sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

O QUANTO VOCÊ CONSENTE QUE O MAL HABITE EM VOCÊ?

Missa do 4º. dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 18,15-20; 1Coríntios 7,32-35; Marcos 1,21-28.

            “Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” (Mc 1,27). Uma das características mais marcantes da atuação de Jesus no Evangelho segundo São Marcos é a sua autoridade sobre o maligno: Jesus veio libertar todos aqueles que, ou se deixaram conscientemente acorrentar pelo mal, ou caíram em suas armadilhas sem se dar conta disso. Mas esse exorcismo, essa expulsão do mau espírito na sinagoga de Cafarnaum serve de contraste para um fato preocupante hoje: a admiração que cada vez mais pessoas demonstram pelo mal. Justamente porque nós vivemos numa sociedade pautada na inversão de valores, onde o mal passou a ser propagandeado como bem, e o bem como mal, muitas pessoas decidiram abandonar o bem e permitir que a maldade passasse a morar dentro delas, até mesmo como uma forma de sobrevivência no mundo atual. Portanto, a primeira pergunta que o Evangelho de hoje nos coloca é esta: O quanto o espírito do mal tem habitado em nós com o nosso consentimento?
            O homem que estava ouvindo o ensinamento de Jesus na sinagoga sentiu-se incomodado, da mesma forma que os morcegos se sentem incomodados com a luz. Como cristãos, nós precisamos causar um saudável e necessário incômodo no ambiente em que nos encontramos, no sentido de fazer brilhar a luz do Evangelho na consciência das pessoas que se habituaram a viver nas trevas da maldade. Aliás, nós mesmos precisamos todos os dias nos colocar sob a luz da Palavra de Deus, para que ela revele como está a nossa casa interior, quem é que nela habita: se o Espírito de Deus e ou se o espírito do mal. Neste sentido, é muito importante quando a Palavra de Deus nos provoca algum incômodo; quando, por exemplo, ela nos coloca em crise, tira o nosso sono e nos revela que, em determinado aspecto da nossa vida, nós estamos compactuando com o mal, com o erro, com a injustiça e aquilo precisa ser revisto. Portanto, a segunda pergunta que o Evangelho nos coloca hoje é: Como eu reajo quando me sinto incomodado ou questionado pela Palavra de Deus? Ou ainda: O que costuma me incomodar mais: as trevas da maldade, da mentira e da injustiça ou a luz da bondade, da verdade e da justiça?   
            Incomodado com o ensinamento de Jesus, o mau espírito gritou com ele (v.23). O grito é uma forma de intimidar. Sempre que procuramos nos opor ao mal, ele grita conosco, na tentativa de nos causar medo e nos fazer recuar. Jesus não recuou diante dos gritos do mau espírito e nós também não devemos recuar. Precisamos ter claro que a erradicação do mal em nossa sociedade é, sim, um processo lento e custoso, mas não podemos recuar. Devemos continuar o nosso trabalho de fazer o bem, de promover o bem e de convidar as pessoas a deixarem de viver sob a autoridade do maligno e passarem a viver sob a autoridade de Deus. Além disso, esse grito do mau espírito nos aponta para uma outra questão: grito é sinônimo de barulho, de agitação. Muitas pessoas se acostumaram com isso: elas preferem o barulho, a bagunça, a agitação porque isso está de acordo com a sua própria desordem interior.  
Antes de expulsar o mau espírito daquele homem na sinagoga, Jesus lhe ordenou: “Cala-te!” (v.25). Existem muitas vozes dentro de nós: a voz das nossas preocupações e dos nossos medos; a voz dos nossos desejos e das nossas necessidades; a voz da propaganda, do consumismo e do mundo que constantemente nos pressiona, nos cobra e nos exige; enfim, a voz do nosso pecado. Mas o salmista diz: “Fiz calar e sossegar a minha alma” (Sl 131,2). É tarefa nossa não dar ouvidos a essas vozes que se aproxima de nós para nos perturbar e nos confundir. É tarefa nossa calar e sossegar a nossa alma, para podermos ouvir a voz de Deus em nossa consciência, voz que pode nos devolver orientação, ordem e clareza interior: “Oxalá ouvísseis hoje a sua voz!” (Sl 95,8). Aqui, portanto, temos uma outra pergunta: Eu sou um joguete, uma peteca nas mãos do barulho, da agitação, ou sou capaz de buscar o silêncio diariamente, para colocar em ordem a minha vida, os meus afetos e os meus desejos? Neste sentido, vale à pena recordar as palavras do profeta Isaías: “Paz, paz àquele que está longe e àquele que está perto. Mas os ímpios são como um mar agitado, que não pode acalmar-se, cujas ondas revolvem lodo e lama. Não há paz para os ímpios, diz meu Deus” (Is 57,19-20).
            As pessoas que estavam na sinagoga e assistiram ao exorcismo realizado por Jesus, disseram: “Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” (Mc 1,27). O mal obedece a Jesus porque Jesus sempre buscou viver na obediência ao Pai. Portanto, o recado final do Evangelho para nós é este: o mal só exerce autoridade, só exerce domínio, sobre quem não vive debaixo da autoridade de Deus. São Marcos, ao narrar esse exorcismo, insiste na questão de que Jesus falava com quem tem autoridade (vv.22.27). A autoridade de Jesus é, em primeiro lugar, a sua coerência de vida: Ele sempre procurou viver de acordo com o que falou aos outros. Em segundo lugar, a autoridade de Jesus é fruto da sua obediência ao Pai, da sua escuta e da sua disposição em viver segundo a vontade do Pai. A conclusão é muito simples: quando eu permito que o mau espírito assuma o controle da minha vida, não tem como eu expulsá-lo da vida de uma outra pessoa. Quando eu não aceito viver sob a autoridade de Deus, perco a minha autoridade moral ou espiritual sobre aqueles que me escutam.
            Voltemos ao início da nossa reflexão. O mal é uma realidade concreta em nosso tempo. Ele se manifesta na vida pessoal e social, na política, na economia, nas famílias, nas escolas e até mesmo nas igrejas. Jesus tem o poder de nos livrar do mal, mas essa libertação só acontece quando ouvimos, acolhemos e nos deixamos orientar por sua Palavra, nos submetendo ao que Ele nos diz. Além disso, como discípulos de Jesus, nós também temos a missão de ajudar as pessoas a serem libertas do mal que tem provocado estragos na vida delas. Convivendo com tantas pessoas cuja alma está perdida na sua própria desordem interior, precisamos ajudá-las a silenciar, a criarem espaço em si mesmas para ouvirem a voz de Deus em sua consciência e assim poderem decidir não mais viver debaixo do domínio do mal, mas debaixo do domínio salvífico de Deus.
                 
            Oração: Senhor Jesus, visita o nosso mundo, o nosso país, o nosso local de trabalho, a nossa igreja, a nossa casa, a nossa alma, como visitaste a sinagoga de Cafarnaum, e expulsa o mal que habita em nós. Livra-nos do mal que passou a morar em nós sem nos dar conta disso ou mesmo com o nosso consentimento. Muitas vezes, Senhor, a nossa alma se parece com um mar agitado, cujas águas estão sujas, turvas, porque não se acalmam. Caminha sobre essas águas agitadas, Senhor, e concede-nos a tua paz. Cala a voz do mau espírito em nós! Devolve-nos a Deus. Arranca-nos das mãos do maligno e devolve-nos às mãos do Pai. Concede-nos discernimento, para não nos deixarmos enganar pela voz do mau espírito, mas nos orientarmos a cada momento pela voz do Espírito de Deus em nossa consciência e em nosso coração. Que nós possamos caminhar como pessoas libertas, comunicando a tua paz àqueles que estão perto e àqueles que estão longe, essa paz que é um dom do Pai a todos aqueles que se submetem à autoridade da tua Palavra. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

TORNAR-SE CONSCIENTE DA NECESSIDADE DE CONVERSÃO

Missa do 3º. dom. comum. Palavra de Deus: Jonas 3,1-5.10; 1Coríntios 7,29-31; Marcos 1,14-20.

            “Convertam-se!” Este foi o apelo de Jonas aos habitantes de Nínive. Este foi também o apelo de Jesus aos seus ouvintes, no início da sua pregação. Este é também o apelo de Deus a cada um de nós, que hoje ouvimos sua Palavra: “converta-se!”
            Às vezes acontece de nós ouvirmos que tal pessoa “se converteu” a essa ou àquela igreja ou religião, mas a conversão à qual tanto Jonas quanto Jesus se referem não é uma simples mudança de igreja ou de religião, mesmo porque não são poucas as pessoas que, apesar de mudarem de igreja ou de religião, não mudam suas atitudes. A conversão à qual a Palavra de Deus hoje se refere fala da necessidade de uma mudança interna, uma mudança na forma de pensar e de agir. Além disso, a conversão não é algo que se dá de uma vez para sempre; ela é um processo que acompanha (ou deveria acompanhar) toda a nossa vida, porque sempre precisamos fazer ajustes em nossa caminhada, sempre precisamos rever o quanto estamos em sintonia ou não com a vontade de Deus.
            Os habitantes de Nínive só tomaram consciência de que precisavam se converter, de que precisavam mudar suas atitudes, quando ouviram Jonas dizer: “Dentro de quarenta dias, Nínive será destruída” (Jn 3,4). Todos nós temos resistência em mudar e só existe uma coisa que pode quebrar essa resistência: é quando nos damos conta de que, ou mudamos nossas atitudes, ou seremos destruídos pelos nossos erros; ou mudamos nossas atitudes, ou aquilo que nós mais amamos será destruído pela nossa teimosia em não mudar. Mas, ainda aqui existe um outro problema, uma outra coisa que barra o nosso processo de conversão: é quando não nos deixamos convencer pela voz de Deus em nossa consciência; é quando sabemos (mentalmente) que estamos agindo errado diante da vida, mas não temos vontade de mudar, o que significa uma espécie de suicídio ou de uma enorme falta de responsabilidade perante a vida.
            O fato é que “os ninivitas acreditaram em Deus” (Jn 3,5) e decidiram mudar, evitando assim a sua destruição. Numa outra ocasião, Jesus usou esse exemplo de conversão dos ninivitas para fazer o seguinte alerta: “No dia do julgamento, os habitantes de Nínive se levantarão e condenarão esta geração, porque eles se arrependeram diante da pregação de Jonas, e aqui está alguém maior do que Jonas” (Mt 12,6). Nós podemos cair no erro de nos blindar contra o apelo de conversão menosprezando ou descaracterizando a pessoa que Deus usou para nos fazer tal apelo, mas essa desculpa não “cola”, não justifica, porque, na verdade, quem nos chama à conversão é o próprio Deus, ainda que Ele use de mediações que não nos sejam simpáticas.
            Enquanto Jonas justificou a necessidade de conversão mediante o risco de uma destruição iminente, Jesus justifica a nossa necessidade de conversão por causa da chegada do Reino de Deus: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1,15). Paulo retoma a afirmação de Jesus, de que “o tempo se completou” e esclarece: “O tempo está abreviado” (1Cor 7,29), o que significa que a vida de todos nós está inserida no plano da salvação de Deus, e, segundo esse plano, nós estamos vivendo o que a Escritura chama de “últimos dias” ou de “ultima hora” (cf. 2Pd 3,3-4; 2Tm 3,1-5; 1Jo 2,18). Não é tempo de “enrolar”, de “fazer corpo mole”, de ficar “deitado eternamente em berço esplêndido”, de fazer de conta que não estamos entendendo o que Deus está nos dizendo; é tempo de agir, de tomar decisão, de fazer as mudanças que são necessárias para a salvação nossa e de toda a humanidade.
Não diferente de Jonas e de Jesus, o apóstolo Paulo nos dá um “choque de realidade”, ao afirmar que “aqueles que desfrutam das coisas deste mundo se comportem como se não desfrutassem, porque este mundo passa” (1Cor 7,31). Muitas coisas nas quais nos apegamos e às quais elegemos como fonte de segurança e de sentido para nós cairão, desaparecerão, deixarão de ter sentido, serão destruídas, se perderão e se desgastarão com o tempo. Por isso, enquanto convivemos com tantas coisas que passam, precisamos buscar nos agarrar Àquele que não passa: Deus e o seu Reino.
Algo ainda precisa ser dito a respeito do apelo à conversão, que Jesus nos faz. Ele disse: “Convertei-vos e crede no Evangelho!” Se a nossa segurança não pode estar neste mundo que passa, precisamos lançar a âncora da nossa fé na Palavra que não passa. Crer no Evangelho significa crer no próprio Cristo, pois Ele é o Evangelho, Ele é a boa notícia da salvação de Deus para todo ser humano. Crer no Evangelho significa aceitar aquilo que os evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João nos transmitiram como única Palavra capaz de nos conduzir para a comunhão com Jesus Cristo e com Sua vida (cf. Jo 20,31), lembrando que “o Evangelho é força de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1,16). O apóstolo Paulo nos diz mais ainda: quando ouvimos a “palavra da verdade, o Evangelho” da nossa salvação, somos “selados pelo Espírito Santo” para o dia da nossa redenção (cf. Ef 1,13-14).
Se há algo que ainda precisa ser dito a respeito de “crer no Evangelho” é lembrar que ele deve tornar-se nossa norma de vida, de conduta, configurando-nos a Jesus Cristo. Deus nos conceda, portanto, a graça de nos tornarmos um “Evangelho vivo” para os nossos irmãos e irmãs, e que o Evangelho de seu Filho Jesus Cristo torne-se instrumento diário de revisão das nossas atitudes, nos ajudando a fazer a conversão necessária para a salvação nossa e de toda a humanidade.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

UMA PERGUNTA FUNDAMENTAL: O QUE VOCÊ ESTÁ PROCURANDO?

Missa do 2º. dom. comum. Palavra de Deus: 1Samuel 3,3b-10.19; 1Coríntios 6,13c-15a.17-20; João 1,35-42.

Depois de termos celebrado o nascimento de Jesus (Natal), a sua manifestação aos magos como Salvador de todas as nações (Epifania) e o seu Batismo (última segunda-feira), nós nos deparamos com o início da sua missão e com o chamado (vocação) dos seus primeiros discípulos. Desse modo, o Evangelho de hoje nos coloca diante de uma pergunta fundamental para a vida de todo discípulo de Jesus Cristo: “O que vocês estão procurando?” (Jo 1,38).
Antes de mais nada, essa pergunta diz respeito à nossa vida de fé. O que você está procurando quando vai a uma igreja, ou quando começa a seguir uma religião, ou quando muda de religião ou de igreja, ou quando faz sua oração em casa, ou quando reserva um tempo para ler a Sagrada Escritura? Ao perguntar “o que você está procurando?” Jesus também está perguntando: ‘O que você espera de mim? Quais são as suas expectativas a meu respeito? Por que você decidiu me seguir e se tornar meu discípulo?’
Mas essa pergunta de Jesus também serve para que cada um de nós faça um sério questionamento a respeito da vida, da própria existência. O que eu estou procurando, com a maneira como tenho vivido a minha vida? O que eu estou procurando quando decido me casar, ou quando decido me separar? O que eu estou procurando quando me permito beber ou fazer uso de drogas? O que eu estou procurando quando decido fazer uma (nova) tatuagem ou um corte de cabelo “chamativo”? O que eu estou procurando quando decido fazer uma faculdade, ou prestar um concurso? O que eu estou procurando enquanto navego na internet? O que eu estou procurando quando me permito acessar pornografia na internet ou entrar em salas de bate-papo virtual? O que eu estou procurando quando aceito me corromper, para ganhar dinheiro desonestamente? O que eu estou procurando quando me permito me envolver com uma pessoa casada, prejudicando a minha família e a dela?...
Essa pergunta de Jesus é, ao mesmo tempo, incômoda e libertadora. Ela nos convida a tomar consciência da verdadeira razão que nos leva a fazer aquilo que estamos fazendo. Ainda que nós nem sempre estejamos dispostos a reconhecer os verdadeiros motivos que estão por detrás daquilo que fazemos, esse reconhecimento é importante, seja para confirmar o nosso estilo de vida, seja para modificá-lo, livrando-nos de mentiras e de atitudes que nos mantém imaturos e irresponsáveis perante a vida. Além disso, podemos tirar uma conclusão até certo ponto “negativa” dessa pergunta de Jesus: você normalmente encontra aquilo que procura. Quem procura o bem, encontra o bem; quem procura o mal, encontra o mal. Quem procurar a destruição encontrará a destruição e quem procurar a salvação encontrará a salvação. É uma questão de lógica, de colher aquilo que se semeia; é a lei da vida.
Segundo o texto do livro de Samuel, Deus colocou a Sua voz em nossa consciência para nos orientar em nossa procura pela felicidade, pela realização, pelo sentido da vida. No entanto, essa voz só pode ser ouvida no silêncio. Samuel só começou a ouvir Deus quando era noite, as atividades do santuário haviam terminado e estava tudo em silêncio. Na verdade, nós costumamos evitar esse silêncio porque evitamos nos confrontar com a voz de Deus em nossa consciência. Desse modo, preferimos seguir pela vida sem nos questionar e sem permitir que Deus nos questione, quando poderíamos nos dar a chance de parar, de rever a maneira como temos vivido e de permitir que Deus nos dê uma orientação que devolva sentido e realização à nossa vida.     
            Aos poucos, Samuel foi entendendo que a voz que dentro dele chamava seu nome era a voz de Deus, e ele se abriu a essa voz: “Fala, Senhor, que teu servo escuta” (1Sm 3,10). Assim como Samuel, muitos responderam ao chamado de Deus, mas, tão diferente de Samuel, aos poucos se afastaram da voz originária da sua vocação, e passaram a viver sua vida consagrada segundo a desorientação do próprio coração. Desse modo, tornaram-se pessoas sem intimidade com Deus e incapazes de levar os outros a terem essa intimidade. A vocação de Samuel é um convite a retomarmos as raízes da nossa própria vocação e a voltarmos a dar uma resposta que envolva todo o nosso ser, e não apenas a parte periférica da nossa existência, do nosso tempo e dos nossos afetos. Como o salmista, cada um de nós é convidado a tomar consciência de que o Senhor não nos pede sacrifícios impossíveis, apenas que mantenhamos os ouvidos abertos e o coração obediente à Sua voz, e, quem sabe, possamos responder ao Seu chamado alegremente, livremente, espontaneamente, sem obrigação ou mau humor: “Eis que venho... Com prazer faço a vossa vontade, guardo em meu coração vossa lei!’” (Sl 40,8-9).
           Embora nós tenhamos aprendido a espiritualizar a nossa fé, e as nossas celebrações sejam, quase sempre, vividas do pescoço para cima, como se não tivéssemos corpo, o apóstolo Paulo nos lembra que não existe vida de fé, nem adesão a Deus, nem muito menos resposta vocacional, fora do nosso corpo, isto é, sem considerar a nossa sexualidade. Na verdade, ninguém tira de letra essa tarefa de lidar com a própria sexualidade e de integrá-la no seu caminho de fé, e nós corremos o risco de errar de duas maneiras: ou escancarando a porteira e deixando os sentimentos, desejos e fantasias correrem soltos dentro de nós, ou reprimindo e demonizando tudo o que sentimos, como se fosse possível (e mesmo necessário) anular a nossa sexualidade para podermos viver segundo o que Deus nos pede na Palavra.
            Nós acabamos de viver o tempo do Natal, a festa que nos fala da encarnação do Filho de Deus. Jesus, por ter um corpo semelhante ao nosso, também teve que lidar com sua sexualidade, com seus afetos e seus desejos. A única diferença é que ele, sentindo tudo o que nós sentimos, não pecou (cf. Hb 4,15), isto é, não consentiu que seus sentimentos e desejos o levassem a viver fora da vontade do Pai. Desse modo, o apóstolo Paulo nos convida a não ignorar o nosso corpo, a nossa sexualidade, mas a lembrar ao nosso corpo que ele não é apenas carnal; nele habita o Espírito Santo de Deus, e quando os nossos desejos se rendem às nossas fantasias e se permitem ser reduzidos ao erotismo, nós precisamos ter a coragem de nos perguntar: “O que eu estou procurando, ao permitir que a minha sexualidade seja reduzida ao erótico e eu comece e percorrer o caminho da infidelidade, da prostituição e da banalização do meu corpo ou do corpo do meu semelhante?”
            Os discípulos de Jesus nunca foram e nunca serão homens e mulheres desencarnados, seres angelicais ou espíritos evoluídos, mas homens e mulheres com um corpo e uma sexualidade concretos, pessoas que, enquanto estiverem vivas, terão que dialogar com sentimentos e desejos que desconhecem a verdade de que o corpo em que habitam foi resgatado do pecado, foi comprado pelo sangue do Filho de Deus, e que esse mesmo corpo é chamado a glorificar a Deus, vivendo sua sexualidade de maneira consciente, encontrando na pergunta “O que eu estou procurando?” o meio eficaz para não ir atrás de respostas que não respondem e de compensações que não compensam, porque nos afastam da voz d’Aquele que nos chamou pelo nome e concebeu a nossa existência segundo o Seu desígnio de salvação para o bem nosso e de toda a humanidade.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

COMO É A SUA BUSCA POR DEUS?

Missa da Epifania do Senhor. Palavra de Deus: Isaías 60,1-6; Efésios 2,2-3a.5-6; Mateus 2,1-12

            Segundo o salmista, existe uma voz escondida no coração de todo ser humano, uma voz no mais íntimo de nós, que sussurra: “Procurem a minha face!” (Sl 27,8). Deus colocou no coração de todo ser humano o desejo por Ele, a necessidade de buscá-Lo, o desejo de encontrá-Lo, de modo que todo aquele que se coloca na busca por Deus, suplica: “É tua face, Senhor, que eu procuro. Não escondas de mim a tua face” (Sl 27,8-9).
            A procura dos magos do Oriente pelo menino Jesus nos fala do quão sofrida às vezes se torna a nossa busca por Deus. Por que essa busca às vezes é sofrida? Porque a própria Sagrada Escritura afirma: “Tu és o Deus escondido, o Deus de Israel, o salvador” (Is 45,15). Deus não é o “Deus escondido” porque vive brincando de esconde-esconde conosco. Ele é o “Deus escondido” no sentido de que transcende, ultrapassa todo o nosso entendimento; Ele vai além de todas as nossas expectativas e não aceita ser enquadrado em nossos esquemas religiosos, nem muito menos ser manipulado ou “controlado” por nossa fé.
Apesar disso, Ele, o “Deus escondido”, deixou claro que a nossa busca por Ele nunca é inútil ou em vão: “Eu nunca disse à descendência de Jacó: ‘Procurai-me e buscai-me inutilmente’” (Is 45,19). Da mesma forma, o autor da carta aos Hebreus afirma que “quem se aproxima de Deus (quem procura por Deus) deve crer que Ele existe e recompensa aqueles que o procuram” (Hb 11,6). Essa é a chave para entendermos o Evangelho de hoje: existe uma recompensa para quem busca Deus, para quem se desacomoda e se põe a percorrer o sofrido caminho da fé, atravessando noites escuras, suportando perguntas angustiantes em sua alma, até que possa encontrar-se com Aquele que é a verdade. Sim; a busca por Deus é a busca pela verdade. Por isso, só pode encontrar Deus quem O procura de coração sincero (cf. Sl 145,18).
Para compreendermos esse encontro dos magos do Oriente com Jesus precisamos nos lembrar das palavras do próprio Deus no Antigo Testamento: “Deixei-me encontrar por aqueles que não perguntavam por mim. Deixei-me encontrar por aqueles que não me procuravam. A uma nação que não invocava o meu nome eu disse: ‘Aqui estou, aqui estou!’” (Is 65,1). Essas palavras se referem aos povos pagãos, povos representados aqui no Evangelho pelos magos do Oriente, povos que jamais poderíamos imaginar que estivessem abertos a Deus. Quantas pessoas que nós jamais imaginaríamos que estivessem abertas a Deus foram alcançadas pela graça d’Ele e se abriram à Sua verdade?
Se hoje somos chamados a nos alegrar pela oferta da salvação de Deus em Seu Filho Jesus, oferta feita a todos os povos e acolhida com alegria pelos pagãos, precisamos também considerar o constante perigo do nosso fechamento a Deus, denunciado por Ele mesmo no profeta Isaías: “Estendi as mãos todos os dias a um povo desobediente, que andava por caminho mau, seguindo seus próprios caprichos” (Is 65,2). Deus estende Suas mãos todos os dias, para salvar o ser humano, mas muitos não se dão ao trabalho de estender suas próprias mãos para segurar as mãos de Deus. Muitos até gostariam de ter um encontro íntimo e transformador com Deus, mas não se dispõem a sair do seu comodismo, da sua preguiça espiritual; não se dispõem a buscá-Lo, como os magos. E aqui fica a pergunta: como uma geração como a atual, que aprendeu a receber tudo de mão beijada – ou que exige recebê-lo dessa forma – vai se dispor a buscar Deus?  
O Evangelho é muito claro: na pessoa de Seu Filho Jesus, o Pai continua a estender Suas mãos para salvar todas as pessoas. Alguns, como Herodes, rejeitam essa salvação; outros, como os magos, a acolhem. Além disso, a liturgia de hoje nos fala da mistura da luz com as trevas, sobretudo a primeira leitura e o Evangelho. O conflito entre a luz e as trevas sempre acompanha a humanidade e a vida de cada um de nós. A questão é saber o quanto a escuridão das trevas já fez alguns de nós desistirem de manterem acesa a luz da sua fé, e o quanto a preguiça espiritual de tantas pessoas já nos contaminou a ponto de deixarmos de empreender a nossa busca diária por Deus.
Nós podemos ter duas atitudes diante da escuridão das trevas: ou lamentá-la, ou acender uma luz. Foi graças à luz de uma estrela que os magos do Oriente puderam encontrar Jesus. A luz dessa estrela precisa nos remeter a uma palavra de Jesus, palavra que está sendo especialmente retomada neste Ano do Laicato, ano em que a nossa Igreja busca repensar o papel do cristão leigo em nossas comunidades e em nossa sociedade: “Vós sois a luz do mundo... Brilhe a vossa luz diante das pessoas, para que elas vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,14.16). Nós não nos tornamos cristãos para sermos reconhecidos pelo mundo, mas para fazer brilhar a nossa luz diante das pessoas do nosso tempo, e a nossa luz não é outra coisa senão as nossas boas obras, o nosso esforço diário em nos comportar como Jesus se comportou, lembrando sempre que o brilho da nossa luz deve glorificar o Pai e não a nós mesmos.
Diante de Jesus, o verdadeiro presente de Deus para a humanidade, os magos “abriram seus cofres e ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra” (Mt 2,11). Você, cristão, é convidado a oferecer hoje à Igreja e à sociedade humana o seu ouro, isto é, a preciosidade da sua retidão, da sua honestidade, da sua fé e do seu trabalho voluntário. Você, cristão, também é convidado a oferecer o seu incenso, isto é, a sua presença sagrada, a força da sua espiritualidade, o perfume que emana da luta pela sua santificação diária. Enfim, como cristão, você é convidado a oferecer a sua mirra, o seu dispor-se a estar junto das pessoas que sofrem, colaborando para aliviá-las e consolá-las.     

Oração: Meu Deus, eu procuro a Tua face; procuro a Tua verdade. Tu és o Deus escondido, o Deus que eu não posso manipular e usar segundo os meus caprichos. Quero respeitar o Teu mistério, a Tua transcendência, o Teu sagrado. Livra-me do comodismo e da preguiça espiritual! Concede-me uma fé simples e sincera, pois o Senhor sempre se deixa encontrar por quem O procura de coração sincero. Por mais que a minha busca por Ti seja às vezes sofrida, que eu nunca me esqueça de que o Senhor não apenas existe, mas também nunca deixa sem resposta quem Te busca na oração sincera.  
Agarro-me às Tuas mãos, Pai! Acolho a luz do Teu Filho, imagem do Deus invisível! Acolho o presente que o Senhor oferece a toda a humanidade: a salvação em Teu Filho Jesus. Diante dele dobro meus joelhos, abro o cofre do meu coração e ofereço-me como ouro, incenso e mirra. Ofereço a preciosidade da retidão do meu caráter e do meu trabalho voluntário, para o bem da Igreja e da sociedade; ofereço a força da minha espiritualidade e o perfume que emana da minha luta em me santificar; enfim, ofereço ao Teu Filho o meu esforço em me colocar como presença cristã junto daqueles que sofrem, para confortá-los e reanimá-los.  
 Movido pelo Espírito Santo e imitando a atitude dos magos no Evangelho, eu adoro Aquele a respeito de quem o Senhor disse: “Que todos os anjos o adorem” (Hb 1,6)...

Pe. Paulo Cezar Mazzi