Missa do 24º.
dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 27,33–28,9; Romanos 14,7-9; Mateus
18,21-35.
Na oração do Pai nosso Jesus nos
ensinou a pedir não somente “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”, mas também
“perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido”. Da mesma forma como existe “o pão nosso de cada dia”, existe também
“o perdão nosso de cada dia”, mas este perdão só pode ser exercitado por nós depois
de termos reconhecido e lidado com “a raiva nossa de cada dia”. Portanto, antes
de nos colocarmos diante das exigências do perdão, precisamos conversar sobre a
realidade da raiva em nós.
Primeiro
a raiva, depois o perdão
Eis uma séria advertência da Sagrada
Escritura a respeito da raiva: “Se alguém guarda raiva contra o outro, como
poderá pedir a Deus a cura?” (Eclo 28,3). Para não entendermos de maneira
distorcida a Palavra de Deus, é importante sublinhar que a advertência recai
sobre a atitude de “guardar” raiva, não de “sentir” raiva. De novo aqui é
importante lembrar que nós não escolhemos sentir raiva; nós apenas podemos
escolher a forma como vamos lidar com a raiva que estamos sentindo, e a pior
forma é permitir que ela nos torne tão destrutivos quanto aqueles que destroem
a vida e os valores mais sagrados à nossa volta.
Como
a raiva surge em nós? Ela surge sempre que sofremos uma injustiça ou sempre que
testemunhamos uma injustiça ao nosso redor. A raiva é uma reação natural diante
de algo que atenta contra a nossa vida ou contra a vida de alguém que amamos.
Na verdade, a raiva é uma defesa instintiva que temos dentro de nós; ela é a
força da nossa agressividade, provocada a reagir diante de algo que está nos
prejudicando; ela é também a força que podemos usar para retirar o punhal que
nos atingiu, para que a ferida que se abriu ali comece a ser tratada, curada. Portanto,
a cura de uma ferida passa pelo reconhecimento da raiva que está em nós e pela
mudança na maneira de lidar com ela, e a pior forma de lidar com a raiva,
segundo o Eclesiástico, é permitir que ela passe a morar definitivamente dentro
de nós, transformando-se numa espécie de veneno que nos adoece de maneira
incurável.
Uma
outra dica que a Palavra de Deus nos dá, ao reconhecermos a raiva que
carregamos conosco, é esta: “Lembra-te do teu fim e deixa de odiar” (Eclo
28,6). Tomar consciência de que um dia morreremos, que não levaremos nada deste
mundo e que nos encontraremos com o Deus que retribuirá a cada um de acordo com
a sua conduta (cf. 2Cor 5,10), é um convite a não fazermos justiça por conta
própria, mas deixarmos espaço para que a ira de Deus realize a verdadeira
justiça (cf. Rm 12,19). Portanto, a nossa
raiva deve ceder lugar à ira de Deus, que não deixa nada impune, que tudo julga
com justiça.
Depois da raiva, o perdão
Eis
uma verdade bíblica que nos ajuda a fazer a necessária passagem da raiva para o
perdão: “a ira do homem não é capaz de cumprir a justiça de Deus” (Tg 1,20). Se
a raiva é necessária para nos defender da pessoa que nos causa uma injustiça;
se a agressividade da raiva nos ajuda a arrancar de nós o punhal que nos
atingiu, uma vez retirado o punhal é preciso dar um outro passo em vista da
cura da nossa ferida: o perdão. Só o
perdão cura. Mas no que consiste o perdão? De maneira alguma podemos
confundi-lo com passividade, conformismo, covardia ou indiferença perante o mal
que vemos ao nosso redor. Ao nos convidar ao perdão, Jesus não está nos
incentivando a sermos avestruzes, que enfiam a cabeça na terra fingindo não ver
a injustiça que nos atinge. Perdoar não significa fazer de conta que não houve
dano, mas escolher enxergar a vida para além do dano que nos causaram. Se a
mágoa ou o rancor nos mantém presos ao passado, o perdão nos lança para frente,
nos convida a virar a página da vida e a permitir que ela volte a ter sentido
para nós.
É
preciso ter consciência disso: o perdão
não é algo natural ou espontâneo em nós. Natural ou espontâneo é o ódio, a
raiva, a mágoa. Quem luta para conseguir perdoar luta para superar aquilo que
de mais primitivo o ser humano tem dentro de si: o desejo de vingança. Dizendo
de outra forma, o perdão é uma espécie de “violência’ contra o nosso desejo de
vingança, contra a nossa sede de uma justiça que seja imediata, e nós só nos
disporemos a travar essa luta se tivermos a firme convicção de que o perdão é o único remédio para as feridas
que os outros abriram em nós.
Muitos
são aqueles que tentam fugir da tarefa diária do perdão, alegando que só Deus
pode perdoar; eles são apenas seres humanos e não têm esse “poder”. Porém, a
parábola que Jesus contou deixa muito claro que nós não só podemos como também
devemos perdoar porque já fomos infinitamente perdoados por Deus. Uma pessoa que decide não perdoar é alguém
que está destruindo a ponte sobre a qual um dia terá que passar*. Todos nós
erramos. Todos nós nos enganamos. Todos nós nos afogamos algumas vezes nas
águas profundas da nossa raiva. Portanto, todos nós precisamos de perdão. E não
nos esqueçamos de que, tão difícil quanto perdoar alguém que nos feriu é
perdoar a nós mesmos, assim como perdoar a Deus, por Ele ter permitido que
alguma injustiça nos atingisse. Neste sentido, não são poucos os cristãos que
estão com a sua relação com Deus prejudicada porque não conseguem ou não
aceitam perdoá-Lo...
Perdoar significa soltar o pescoço da
outra pessoa
No
filme A Cabana há uma cena magnífica, quando o pai, carregando em seus braços o
corpo de sua filhinha assassinada, diz em pensamento ao assassino: “Eu perdoo
você. Eu perdoo você”. Ele entrega o corpo de sua filhinha a Jesus, permitindo que
ela finalmente seja enterrada. Esse pai só conseguiu fazer isso depois de ter dialogado
com Deus e compreendido que perdoar aquele assassino significava entregá-lo a
Deus, para que fosse por Ele redimido; perdoar não significava esquecer o que
aquele assassino fez, mas apenas soltar o seu pescoço...
Portanto,
solte suas mãos do pescoço da pessoa que lhe fez ou está lhe fazendo mal.
Entregue-a a Deus, para que ela se depare com a consequência dos seus erros e possa
ser redimida. Peça a Jesus para ajudar você a enterrar o que precisa ser enterrado,
e assim você poderá voltar a se sentir vivo e reencontrar o sentido de querer
estar vivo. O quanto depender de você, reconstrua a cada dia a ponte do perdão.
Um dia você também precisará passar por ela.
* “Aquele que
não perdoa destrói a ponte sobre a qual ele mesmo deve passar” (George Herbert)
Pe.
Paulo Cezar Mazzi
Grata Pe. Paulo... Essa reflexão me ajudou muito! Incrível como a leitura de um texto,igualmente escrito sob a luz do Esp. Santo, pode transformar corações. O meu foi tocado neste exato momento... #gratidão.
ResponderExcluirSó mesmo vivendo verdadeiramente a oração do Pai Nosso e na intimidade com Deus é que torna possível largar o pescoço dos que nos ofendem, pois em nossa pequenez e com nosso orgulho ferido misturado com a raiva que sentimos fica muito difícil. Deus em sua infinita misericórdia nos ensinou esta oração que quando vivida sentimos uma felicidade infinda.Dificil é, mas não impossível, porque Deus refaz todas as coisas, principalmente os rumos de nosso coração.Feliz daqueles que conseguiram largar o pescoço daquele ou daqueles que lhe fizeram mal e mais ainda, largar o pescoço e puxar pro abraço. Só Deus mesmo!!! Paz e Bem.
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