sexta-feira, 28 de setembro de 2018

NÃO COLOCAR A PERDER AQUELES QUE DEUS QUER SALVAR

Missa do 26º. dom. comum. Palavra de Deus: Números 11,25-29; Tiago 5,1-6; Marcos 9,38-43.45.47-48.

            Há uma intenção muito clara no coração de Deus: Ele “quer que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4). Para alcançar cada ser humano, Deus usa tanto de estratégias “oficiais” como “não oficiais”, de caminhos que conhecemos, como também de caminhos que desconhecemos, e isso às vezes causa estranheza em nós. Assim aconteceu com Josué, quando viu que o Espírito de Deus havia sido concedido também a dois homens que estavam “no acampamento” (Nm 11,26.27), ou seja, afastados da Tenda onde Deus derramou seu Espírito sobre 70 homens.
            O fato de Deus conceder o Espírito d’Ele a esses dois homens que não estavam no espaço sagrado da Tenda, símbolo não só do futuro Templo de Israel, mas também da própria Igreja enquanto Instituição, nos ensina duas coisas importantes: 1) Deus não precisa pedir permissão a nós para agir para além de nós, para além das nossas regras e normas religiosas; 2) Fora da nossa Igreja também existem pessoas que fazem o bem e que caminham segundo a vontade de Deus, mesmo desconhecendo o Evangelho ou mesmo não comungando da mesma fé que professamos.
            Enquanto Josué foi questionar Moisés sobre essa estranha liberdade de Deus em agir sem nos dar explicações, João foi um pouco mais atrevido e chegou a proibir um homem que expulsava demônios em nome de Jesus, mas não fazia parte do grupo dos discípulos: “nós o proibimos, porque ele não nos segue” (Mc 9,38), ao que Jesus respondeu: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor” (Mc 9,39-40). Jesus também revela, com essa atitude, que fora do nosso grupo, da nossa Igreja, da nossa religião, existem pessoas que estão trabalhando pelo bem da humanidade, pessoas que, até mesmo não sendo cristãs, estão colaborando com Deus na salvação do ser humano.
            Assim como Josué e João, nós, cristãos, costumamos nos apossar de Deus, de Jesus ou do Espírito Santo, muitas vezes caindo no erro de nos sentir enciumados quando vemos pessoas “que não nos seguem” fazer aquilo que o Evangelho ensina. Mas Jesus nos lembra que nenhuma igreja ou religião tem o poder de atingir toda a humanidade. Por isso, o Espírito Santo se antecipa, rompe nossos esquemas e alça voo para além dos limites das nossas instituições, buscando alcançar todo ser humano que Deus quer salvar. Ao invés de nos sentirmos enciumados, deveríamos, antes, agradecer a Deus por Ele agir sempre para além dos nossos pobres e precários limites.
            Aproveitando do escândalo de João e dos demais discípulos, Jesus chamou a atenção deles para aquilo que é o verdadeiro escândalo, que é levar as pessoas a perderem a fé: “Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem, melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço” (Mc 9,42). Se há algo que deve nos preocupar e nos colocar em crise não é a “concorrência religiosa” que caracteriza o nosso tempo, mas o fato de que muitos de nós não estamos nos comportando de maneira digna da vocação a que fomos chamados (cf. Ef 4,1). A verdade é que não são tanto as outras igrejas ou religiões que “tiram” pessoas de nós, mas algumas das nossas atitudes que jogam nos braços das outras igrejas ou religiões pessoas que “eram nossas”.
            Onde quer que exista um ser humano, ali há risco de escândalo. Ninguém de nós está livre de não cair, de não errar, de não se tornar infiel (cf. 1Cor 10,12). Mas o que Jesus entende por “escândalo”? Escândalo é qualquer atitude minha consciente e intencional, que leve alguém a perder a fé, lembrando que tal perda de fé pode se dar em relação a Deus, à Igreja ou ao próprio ser humano. Para Jesus, a perda da fé é algo tão nocivo, tão maléfico para a vida da pessoa, que aquele que contribuiu para ela perdesse a fé está condenado diante de Deus – daí a imagem bíblica da pessoa atirada ao fundo do mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço.
            Se verdadeiramente Deus faz de tudo para que todo ser humano seja salvo, seria totalmente absurdo nós, cristãos, jogarmos fora da Igreja alguém que Deus trabalhou incansavelmente para colocar dentro. O mesmo se diga em relação às pessoas que, mesmo não estando dentro das nossas igrejas, abriram-se para a fé em Jesus e no Evangelho. O nosso maior crime seria deformar o Evangelho e desacreditar a pessoa de Jesus, com as nossas atitudes erradas. Para que isso seja evitado, Jesus nos propõe ajustes dolorosos, mas necessários, em vista da nossa conversão da nossa salvação pessoal e da salvação das demais pessoas.
            “Se tua mão te leva a pecar, corta-a!... Se teu pé te leva a pecar, corta-o!... Se teu olho te leva a pecar, arranca-o!” (Mc 9,43.45.47). A mão representa as nossas atitudes; o pé, a nossa liberdade de direcionar a nossa vida para onde quisermos; o olho, aquilo que consideramos importante, isto é, os nossos valores. Portanto, se alguma atitude errada nossa, se a maneira paganizada como vivemos a nossa liberdade, se os nossos valores invertidos estão causando escândalo em algumas pessoas, isto é, estão provocando uma séria crise de fé naqueles que convivem conosco, o estrago que essa perda de fé fará na vida dessas pessoas será cobrado de nós, que tínhamos como missão justamente levá-las à fé, confirmá-las na fé.  
            O número de pessoas que perdem de fé é cada vez maior à nossa volta. Não por nada, a “religião” que mais cresce no Brasil e no mundo é a das pessoas que escolhem viver “sem-religião”. Ao invés de fugirmos do confronto com uma necessária e saudável autocrítica, procurando colocar a culpa no materialismo e na desumanização do mundo em que vivemos, tenhamos a coragem de colocar em ordem a nossa vida espiritual, realinhar o nosso coração à vontade de Deus, reformar a nossa vida segundo os valores do Evangelho e retomar o nosso ideal de viver como pessoas configuradas a Jesus Cristo. Isso não apenas nos salvará pessoalmente como também contribuirá para que toda a humanidade seja salva.      

            P.S. Estamos a uma semana das eleições. A Igreja nos aconselha a votar em quem apresenta sincera adesão aos valores cristãos; defende a vida, desde a concepção até o seu fim natural, defende a família, cuida dos mais necessitados, respeita seus adversários políticos, inspira confiança e credibilidade. Igualmente, a Igreja também nos aconselha a não votar em quem é reconhecidamente desonesto, coloca o lucro acima de tudo, apresenta atitudes agressivas e atenta contra a vida dos pobres.
Ainda a respeito das eleições, não caiamos no erro de ficar presos aos candidatos à Presidência, esquecendo-nos de que a escolha principal é em relação aos candidatos ao Senado (dois senadores para São Paulo) e ao Congresso (deputado federal e estadual). São eles que fazem as leis que ajudam ou prejudicam o país, que protegem ou que destroem a família. Enfim, tomemos cuidado com três atitudes perigosas e que em nada ajudam: votar em branco ou nulo (é mentira que mais de 50% de votos nulos anula uma eleição), votar em quem o líder religioso indica (interesse particular da sua igreja) e votar apenas em quem tem chance de ganhar (o chamado “voto útil”).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O QUE EU PRECISO APRENDER?

Missa do 25º. dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 2,12.17-20; Tiago 3,16 – 4,3; Marcos 9,30-37.

            Jesus “estava ensinando a seus discípulos” (Mc 9,30), e esse ensinamento era tão importante que Jesus afastou-se da multidão para ficar a sós com os discípulos. Nós sempre temos algo a aprender. Não sabemos tudo, não temos todas as respostas, não compreendemos a fundo o mistério da vida. Por isso, sempre é importante nos abrir àquilo que Deus quer nos ensinar por meio dos acontecimentos. Este é um primeiro ponto.
            Um segundo ponto é que, embora sempre tenhamos algo a aprender, nem sempre estamos dispostos a aprender, porque aprender significa deixar-se questionar quanto à maneira como entendemos a nós mesmos e a vida. E não são todas as pessoas que se deixam questionar; não são todas as pessoas que aceitam se sujeitar a uma revisão das suas ideias e, principalmente, a admitir que elas podem estar erradas quanto à maneira de compreenderem a vida.
            O que Jesus queria ensinar de tão importante aos discípulos? Ele queria que eles estivessem conscientes da proximidade do Seu sofrimento de cruz, e da consequente participação deles nesse sofrimento: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará” (Mc 9,31). Da mesma forma, Jesus quer que nós tenhamos consciência que não há crescimento sem dor, não há vitória sem luta, não há ressurreição sem cruz. Como já refletimos na semana passada, Jesus quer nos tornar conscientes de que o sentido da vida não está em nos desviar de todo tipo de sofrimento, mas em enfrentar todo sofrimento que precisa ser enfrentado se quisermos alcançar um ideal que seja nobre, digno e verdadeiro.
            Ao se tornarem conscientes disso, os discípulos desconversaram e começaram a discutir qual deles era o maior (cf. Mc 9,34). Conosco se dá a mesma coisa. Sempre que a vida quer nos tornar conscientes de situações desagradáveis que temos que enfrentar em vista da nossa libertação, nós nos fechamos a essa verdade e voltamos a nos refugiar no mundo da nossa fantasia, da nossa mania de grandeza, do nosso sonho de nos manter distantes da realidade. Assim também, quando alguém partilha conosco seu sofrimento, nós muitas vezes somos superficiais com a pessoa e procuramos desviar a conversa para assuntos mais “positivos”, como se a dor dela não fosse algo sério e real.
            Jesus questionou a covardia dos discípulos diante da realidade que lhes cabia enfrentar: “O que discutíeis pelo caminho?” (Mc 9,33). Esse questionamento de Jesus vale também para nós. Sobre o quê temos discutido ou conversado com as pessoas ultimamente: sobre valores ou sobre futilidades? Sobre coisas que edificam ou sobre banalidades que para nada servem? Sobre a nossa destinação à vida eterna ou sobre a nossa mera sobrevivência neste mundo? As palavras de São Tiago revelam aquilo que há dentro de muitos de nós: enquanto supostamente seguimos Jesus, alimentamos no coração inveja e rivalidade, sentimentos e atitudes que provocam desordens e toda espécie de maldade em nossa Igreja e na sociedade. A consequência disso é a falta de paz.
            Por que nos sentimos tão sem paz atualmente? Porque fugimos do confronto conosco mesmos. A desordem exterior é reflexo de uma desordem interior; o não suportar os outros é, muitas vezes, consequência de um não suportar a nós mesmos, não suportar o mal estar que há dentro de nós. Perdemos a nossa paz interior porque, ao invés de pautar a nossa vida pela simplicidade, nos tornamos cheio de cobiça, como diz São Tiago. “Cobiçais, mas não conseguis ter. Matais e cultivais inveja, mas não conseguis êxito. Brigais e fazeis guerra, mas não conseguis possuir” (Tg 4,2).
            Os discípulos de Jesus estavam assim. Muitos de nós estamos assim: vivenciando uma espiritualidade mundana. Até mesmo nossa oração é, muitas vezes, uma oração mundana: mesmo quando pedimos algo a Deus, pedimos mal, porque movidos pelo nosso egoísmo e pelos nossos interesses materiais (cf. Tg 4,3): pedimos a cura de uma doença, mas não pedimos para nos libertar de um pecado; pedimos pelo sucesso do filho na faculdade, mas não pedimos por sua vida espiritual; pedimos uma pessoa que nos ame, mas não pedimos um coração capaz de amar os que não se sentem amados à nossa volta; pedimos por nossa sobrevivência pessoal, mas não pedimos pela situação social à nossa volta.  
            Ao colocar uma criança no meio dos discípulos e ao abraçá-la, Jesus nos derruba de cima do pedestal da nossa mania de grandeza, da nossa preocupação inútil e vazia de estarmos entre os vencedores, de sermos percebidos, reconhecidos e aplaudidos pelo mundo, da esperança vazia de termos nossos vídeos, nossas fotos e nossas palavras curtidas por um grande número de pessoas nas redes sociais. O nosso lugar como discípulos de Jesus não é sobre um pedestal, atraindo a atenção das pessoas para nós, na esperança de que elas nos reverenciem. O nosso lugar como discípulos de Jesus é junto das “crianças”, isto é, junto de toda pessoa pequena, insignificante, desprezada e desconsiderada pelo mundo moderno, cujos olhos propositalmente não enxergam os pequenos e cuja sensibilidade é indiferente às necessidades dos que são esquecidos pela sociedade.
            Por ocasião do escândalo da pedofilia no estado de Pensilvânia (EUA), o Papa Francisco escreveu: “Com vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial, assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano que estava sendo causado em tantas vidas. Nós negligenciamos e abandonamos os pequenos” (Carta ao Povo de Deus). “Não soubemos estar onde deveríamos estar”. Jesus quer que nós, sua Igreja, estejamos junto de toda pessoa que precisa ser defendida, protegida, ajudada, socorrida. O nosso lugar não é sobre um pedestal, sentindo-nos superiores aos demais. O nosso lugar é junto daqueles que o mundo despreza e trata com indiferença.
            Estamos nos aproximando das eleições. Há um sentimento quase que comum de desorientação. Não sabemos em quem votar. A Igreja nos orienta neste sentido: votar em quem apresenta sincera adesão aos valores cristãos; defende a vida, desde a concepção até o seu fim natural, defende a família, cuida dos mais necessitados, respeita seus adversários políticos, inspira confiança e credibilidade. Não votar em quem é reconhecidamente desonesto, coloca o lucro acima de tudo, apresenta atitudes agressivas e atenta contra a vida dos pobres.
Ainda a respeito das eleições, não caiamos no erro de ficar presos aos candidatos à Presidência, esquecendo-nos de que a escolha principal é em relação aos candidatos ao Senado (dois senadores para São Paulo) e ao Congresso (deputado federal e estadual). São eles que fazem as leis que ajudam ou prejudicam o país, que protegem ou que destroem a família. Enfim, tomemos cuidado com três atitudes perigosas e que em nada ajudam: votar em branco ou nulo (é mentira que mais de 50% de votos nulos anula uma eleição), votar em quem o líder religioso indica (interesse particular da sua igreja) e votar apenas em quem tem chance de ganhar (o chamado “voto útil”).

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O QUE É MELHOR: SOFRER COM SENTIDO OU VIVER SEM SENTIDO?

Missa do 24º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 50,5-9a; Tiago 2,14-18; Marcos 8,27-35.

            O sentido da vida não está apenas onde nos encontramos agora, mas onde desejamos chegar. O que dá sentido à nossa vida são os nossos sonhos, os nossos projetos, as nossas esperanças. Somente quando temos sonhos e esperança de realizá-los é que conseguimos suportar a situação presente, marcada por uma realidade que não é a ideal, que não é aquela que queremos, nem a que o próprio Deus quer para nós. Portanto, é essencial ter um sonho, uma meta, um propósito, uma esperança.
            Mas a pergunta que o Evangelho nos coloca é a seguinte: como você se comporta quando um obstáculo se interpõe entre você e o seu sonho, entre você e a sua esperança, o seu ideal, a sua meta? Perguntando de uma outra maneira, qual é a sua capacidade de sofrer para alcançar o seu ideal? O quanto você consegue manter-se fiel aos seus propósitos quando o preço dessa fidelidade custa nada menos do que a cruz? Muitas pessoas abandonaram seus sonhos, seus ideais e suas esperanças quando a cruz apareceu no caminho de vida delas. Muitas pessoas desistiram até mesmo de Deus, porque Ele não “funcionou” na vida delas como ausência de dificuldade ou como garantia de sucesso absoluto...
            Há um problema sério com o mundo moderno: a aversão ao sofrimento, a rejeição a qualquer tipo de dor, a repulsa a toda experiência de cruz. E tudo isso por causa da sociedade do bem estar em que vivemos, para a qual a vida só tem sentido se você estiver vencendo, se você estiver do lado dos fortes, distante de todo tipo de fracasso, blindado contra a tristeza e a dor que afetam inúmeras outras pessoas. O problema é que essa cultura do bem estar, além de ser uma ilusão, nos torna frágeis diante da vida, frágeis o suficiente para quebrarmos diante de qualquer pancada e para abrirmos mão dos nossos ideais só porque o acesso a eles não está facilitado. Um dos motivos do aumento do suicídio está aqui: a não aceitação da dor como parte da condição humana, como parte da vida de qualquer pessoa.  
            Jesus tinha um sonho, um ideal, um propósito: salvar a humanidade. E ele também estava consciente de que, para alcançar esse propósito, deveria enfrentar a realidade da cruz. Sendo fiel aos seus princípios, Jesus escolheu não fugir do confronto com a dor, exatamente como o servo da primeira leitura: “O Senhor abriu-me os ouvidos; não lhe resisti nem voltei atrás... não desviei o rosto de bofetões e cusparadas... não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado... A meu lado está quem me justifica... o Senhor Deus é meu Auxiliador” (Is 50,5-9). Quem tem consciência do valor do seu sonho, do seu ideal, jamais desiste dele só porque encontra obstáculos no caminho para alcançá-lo.
            Muito diferente de Jesus, Pedro rejeitou a possibilidade de confronto com a cruz, como se dissesse a Jesus: ‘Tem de haver outra maneira!’ Assim como Pedro, nós preferimos investir nossas energias não no confronto com a realidade, mas na fuga da mesma. Diante do alto custo da fidelidade aos nossos propósitos, nós passamos a negociar nossa fidelidade, na tentativa de fazer cair seu custo e não termos que sofrer tanto para concretizar nossos sonhos. Com isso, nos distanciamos dos nossos ideais e nos perdemos numa vida sem rumo, sem sentido, sem meta, uma vida que se contenta apenas em sobreviver.  
            Uma vez que Pedro se interpôs entre Jesus e o seu ideal, Jesus o mandou sair da frente dele: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens” (Mc 8,33). Uma vez que Pedro disse que Jesus tinha que mudar sua maneira de pensar, Jesus lhe disse: ‘É a sua maneira de pensar que está errada! É a sua maneira de ver a vida que precisa mudar! Você pensa segundo os homens, para os quais a vida tem que ser desfrutada ao máximo, mas Deus entende a vida como uma existência que tem que ser doada em profundidade. Você pensa segundo os homens, para os quais é preciso evitar o confronto com o sofrimento, mas Deus nos ensina que é necessário enfrentar todo e qualquer sofrimento sempre que isso for preciso para se alcançar um ideal que seja verdadeiro, digno e nobre. Você pensa segundo os homens, para os quais a vida só tem sentido quando se está do lado dos fortes e dos vencedores, mas Deus nos ensina que o sentido da vida é colocar-se junto aos fracos, aos crucificados, para oferecer-lhes a nossa solidariedade’.    
            Sabendo que Pedro não era o único a “pensar segundo os homens”, Jesus “chamou a multidão com seus discípulos e disse: ‘Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la’” (Mc 8,34-35). Vivendo em meio a uma imensa multidão chamada “humanidade”, Jesus se dirige particularmente a cada um de nós: “Se alguém quer me seguir”. A fé há muito tempo deixou de ser um seguir o fluxo, um seguir a tradição, para se tornar uma escolha, uma decisão pessoal. Quem escolhe seguir Jesus, tornar-se seu discípulo, deve renunciar a viver a partir do seu ego, que sempre busca aquilo que é do seu interesse, aquilo que é vantajoso para si, e escolher dedicar a sua vida a uma causa maior, ao bem comum, à melhoria do mundo à sua volta. Quem quiser ser fiel a si mesmo e aos seus valores, precisa saber que se confrontará com algum tipo de sofrimento. Quem quiser viver a vida por inteiro, deve aceitar o fato de que a dor nem sempre é opcional; opcional é a forma como escolhemos lidar com ela. Se, movidos pela cultura do bem estar, escolhermos fugir das dificuldades, acabaremos por perder a nossa vida, no sentido de atrofiarmos nosso crescimento e desistirmos de qualquer ideal, sonho ou esperança. Mas, se aprendermos com Jesus a perder benefícios pequenos e ilusórios, para alcançarmos nossos objetivos e realizarmos nossos sonhos, teremos vivido nossa vida em plenitude; teremos salvo a nossa vida da mediocridade, do vazio e da perda de sentido.

            Oração: Deus Pai, diante de Ti quero resgatar meus sonhos, meus ideais, minha esperança. Quero recolocar meus passos na estrada do futuro e da esperança que o Senhor tem para mim e para a humanidade. Perdoa-me pela maneira imatura como tenho lidado com a minha cruz, não aceitando o fato de que não há crescimento sem dor, não há vitória sem luta, não há ressurreição sem cruz.
            Senhor Jesus Cristo, ensina-me a não abandonar meus ideais por causa dos obstáculos que encontro pelo caminho. Ensina-me a não fugir do sofrimento que cabe a mim enfrentar como consequência da minha fidelidade aos valores do teu Evangelho. Torna-me uma pessoa madura na fé, para que eu não me acovarde diante da vida, mas possa vivê-la com intensidade e profundidade, abraçando a cruz que cabe somente a mim carregar.
            Divino Espírito Santo, age com a tua graça na minha mente e modifica a minha maneira de pensar e de interpretar a existência. Não quero mais permitir que o mundo me torne uma pessoa egoísta, cujo único objetivo de vida é o seu próprio bem estar. Quero viver segundo Deus, fazendo da minha vida um dom para os outros. Livra-me das ilusões deste mundo, para que eu possa orientar-me por aquilo que é verdadeiro e eterno. Salva-me de uma vida medíocre, vazia e sem sentido. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

ABRA-SE!

Missa do 23º.dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 35,4-7a; Tiago 2,1-5; Mc 7,31-37

            Jesus cura um homem surdo, que falava com dificuldade. Como anda a nossa capacidade de ouvir? Alguns casais não se escutam mais. A raiva, a mágoa, a decepção ou o pessimismo fez com que as palavras ficassem bloqueadas, represadas dentro da pessoa. Alguns pais não têm tempo para ouvir seus filhos. Alguns pais não estão escutando o grito de socorro de seus filhos, um grito emitido não com palavras, mas com o comportamento e, muitas vezes, com o próprio silêncio e fechamento dos filhos. Enfim, inúmeras crianças e adolescentes não ouvem seus pais, recusando-se a ser educados ou corrigidos, mas mantêm os ouvidos escancaradamente abertos aos seus “amigos” e às redes sociais.
            Apesar de nunca como hoje estarmos nos comunicando com tanta rapidez e facilidade com inúmeras pessoas, a nossa comunicação em família ou no ambiente de trabalho não anda boa. Enquanto alguns não falam o que sentem, porque acham que o outro “já sabe” a razão pela qual eles estão como estão, outros fingem não ouvir e não entender o que está sendo comunicado. Desse modo, nós podemos ter algumas pessoas dentro de uma casa que pouco dialogam entre si, mas cada uma está num cômodo da casa se comunicando com outras pessoas nas redes sociais. Por que será que é mais fácil para nós falar com quem está longe, mas não com quem está perto? Por que será que não conseguimos expressar pessoalmente às pessoas da nossa família aquilo que estamos sentindo, mas nos abrimos e revelamos nossos segredos mais profundos a pessoas “estranhas”, pela internet?        
            Falar sobre aquilo que se sente é importante. Falar liberta, ao passo que reprimir o que se sente adoece. Há pessoas que estão com muita coisa represada dentro delas. Se não houver uma vazão saudável daquilo que está represado, chegará uma hora em que a represa arrebentará, e aí o estrago poderá ser muito grande. Neste mês acontece uma campanha nacional de prevenção ao suicídio, e duas dicas são importantes, neste sentido: 1) Precisamos nos dispor a ouvir a pessoa que não está bem. 2) A pessoa que não está bem precisa ser encorajada a falar sobre como ela está se sentindo. Se ela não encontrar alguém para desabafar, poderá ligar gratuitamente no número 188 (CVV – Centro de Valorização da Vida).   
            O Evangelho de hoje nos convida a sermos 188 para as pessoas que estão à nossa volta. Como aquelas pessoas levaram a Jesus aquele homem surdo que não conseguia se expressar, nós precisamos apresentar a Jesus, por meio da nossa oração, as pessoas que desistiram de ouvir e também as que desistiram de falar. Além disso, nós somos chamados a “tocar” nessas pessoas, comunicando-lhes nossa presença, nosso apoio, nosso afeto. Jesus “tocou” nos ouvidos e na língua daquele homem surdo. Existe a comunicação por meio de palavras e existe a comunicação por meio de gestos e de atitudes. Nós precisamos ser tocados para saber que existimos. Quando foi a última vez que você tocou no seu cônjuge, no seu filho, nos seus pais, nos seus irmãos? Você tem disposição e coragem para se aproximar e tocar numa pessoa que sofre, que se sente rejeitada por todos, que é ignorada devido à indiferença social em que vivemos hoje?
            Depois de tocar nos ouvidos e na língua daquele homem surdo, Jesus “olhando para o céu, suspirou e disse: ‘Efatá!’, que quer dizer: ‘Abre-te!’ Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade” (Mc 7,34-35). Hoje Jesus, por meio da sua Palavra, está tocando em nossa boca e em nossos ouvidos, e dizendo “Abre-te!” Nossos ouvidos se tornaram surdos para a Palavra de Deus, seja porque ouvimos a Palavra desatentos, seja porque a ouvimos com os ouvidos, mas não com o coração, e a palavra “Abre-te!” se dirige muito mais ao nosso coração do que aos nossos ouvidos.
            Contudo, não são somente os nossos ouvidos que precisam se abrir para o Senhor. Nossa língua precisa se destravar. Há inúmeras pessoas necessitando de uma palavra de conforto da nossa parte, uma palavra de ânimo, de coragem, de orientação. “Dizei às pessoas deprimidas: ‘Criai ânimo, não tenhais medo!’” (Is 35,4). No final de cada missa, de cada celebração, cada um de nós é enviado por Jesus a comunicar fé, esperança e amor a tantas pessoas que não têm nenhum contato com o Evangelho. Aqui na missa o Senhor Jesus abre os nossos ouvidos e nos ensina, nos forma como Seus discípulos, para que possamos, ao sair daqui, levar uma palavra de conforto a toda pessoa abatida (cf. Is 50,4). Da mesma forma como não podemos nos fazer de surdos aqui dentro, não podemos nos fazer de mudos lá fora.   
            Portanto, Jesus está dizendo a cada um de nós: “Abre-te!” ‘Abra os teus ouvidos! O falar depende do ouvir. Escute a minha Palavra. Escute o clamor daqueles que sofrem!’ Uma Igreja que não escuta o sofrimento das pessoas não tem nada de significativo a dizer a essas mesmas pessoas. Uma Igreja que não escuta aquilo que a realidade está lhe gritando, tornar-se uma Igreja que fala palavras vazias, palavras sem sentido, palavras que não chegam ao coração das pessoas, palavras que não se traduzem em bálsamo para as feridas da humanidade. “Abre-te!” ‘Abra a tua boca! Fale da minha Palavra ao seu irmão, porque a fé depende do anúncio do meu Evangelho (cf. Rm 10,17), e talvez você seja a única forma de contato que o seu irmão pode ter com o meu Evangelho’.
“Efatá! Abre-te!” – é o clamor de Jesus à nossa Igreja, a cada um de nós. Ao quê estamos fechados? Ao quê precisamos nos abrir?

            Oração: Senhor Jesus, toca nos meus ouvidos e abre o meu coração para que eu aprenda a escutar tua Palavra como verdadeiro(a) discípulo(a). Toca na minha boca e ensina-me a levar palavras de conforto a toda pessoa que se encontra abatida e desanimada. Quero aprender a me comunicar melhor com aqueles que estão perto de mim. Quero, não somente com as minhas palavras, mas principalmente com o meu comportamento e as minhas atitudes, derrubar o muro da indiferença que me separa das pessoas, e construir a ponte do afeto, do toque, da presença, fazendo-me próximo(a) afetivamente daqueles com os quais convivo no meu dia a dia. Abre os meus olhos, Senhor, para que enxergue o que preciso enxergar. Abre os meus ouvidos, para que eu ouça o que preciso ouvir. Toca em meus pés, para que eu caminhe na direção da verdade e não fuja daquilo que sou chamado(a) a enfrentar. Toca em minhas mãos, para que elas se abram para socorrer aqueles que precisam de mim. Toca em meu coração, para romper aquilo que está represado e mim e precisa voltar a fluir. Que as minhas palavras e as minhas atitudes comuniquem fé, esperança e amor a todos aqueles com quem eu cruzar no caminho da minha vida. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi