Missa do 7º. dom.
comum. Palavra de Deus: 1Samuel 26,2.7-9.12-13.22-23; 1Coríntios 15,45-49; Lucas
6,27-38.
Num
momento crítico da vida de Davi, chamado biblicamente de “um homem segundo o
coração de Deus” (cf. 1Sm 13,14; At 13,22), quando ele estava sendo dura e
injustamente perseguido pelo rei Saul, aconteceu um fato muito interessante.
Enquanto o rei Saul e todo o seu exército dormiam profundamente, Davi teve a
oportunidade de se aproximar de Saul e de matá-lo, mas não o fez. De fato, o homem
que acompanhava Davi, neste drama de ser injustamente perseguido por Saul, lhe
disse: “Deus entregou hoje em tuas mãos o teu inimigo. Vou cravá-lo em terra
com uma lançada, e não será preciso repetir o golpe”. Mas Davi respondeu: “Não
o mates!” (2Sm 26,8.9).
O
que você faria se a vida colocasse em suas mãos pessoas que estupram e matam
crianças e mulheres? O que você faria se a vida te desse a oportunidade de eliminar
da face da terra os terroristas, os pedófilos, os abusadores de menores, os fabricantes
de drogas e os traficantes, os políticos e juízes corruptos, os que promovem
guerra no mundo para se enriquecerem com a venda de armas? O que você faria se Deus colocasse em suas mãos a vida da pessoa que destruiu
seu casamento ou aquela que matou seu filho por um motivo totalmente banal?
Existe uma afirmação perigosa aqui: “Deus
entregou em tuas mãos o teu inimigo” (1Sm 26,8). Às vezes nós interpretamos a
oportunidade de nos vingar e de fazer justiça com as próprias mãos como uma
oportunidade criada por Deus! Davi tinha todos os motivos do mundo para
acabar com a vida de Saul naquele momento, e assim dar um basta ao seu
sofrimento de ser um homem perseguido sem motivo justo. Mas Davi poupou Saul.
Ele simplesmente “apanhou a lança e a bilha de água que estavam junto da
cabeceira de Saul, e foram-se embora... Atravessou para o outro lado, parou no
alto do monte, ao longe, deixando um grande espaço entre eles” (1Sm 26,12-13).
O motivo pelo qual Davi levou
consigo a lança e a bilha de água de Saul, que estavam junto da sua cabeça
enquanto ele dormia profundamente, foi um só: deixar claro a Saul que, se
quisesse, Davi o teria matado. E por que não o matou? Porque Davi era um homem
segundo o coração de Deus! Davi ensinou a Saul – e hoje está ensinando a nós –
que existem outros caminhos na vida para resolver nossos prolemas, que não seja
a vingança cega, a destruição de quem nos prejudica, o desejo incontrolável de
fazer justiça com as nossas próprias mãos. Resumindo, Davi não disse a Saul que não tinha importância o mal que ele estava
lhe fazendo, mas disse: “Eu não vou fazer justiça com minhas próprias mãos
porque eu confio na justiça de Deus, e sei que o Senhor retribuirá a cada um
conforme a sua justiça e a sua fidelidade” (citação livre de 1Sm 26,23).
Essa atitude de misericórdia de Davi
para com Saul nos coloca diante de uma pergunta: nós somos pessoas meramente “naturais”
ou somos pessoas que desejam se tornar “espirituais”? Nós escolhemos viver como
pessoas terrestres ou celestes? Ao falar da diferença entre a pessoa de Adão e
a pessoa de Jesus Cristo, o apóstolo Paulo disse: “Veio primeiro não o homem
espiritual, mas o homem natural; depois é que veio o homem espiritual. O
primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo homem vem do céu” (1Cor
15,46-47). A primeira tendência que desponta em nós não é a espiritual, mas a
natural. É natural que sintamos raiva e desejemos vingança quando alguém
comete uma injustiça contra nós ou contra aqueles que mais amamos. Contudo, todos
nós somos chamados a dialogar com o nosso homem natural e convidá-lo a transcender-se,
a amadurecer e a se tornar homem espiritual.
Ao se tornar um de nós, Jesus fez a
experiência mais básica de todo ser humano; ele experimentou tudo aquilo que o
homem natural experimenta na terra: fome, medo, raiva, dor, sofrimento, injustiça,
violência, tentação etc. Contudo, Jesus procurou viver – muito mais do que Davi
–, como “um homem segundo o coração de Deus”. Enquanto nós, com muita
facilidade, permitimos que o nosso homem espiritual regrida e se deforme no
homem natural, Jesus jamais permitiu que o seu homem natural cancelasse nele a
sua verdadeira imagem de homem espiritual. Assim, o apóstolo Paulo nos propõe
este caminho diário de aperfeiçoamento e de santificação: “E como já refletimos
a imagem do homem terrestre, assim também refletiremos a imagem do homem
celeste” (1Cor 15,47).
Vejamos essas palavras de Jesus: “Amai
os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos
amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam” (Lc 6,27-28). Se você estiver
reduzido ao seu “homem natural”, não aceitará de maneira alguma o que Jesus
disse. Contudo, se o seu homem natural está aberto ao desafio de transcender-se
e de se tornar homem espiritual, você tem abertura para o que Jesus está lhe
propondo. Assim como Davi, você sabe que tem muitos motivos para fazer
justamente o contrário do que Jesus está dizendo, mas você, também como Davi,
sabe que, se quiser, pode distanciar-se do seu “Saul”, do seu desejo de
vingança e de fazer justiça com as próprias mãos, e de dizer ao seu “Saul”
interior: “Eu não quero me tornar como você: um assassino, um homem
injusto, uma pessoa reduzida ao carnal e fechada ao espiritual. Por mais que
seja difícil para mim lidar com a minha raiva, com o meu sentimento de
indignação, eu quero me tornar uma pessoa segundo o coração de Deus e não
segundo o coração do mundo”.
Concluindo, Jesus nos dá uma pista
muito importante sobre como viver segundo o coração de Deus: “O que vós
desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles” (Lc 6,31). A maioria
das pessoas não age, apenas reage: se os outros lhe fazem o bem, elas reagem
retribuindo com o bem; se os outros lhe fazem o mal, elas reagem retribuindo
com o mal. Jesus convida você a não se reduzir a um mero “reagente”, mas a se
tornar um “agente”. Ao invés de você esperar o bem e a justiça das pessoas,
decida tratá-las segundo a bondade e a justiça; escolha viver como um autêntico
filho de Deus, um autêntico “homem segundo o coração de Deus”. Assim como Deus não
espera sermos bons e justos para nos amar e nos fazer o bem – pelo contrário, Ele
“é bondoso também para com os ingratos e os maus” (Lc 6,35) –, assim também
você: não decida suas atitudes a partir
do que recebe dos outros; pelo contrário, decida ser bom e justo para com eles.
Mesmo que eles não reconheçam isso, terá valido a pena viver assim, porque você
escolheu passar por este mundo sendo “um homem segundo o coração de Deus”.
Isso, por si só, terá salvado sua existência, porque terá preservado você da
corrupção do mundo e terá dado verdadeiro sentido à sua vida.
Oração:
Senhor Deus, reconheço que há em mim o “homem natural”, mas o Senhor me chama a
me tornar “homem espiritual”; o Senhor me convida a ser “uma pessoa segundo o Teu
coração”. Hoje eu deponho as minhas armas, a minha raiva, o meu sentimento de
vingança, a minha fome insaciável de justiça. Não quero me tornar um(a)
assassino(a); não quero permitir que o meu desejo cego de vingança me leve a
cometer injustiças maiores do que as que sofri. Eu confio em Ti, Senhor! Confio
que o Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e a sua fidelidade, e
porque creio nisso, não posso e não quero abandonar o meu esforço diário em ser
uma pessoa justa e fiel. Hoje eu suplico a Ti por todos os meus inimigos, por
todas as pessoas que cometeram injustiças contra mim, contra aqueles que eu
amo, contra a humanidade. Não quero tê-los em minhas mãos para vingar-me deles.
Quero colocá-los em Tuas mãos para que o Senhor possa curá-los, perdoá-los,
redimi-los e salvá-los. Enfim, Pai, acolhendo o convite de Teu Filho, a partir de
hoje eu tomo a iniciativa de ser uma pessoa boa e justa para com os outros,
independente da maneira como serei tratado(a) por eles, porque não posso e não
quero, de maneira alguma, deixar de ser uma pessoa segundo o Teu coração. Em
nome de Jesus, amém!
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