nenhum ser humano se torna homem – isto é, uma pessoa madura, livre, senhora de si – sem lutar. “Ninguém se torna senhor de si mesmo enquanto não lutar com os demônios que habitam o seu interior e que tentam mandar na sua vida. Além disso, só é possível conhecer o céu quem primeiro conheceu seu próprio inferno interior” (Anselm Grün).
Assim como Adão e Eva, nós somos tentados a desconfiar que Deus não nos ama verdadeiramente e não quer a nossa felicidade. Diante de algum limite que Ele nos coloca – comer de todas as árvores, menos de uma – nós reagimos como uma criança mimada que não aceita ouvir um “não”, que acha que pode tudo e não aceita qualquer limite. Sem medir as consequências, nós decidimos romper com Deus, como que dizendo: ‘Eu não quero mais viver na dependência de Deus. A partir de hoje, não é mais Deus, e sim eu mesmo quem decido o que é o bem e o que é o mal para mim’. Desse modo, “o pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a morte. E a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5,12).
Essa desobediência de todo ser humano a Deus abriu inúmeras feridas na humanidade, feridas que levaram muitos à morte. Desse modo, foi preciso que um novo Adão, um novo ser humano viesse ao mundo, para nos mostrar que é possível sermos obedientes a Deus e, nessa obediência, encontrar a vida e a felicidade que tanto desejamos. É assim que o Evangelho nos apresenta Jesus vivenciando sua quaresma no deserto. Esse deserto não é tanto um lugar quanto uma situação de vida, para onde Deus às vezes permite que sejamos levados, a fim de nos reencontrar com o essencial, a fim de reordenar os nossos afetos e compreendermos essa importante verdade: “Posso fazer tudo o que quero, mas nem tudo me convém. Posso fazer tudo o que quero, mas não me deixarei escravizar por coisa alguma” (1Cor 6,12).
“Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, depois disso, sentiu fome. Então o tentador se aproximou...” (Mt 4,2). A primeira tentação de Jesus se deu numa situação de fome. Sentir fome significa deparar-se com nossas necessidades básicas. Enquanto o tentador nos propõe reduzir a nossa vida ao que podemos consumir, Jesus nos desafia a dialogar com nossas necessidades e a ampliar o sentido da nossa existência, pois somente Deus pode preencher nossas necessidades e somente obedecendo à Palavra dele é que encontraremos a vida plena e a felicidade que tanto desejamos.
            A segunda tentação de Jesus se deu no Templo! “Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’” (Mt 4,5-6). Para nos afastar de Deus e da Sua vontade, o diabo não precisa nos tirar da Igreja; ele usa da própria religião para deformar a imagem que temos de Deus, para distorcer o sentido da Sagrada Escritura, de modo que acreditemos que Deus pensa como nós pensamos, quer o que nós queremos, defende o que nós defendemos e gosta do que nós gostamos. Quantos de nós estamos fazendo o que contrário do que Deus quer, enquanto nos imaginamos abençoados por Ele?   
            Por fim, a terceira tentação de Jesus: “O diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, e lhe disse: ‘Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar’” (Mt 4,8-9). Todos nós, seres humanos, nos sentimos pequenos e fracos, e isso nos incomoda. Todos nós nos sentimos inferiores em relação a alguém ou a alguma coisa. Todos nós gostaríamos de nos sentir mais fortes, maiores, mais capazes; todos nós desejamos um dia chegar ao topo, ao lugar mais alto possível. Mas o preço a ser pago é igualmente alto: deixar de sermos imagem e semelhança do Deus que se abaixou, que se fez humano em Seu Filho Jesus, para nos deformar na imagem do pai da soberba, da arrogância, do orgulho, do pai do poder que corrompe e destrói, porque é um poder demoníaco.
            Jesus soube dialogar com suas tentações e desmascará-las à luz da Palavra de Deus. Ele nos lembra que, diante de qualquer tentação, nós sempre permanecemos livres e podemos escolher entre viver segundo a vontade de Deus ou viver segundo o nosso ego, o qual recusa qualquer coisa que seja contrária ao seu bem estar e os seus interesses, rejeitando, desse modo, toda possibilidade de sofrimento, de sacrifício, de renúncia e de cruz. Somente no caminho da obediência ao Pai é que o filho torna-se verdadeiramente homem. Somente imitando o Filho, na sua luta contra o mal, presente em si e no mundo, é que nós nos tornamos pessoas verdadeiramente livres, pessoas que recuperaram seu autodomínio e podem, dessa forma, contribuir para sanar as feridas que pecado pessoal e social tem aberto na humanidade.  

Pe. Paulo Cezar Mazzi
           

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

TEMPO NECESSÁRIO PARA REORDENAR NOSSOS AFETOS


Missa 4ª. de cinzas. Palavra de Deus: Joel 2,12-18; 2Coríntios 5,20 – 6,2; Mateus 6, 1-6.16-18.

Para machucar, é rápido; para curar a ferida, demora um tempo. Afastar-se e se perder são coisas que podem se dar rapidamente; reencontrar o caminho de volta leva um tempo. Quebrar e destruir é rápido; consertar e reconstruir exige tempo. Esse tempo se chama “Quaresma”.
Quarenta dias: tempo de tratar e curar as feridas que o pecado tem aberto em nós e à nossa volta; tempo de reconhecer o quanto nos afastamos da vontade de Deus e decidir voltar a viver segundo a Sua vontade; tempo de visitar as ruínas, os estragos de tudo aquilo que nossos erros quebraram e destruíram em nossa vida e na vida dos outros; tempo de consertar e de reconstruir aquilo que, devido ao nosso egoísmo e às nossas paixões desordenadas, foi danificado e pede para ser reparado.
A Quaresma existe para nos lembrar que não podemos seguir pela vida aos trancos e barrancos. Sabemos que existem situações que precisam ser enfrentadas, erros que precisam ser admitidos, pecados que precisam ser confessados, responsabilidades que precisam ser assumidas, rumos que precisam ser redefinidos, metas e ideais que precisam ser retomados, desejos e afetos que precisam ser ordenados novamente; em suma, a nossa casa interior está pedindo para ser arrumada, colocada em ordem.
O tempo da Quaresma se inspira nos quarenta dias que Jesus se retirou para o deserto, para jejuar e rezar, para distinguir entre a voz de Deus e a voz do maligno em sua consciência. A maioria de nós não tem condições de retirar-se para um lugar deserto, mas pode retirar-se para o seu deserto interior, acalmar seu coração, deixar seus afazeres por um momento e voltar a visitar o terreno da sua vida interior, dando-se conta de como ele está: se existe mato a ser retirado, adubo a ser colocado, terra a ser arada, semente a ser lançada, para que possamos voltar a ser fecundos e a produzir bons frutos.
Toda pessoa que se dá ao trabalho de fazer seu tempo de deserto acaba por tomar consciência do quanto seus afetos (desejos) estão desordenados, o que faz com que ela se torne uma pessoa que não tem mais a vida em suas mãos, mas é levada de um lado para outro, segundo a desorientação dos seus próprios desejos, das suas afeições em desordem. Quando nossos afetos estão desordenados, acabamos tendo atitudes contrárias à vontade de Deus. Livre e conscientemente, abrimos a porta e permitimos que esses afetos se instalem dentro de nós. Consequentemente, eles acabam com nossa vida de intimidade com Deus, provocando desolação, angústia e nos tornando indiferentes em relação ao próximo.
O tempo da Quaresma nos pede uma decisão firme: “voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o vosso coração... e voltai para o Senhor, vosso Deus” (Jl 2,12-13). Assim também suplica apóstolo Paulo: “Deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20). ‘Permitam que Deus cure as feridas que o pecado abriu em vocês. Permitam que Ele encontre aquilo que eu vocês se perdeu e ressuscite aquilo que em vocês foi morto por causa do pecado’. “É agora o momento favorável” (2Cor 6,2) para colocar em ordem a vida de cada um de vocês.
Jesus nos indica o caminho de volta para Deus, revisando os três pricipais relacionamentos da nossa vida: com o nosso próximo (esmola), com Deus (oração) e conosco mesmos (jejum). Conseguimos oferecer a nossa esmola (deixar-se afetar pelo sofrimento do outro) mesmo vivendo numa sociedade individualista, que nos ensina a pensar somente em nós? Fazemos nossas orações a Deus permitindo que Ele questione os nossos projetos e nos desafie com as exigências da Sua palavra, mesmo vivendo numa época onde muitos buscam a Deus somente para seus interesses imediatos? Somos capazes de jejuar, de exercitar o autodomínio, de desenvolver a capacidade de renúncia, mesmo vivendo num mundo que acha mais fácil deixar-se levar cegamente pelos afetos desordenados?
Iniciamos hoje em todo o Brasil a Campanha da Fraternidade, com o lema “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34). A exemplo do próprio Jesus, o Bom Samaritano, e de Santa Dulce dos Pobres, somos convidados a ver a realidade à nossa volta, a enxergar as pessoas e as situações que pedem a nossa compaixão, o nosso envolvimento em favor da vida ferida e ameaçada; somos convidados a passar da indiferença para a compaixão, deixando-nos afetar pelas necessidades do nosso próximo. Enfim, somos convidados a cuidar: cuidar da nossa saúde física, emocional e espiritual; cuidar da vida que se encontra ferida ou ameaçada à nossa volta; cuidar do meio ambiente, dos valores cristãos, da família, fazendo-nos próximos de toda pessoa que precisa de cuidados.
Uma palavra particular sobre o jejum. Jejuar significa administrar os nossos instintos e não sermos administrados por eles. Jejuar também significa descontaminar-se, desintoxicar-se: jejuar de julgar os outros, de dizer palavras que ferem; jejuar de descontentamentos, de pessimismo, de preocupações; jejuar de lamúrias e queixas, de tristeza e amargura; jejuar de tudo o que nos afasta de Deus.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O VÍRUS DO ÓDIO


Missa do 7. dom. comum. Palavra de Deus: Levítico 19,1-2.17-18; 1Coríntios 3,16-23, Mateus 5,38-48.

Há dias atrás, o medo do coronavírus deixou o mercado em pânico e o mundo em alerta, mas esse medo está passando. No entanto, o mesmo mundo que teme um vírus que pode levar inúmeras pessoas à morte se habituou tranquilamente a viver contaminado com um outro vírus, que faz com que as pessoas se matem umas às outras: o vírus do ódio.
Deus nos disse: “Não tenhas no coração ódio contra teu irmão” (Ex 19,17). No entanto, odiar tornou-se algo normal, habitual. O ódio está presente nas famílias (dentro da própria casa ou entre os parentes); nos ambientes de trabalho (algo cada vez mais frequente); nas escolas (entre alunos, e também entre alunos e professores). O ódio está presente nas igrejas (alguns do clero entre si, alguns do clero com o bispo, entre os leigos, entre determinado padre e os leigos, entre cristãos de igrejas diferentes etc.). O ódio está presente na vida das crianças e adolescentes (jogos violentos); está visível no trânsito. Em nosso país, o ódio tornou-se a cor “natural” da política: mensagens, falas, discursos e vídeos são ditos ou editados para se alimentar o ódio mortal entre direita e esquerda. Enfim, as redes sociais são a maior testemunha do quanto estamos propensos ao ódio, o quanto estamos contaminados por esse vírus.
Na Bíblia, a ira é um sentimento muito mencionado, um “sentimento intenso, violento. Sua manifestação extrema é o ódio, o qual procura destruir o outro, senão fisicamente, o faz afetivamente ou psicologicamente” (Ana Bissi). Por ser um sentimento que, como qualquer outro, não é escolhido por nós, mas que se manifesta em nós devido a uma determinada situação, Deus nos orienta na sua Palavra: “Irai-vos, mas não pequeis: não se ponha o sol sobre a vossa ira, nem deis lugar ao diabo” (Ef 4,26-27). “Irai-vos” – Deus jamais nos mandaria ficar irados, cheios de raiva ou de ódio. “Irai-vos” significa que Deus compreende perfeitamente a nossa natureza humana e sabe que não escolhemos sentir ira. No entanto, Ele nos aconselha: ‘Quando o sentimento da ira explodir dentro de vocês, não pequem, não deem uma resposta errada à ira que estão sentindo, de modo que ela leve vocês a cometeram algo ruim ou injusto contra o seu próximo’.
“Não se ponha o sol sobre a vossa ira, nem deis lugar ao diabo” (Ef 4,27). Deus também nos aconselha a não deixar a ira fervendo dentro de nós por dias e dias. Antes que o sol se ponha, antes que o dia termine, temos que reconhecer o que estamos sentindo e decidir qual a melhor forma de lidar com esse sentimento. Quando não fazemos isso, acabamos dando espaço para o mal (diabo) morar em nós e influenciar fortemente as nossas atitudes, que não mais serão guiadas pelo Evangelho, mas pela raiva cega, exagerada e injusta da nossa ira.  
Jesus teve inúmeros inimigos em sua vida: fariseus, mestres da Lei, sumos sacerdotes, políticos (Império Romano) etc. Como qualquer outro ser humano, ele sentiu a agressão do ódio contra si. Além disso, Jesus também irou-se: às vezes, com os discípulos; às vezes, com o povo; mas, sobretudo, com alguns líderes religiosos da sua época. Assim como qualquer um de nós, Jesus sentiu raiva, ira, mas ele nunca permitiu que esse sentimento morasse definitivamente dentro dele; muito menos permitiu que a ira determinasse suas atitudes para com os outros. O que Jesus fazia era colocar sua ira diante do Pai, na oração, e permitir que o amor do Pai o preenchesse de tal forma que sua ira acabava por diluir-se, como a pedra de gelo se dilui rapidamente quando exposta ao calor do fogo ou do sol.
Portanto, Jesus tem toda a autoridade para nos dizer como ele quer que seus discípulos sejam: “Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,44-45). “Deus derrama o sol e a chuva sobre todos porque reconhece a todos como filhos, na esperança de alguém que o reconheça como Pai e aceite os outros como irmãos. Deus não tem inimigos; tem filhos, os quais estão na minha vida para que eu os ame como irmãos” (Pe. Pagola).     
Embora todos nós naturalmente nos consideramos “filhos de Deus”, cabe a pergunta: de quem realmente somos filhos – de Deus ou de Caim? Deus Pai não é violento. Ele não busca destruir ninguém. Quem se propõe a viver como filho de Deus inevitavelmente sente ódio às vezes, mas não alimenta ódio contra ninguém e não permite que seu ódio o leve a destruir a outra pessoa. Quando Jesus fala do amor ao inimigo, não está pensando em um sentimento de afeto e carinho por ele, mas numa relação radicalmente humana de interesse positivo por sua pessoa. Amar o inimigo não significa tolerar as injustiças e retirar-se comodamente na luta contra o mal. O que Jesus viu com clareza é que não se luta contra o mal quando se destrói as pessoas. Deve-se combater o mal, mas sem buscar a destruição do adversário.  

Oração: Deus Pai, apesar de ser Teu(ua) filho(a), reconheço que Caim às vezes mora dentro de mim. Apesar de ser barro, sinto que uma parte em mim se endureceu como ferro. Algumas situações provocam ira em mim, uma raiva intensa, levando-me até mesmo a odiar pessoas! Derrama Teu amor em meu coração! Derrete, com o fogo do Teu Espírito, tudo aquilo que em mim está endurecido pelo ódio.
Apesar de viver num mundo cheio de intolerância e agressão, eu não quero reproduzir feridas nos outros. Quando a raiva gritar dentro de mim, que eu ouça a voz do Teu amor e oriente minhas atitudes por ela, decidindo não agir segundo a agressão que eu recebo, mas orando por aqueles que me agridem. Concede-me um coração verdadeiramente de filho(a), que se antecipe em fazer o bem aos outros, independente de como sou tratado(a) por eles.
Derruba todo muro de ódio que separa as pessoas nas famílias, nas escolas, nas empresas, na política e nas igrejas. Movidos pelo Espírito do Teu amor, queremos diariamente lutar contra o mal sem destruir as pessoas; combater o mal, sem buscar a destruição dos nossos adversários. Em nome de Jesus. Amém!   

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

PESSOAS DE COMPORTAMENTO AJUSTADO À VONTADE DE DEUS


Missa do 6º. dom. comum. Eclesiástico 15,16-21; 1Coríntios 2,6-10; Mateus 5,20-22a.27-28.33-34a.37 (leitura breve).

            Da mesma forma como as margens de um rio canalizam suas águas para que elas possam desaguar no seu destino natural, assim Deus nos deu os Mandamentos, para que pudessem nos ajudar na orientação das nossas escolhas. Se, porventura, um rio perdesse as suas margens, suas águas inundariam tudo ao redor, e o próprio rio perderia a capacidade de atingir o destino para o qual nasceu. Assim também nós: sem a orientação dos Mandamentos de Deus, corremos o risco de nos tornar pessoas prisioneiras das suas próprias paixões, pessoas sem um projeto de vida, sem uma meta a alcançar, porque desorientadas interiormente; numa palavra, pessoas cuja existência sofre uma constante “desorientação” imposta pelo mundo, justamente porque rejeitam a orientação proposta pelo Pai que deseja vida plena para Seus filhos.
            Segundo Jesus, a meta da nossa vida cristã é a justiça: “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20). Todo discípulo de Jesus é chamado a se tornar uma pessoa justa, isto é, uma pessoa que, no uso da sua liberdade, escolhe ajustar o seu comportamento segundo a vontade de Deus. Na época de Jesus, alguns homens religiosos se consideravam “justos”, mas enquanto eles observavam friamente as exigências dos Mandamentos de Deus, desrespeitavam seu semelhante, não se importavam com as necessidades do seu próximo e ainda condenavam os que não eram “justos” como eles. Jesus nos convida a compreender o sentido mais profundo dos Mandamentos, para que o nosso comportamento de fato seja segundo o coração de Deus e não segundo esta ou aquela lei religiosa.     
“Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás!’ (...). Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo” (Mt 5,21-22). Não é novidade para ninguém que nós estamos mais agressivos e intolerantes. Facilmente perdemos a paciência e ofendemos pessoas, inclusive pessoas que nada têm a ver com os nossos problemas. Outra coisa importante: sempre que sofremos alguma frustração, nós reagimos com agressão. Ora, devido à constante propaganda de consumo a que estamos expostos, muitas das nossas expectativas são exageradas e jamais se realizarão. Assim, nosso nível de frustração quase sempre está alto, o que nos torna pessoas potencialmente agressivas.  
Jesus nos torna conscientes de que, quando não nos damos ao trabalho de dialogar com a nossa agressividade e de orientá-la, a mesma acaba por assumir o controle, levando-nos a “matar” o outro com ofensas, palavrões, difamações (fake news), críticas destrutivas etc. Neste sentido, as mensagens que postamos nas redes sociais tornam-se carregadas de ódio e de intolerância contra toda pessoa que pensa diferente de nós. Também nossa postura no trânsito e a forma como tratamos as pessoas em nosso ambiente de trabalho revelam o quanto a nossa agressividade determina nossas atitudes. A questão, portanto, é reconhecer quando estamos agressivos, identificar a causa da nossa agressividade e escolher a forma melhor de lidar com ela, sem “destruir” a pessoa que está diante de nós.  
“Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração” (Mt 5,27-28). Atualmente, os sentimentos e as emoções tomaram o lugar da consciência em muitas pessoas. Desse modo, relacionamentos são machucados ou destruídos em nome do “sentir”, do “experimentar uma emoção intensa”, não importando a consequência disso para a nossa vida ou para a vida do outro. Jesus nos propõe um diálogo honesto e sereno com o nosso desejo. O desejo está inscrito em nossa natureza humana, como os poros do nosso corpo. Nós não escolhemos sentir desejo por esta ou aquela pessoa, mas podemos escolher a forma de lidar com esse desejo. Uma pessoa afetivamente imatura jamais consegue frustrar seu desejo, ao passo que uma pessoa afetivamente madura o faz, ainda que a custo de sofrimento. O resultado é este: desejos constantemente satisfeitos nos tornam pessoas fracas e incapazes de atingir objetivos que transcendam a mera sobrevivência. Somente quando temos a liberdade interior de dizer “não” àqueles desejos que sabotam a nossa liberdade e corrompem a nossa consciência é que nos tornamos capazes de viver uma vida plena de sentido.   
“Vós ouvistes também o que foi dito aos antigos: (...) ‘cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. Eu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum (...). Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’: ‘Não’. Tudo o que for além disso, vem do Maligno” (Mt 5,34a.37). Numa época onde a palavra das pessoas está em descrédito, Jesus nos convida a sermos francos conosco mesmos e com a nossa consciência. O nosso falar não deve estar subjugado ao medo de desagradar o outro, mas unicamente àquilo que é verdadeiro e justo. Quando Deus nos dirige Sua palavra, não visa nos agradar; visa, antes, o nosso bem e a nossa salvação. Assim também, o nosso falar com as pessoas deve ser livre do falso respeito em agradá-las, mas buscar sempre aquilo que corresponde à verdade e à justiça, gostem elas ou não. Concluindo, Jesus revela que toda falta de sinceridade vem do Maligno, o pai da mentira, assim como toda sinceridade vem de Deus, o Deus da Verdade, o Deus em quem não há falsidade.

Oração: Deus Pai, estou diante de Ti com a minha agressividade, a minha afetividade e o meu falar. Quero me tornar uma pessoa justa. Quero ajustar o meu comportamento à Tua vontade. Coloco em Tuas mãos minha agressividade. Todos os dias ela é despertada ou provocada de diversas maneiras. Livra-me de “matar” pessoas através do que penso, sinto ou falo a respeito delas. Ensina-me a identificar quando estou frustrado(a) e a não descarregar essa frustração sobre os outros, agredindo-os.
Deus Pai, o desejo está inscrito em meu corpo. Ele penetra o meu olhar e passa habitar nos meus pensamentos, alimentando de maneira exagerada e enganadora  minhas fantasias. Eu não sou responsável pelo que sinto, mas sou responsável pela maneira como lido com o que sinto. Não quero ser arrastado(a) pelos meus sentimentos, mas aprender a orientá-los segundo o que verdadeiramente convém à minha salvação e ao bem das outras pessoas.

Enfim, Pai, coloco em Tuas mãos o meu falar. Livra-me do falso respeito de querer agradar as pessoas. Concede-me liberdade interior para dizer “sim” quando é necessário dizê-lo, assim como dizer “não” quando também é necessário dizê-lo. Livra a minha consciência da mentira, da hipocrisia, do agir segundo a minha conveniência, para agir sempre segundo a Tua verdade. Em nome de Jesus, Amém! 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   


   

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

OU SERVIMOS PARA TRANSFORMAR O MUNDO, OU NÃO SERVIMOS PARA NADA


Missa do 5º dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 58,7-10; 1Coríntios 2,1-5; Mateus 5,13-16.

            Existe no mundo atual uma forte tendência ao fechamento: famílias fechadas em suas casas, por medo da violência; pessoas fechadas dentro de si mesmas, por medo de serem machucadas pelos outros, ou mesmo por terem se decepcionado com os outros; cristãos fechados em suas igrejas, por medo de se “contaminarem” com o mundo; governos e países fechados em si mesmos, para protegerem suas economias. Enfim, no âmbito global o atual medo do contágio do coronavírus tem levado muitos a evitarem o contato com outras pessoas.
            Jesus, ao usar as imagens do sal e da luz, bem como da sua respectiva importância para a nossa vida de cada dia, nos convida a sair do fechamento em que nos encontramos. O sal existe para ser colocado na comida e realçar o sabor dos alimentos, assim como a luz existe para ser colocada no teto e iluminar a todos os que se encontram naquele ambiente. Manter o sal fechado dentro de um recipiente ou manter uma luz acesa debaixo de um móvel, além de negar o sentido da própria existência deles, faz com que a comida fique sem sabor e que o ambiente permaneça totalmente no escuro. Em outras palavras, quando nos fechamos em nós mesmos, entramos num processo de perda de sentido da nossa própria existência, além de empobrecermos seriamente a vida das pessoas que se encontram à nossa volta.
“Vocês são o sal da terra” (Mt 5,13). Além de realçar o sabor dos alimentos, o sal, sobretudo na época de Jesus, era muito usado para conservar os alimentos, isto é, para preservar a carne do apodrecimento. Hoje, a principal “carne” que está apodrecendo à nossa volta é o ser humano. Moradores de rua, usuários de droga, desempregados, famílias desestruturadas, crianças e jovens envolvidos no tráfico de drogas, entre outros, são exemplos de seres humanos que estão apodrecendo porque o sal de muitos de nós, cristãos, não tem sido colocado ali, ou seja, porque nós nos mantemos distantes do drama da vida dessas pessoas.
Jesus pergunta: “se o sal se tornar insosso, com que salgaremos?” (Mt 5,13). Quantas pessoas perderam seu sal? Quantas pessoas abriram mão de valores como integridade, honestidade, decência, fidelidade, e não se importam com o fato de se tornarem corruptas, pois o enriquecimento rápido e fácil anestesiou a consciência delas? Quantos políticos, juízes, empresários e líderes religiosos se tornaram “pessoas sem sal”, sem escrúpulo, sem decência, sem integridade? “Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens” (Mt 5,14). Segundo Jesus, essas pessoas serão excluídas do Reino de Deus (“ser jogado fora”) e serão destruídas pelo próprio sistema injusto que elas alimentam com seu comportamento corrupto (”ser pisado pelos homens”).
“Vós sois a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte” (Mt 5,14). Sempre que escolhemos viver segundo o Evangelho, nos configurando a Jesus Cristo, Luz do mundo, nós nos tornamos luz. Em muitos ambientes há uma ausência de luz, isto é, ausência de bondade e de humanidade, ausência de solidariedade e de respeito para com o outro, ausência de fé e de esperança. Por que essas ausências? Porque grande parte dos cristãos decidiram manter-se no anonimato, para evitar críticas, perseguições ou humilhações, não testemunhando, sobretudo com seu comportamento, os valores do Evangelho. Embora seja verdade o fato que ninguém atira pedras numa árvore que não tem fruto, Jesus nos faz este desafio: “brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e louvem o Pai de vocês que está nos céus” (Mt 5,16). Apesar de o nosso testemunho cristão poder despertar alguma crítica ou rejeição, devemos mostrar para as pessoas que uma outra forma de viver e de tratar os outros é possível.
Ainda a respeito da luz, não podemos nos esquecer daquilo que o Senhor nos diz, através do profeta Isaías. Nós só somos luz quando nos deixamos afetar pelo sofrimento e pela necessidade do nosso próximo. Nós só somos luz quando modificamos nossas atitudes agressivas e intolerantes em atitudes humanizadoras e solidárias para com os necessitados.  Somente quando nos comportamos assim é que Deus afirma: “nascerá nas trevas a tua luz e tua vida obscura será como o meio-dia” (Is 58,10).
            O lugar do sal é em meio à comida; o lugar da luz é no teto do ambiente; o lugar da Igreja e dos cristãos é no mundo, na comunhão com os dramas que afetam a vida das pessoas, especialmente dos que mais sofrem. Quando nós, enquanto Igreja, nos mantemos separados do mundo e distantes da realidade das pessoas, não estamos servindo para nada; estamos, na verdade, traindo a nossa missão de discípulos de Jesus. E quando fazemos isso, somos merecedores desse tipo de crítica: “Os cristãos fizeram todo o possível para esterilizar o Evangelho; dir-se-ia que o submergiram num líquido neutralizante. Tudo o que impressiona, supera ou inverte é amortecido. Assim, uma vez convertida em algo inofensivo, esta religião nivelada, prudente e razoável, o ser humano não pode senão vomitá-la” (Paul Eudokimov, O amor louco de Deus).


Oração: Senhor Jesus, sou humano(a), sou carne, sou passível de ser corrompido(a). Necessito do Teu sal, da Tua integridade e da Tua santidade de Filho de Deus. Preserva minha consciência do apodrecimento moral e espiritual. Quero sair de mim mesmo(a) e derramar o meu sal sobre toda carne, sobre toda pessoa que precisa ser ajudada, resgatada, defendida. Que a minha breve passagem por este mundo faça com que ele se torne melhor, mais humano e mais justo. Amém!  

Pe. Paulo Cezar Mazzi