quinta-feira, 23 de outubro de 2025

A HUMILDADE É A PORTA QUE ABRIMOS PARA QUE DEUS POSSA ENTRAR E NOS TRANSFORMAR, ENQUANTO REZAMOS.

 Missa do 30º dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 35,15b-17.20-22a; 2Timóteo 4,6-8.16-18; Lucas 18,9-14.


            Por que nós rezamos? Porque temos consciência da nossa insuficiência enquanto seres humanos. Em outras palavras, só pode rezar quem sente a necessidade de ser salvo. Pessoas que se sentem totalmente seguras, garantidas pelos seus recursos materiais, normalmente não buscam a Deus na oração, a menos que alguma coisa saia do controle delas e as ameace.

            Depois de nos ter ensinado a oração do Pai nosso (cf. Lc 11,1-13) e nos mostrado a importância de insistirmos com Deus na oração (cf. Lc 18,1-8), Jesus hoje nos apresenta duas formas de oração: a primeira, cheia de orgulho e arrogância; a segunda, cheia de humildade; a primeira, feita por um homem que se colocou diante de Deus não para louvá-Lo, mas para louvar a si mesmo por se considerar bom, justo e não necessitado de salvação; a segunda, feita por um homem consciente dos seus pecados e, portanto, profundamente necessitado de salvação.

            Antes de tudo, precisamos prestar atenção para quem Jesus contou a parábola que acabamos de ouvir no Evangelho: “Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros” (Lc 18,9). Confiar na própria justiça significa julgar-se bom o suficiente a ponto de não necessitar ser salvo. Mas o problema maior não é apenas a postura orgulhosa e arrogante diante de Deus, e sim o desprezo pelos outros, por aqueles que julgamos piores do que nós. Quando isso acontece, acabamos por erguer um muro de separação entre nós e essas pessoas, pensando que Deus as vê como nós as vemos.   

Eis a oração do fariseu: ele se coloca diante de Deus convencido de que não precisa da salvação que Deus lhe oferece, porque já a conquistou pelo esforço do seu bom comportamento. Apresenta-se diante de Deus como uma pessoa justa que veio “cobrar” a recompensa pelo seu esforço em ser uma pessoa de bem. O pior em tudo isso é que ele sente que a sua vivência “cristã” o coloca acima dos outros homens, “miseráveis pecadores”, como o cobrador de impostos que, aos olhos do fariseu, não passa de um ladrão e explorador do seu povo.

Diferente do fariseu, o cobrador de impostos, reza a partir da sua verdade. Consciente dos seus erros e da sua necessidade de ser salvo, ele clama a Deus por misericórdia. É um homem que tem consciência da sua indignidade. Na sua oração, ele não se compara com outros homens; apenas reconhece o seu pecado e invoca a misericórdia de Deus. Não podendo agarrar-se ao seu bom comportamento para se salvar – pois seu comportamento não é correto – ele só pode confiar na compaixão de Deus: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!” (Lc 18,13).

A oração do publicano nos lembra a verdade de todo ser humano: somos pecadores, falhos, imperfeitos, e não podemos nos salvar por nós mesmos, mas unicamente nos abrindo à ação do Espírito Santo de Deus. Da mesma forma como nenhuma pessoa doente pode ser curada, se não reconhecer a sua própria doença e não aceitar ajuda, assim nós não podemos sair da oração transformados se não admitimos diante de Deus a nossa impotência em nos modificar pelo nosso próprio esforço. De fato, para Jesus o fruto mais precioso da oração é quando saímos dela “justificados”, isto é, perdoados, reconciliados, salvos. Justamente porque “diante de Deus nenhum ser humano pode se declarar justo” (Sl 143,2), o Pai das misericórdias nos concede a graça da justificação, pela nossa fé em seu Filho Jesus Cristo (cf. Rm 4,25; 5,1.18-19).     

Jesus conclui o seu terceiro ensinamento sobre a nossa vida de oração afirmando que “quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado” (Lc 18,14). A humildade não é vista como um valor, na cultura atual. Pelo contrário, somos constantemente motivados a nos expor, a pisarmos sobre as pessoas para nos destacarmos como fortes e vencedores. O distanciamento da nossa humildade é o distanciamento da nossa verdade. É como uma árvore que, na sua obsessão em crescer e ser vista e admirada pelos outros, perde o contato com as próprias raízes, tornando-se superficial, sem profundidade.

Humilhar-se não significa rebaixar-se, mas se recusar a ser definido a partir de fora, por uma sociedade vazia e que cultua o próprio vazio. Humilhar-se é ter consciência do próprio tamanho, das suas capacidades e dos seus limites; é viver a partir da sua verdade interior; é sustentar-se a partir das próprias raízes que, escondidas no húmus, na terra, dão sustentação interior à pessoa, para que ela dê frutos, independente se as circunstâncias externas são favoráveis ou não.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

REZAR É TAMBÉM LUTAR CONOSCO MESMOS E COM DEUS

 Missa do 29º dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo 17,8-13; 2Timóteo 3,14 – 4,2; Lucas 18,1-8.

 

“Rezar sempre, e nunca desistir” (Lc 18,1). Muitos desistiram de rezar. Muitas mãos não se levantam mais e muitos joelhos não se dobram mais para a oração, apesar do apelo da carta aos Hebreus: “Reerguei as mãos cansadas e fortalecei os joelhos vacilantes” (Hb 12,12). A desistência em rezar tem como causa principal a aparente indiferença de Deus para com as nossas orações. Ele nos ouve? Se nos ouve, por que não nos atende? Se Jesus afirmou, em Lucas 11,11-12, que o Pai nunca nos daria algo inútil (uma pedra em lugar de um pão) ou mau (uma serpente em lugar de um ovo), por que Ele deixou morrer aquele(a) pelo(a) qual suplicamos cura? A única resposta possível para essas perguntas é nos recordar dessa verdade: “Meus pensamentos não são os pensamentos de vocês, nem os meus caminhos são os caminhos de vocês, diz o Senhor” (Is 55,8).

Quando rezamos, nossos olhos se fixam no que está acontecendo agora, mas Deus enxerga o que ainda virá. Além disso, a grande maioria dos nossos pedidos se concentra na vida aqui e agora, nesta vida terrena, mas o propósito de Deus para nós é a verdadeira vida, a Vida Eterna. Toda vez que Ele diz “não” ao nosso pedido, ou “ainda não”, devemos confiar que Ele sabe perfeitamente o que está fazendo. “Rezar sempre, e nunca desistir” (Lc 18,1) vai na direção contrária do imediatismo do nosso tempo. Nós não sabemos mais esperar. No entanto, “os olhos do Senhor estão voltados sobre aqueles que esperam em seu amor” (Sl 33,18); “O Senhor ama aqueles que o respeitam, aqueles que esperam em seu amor” (Sl 147,11).

O que fazer enquanto esperamos pela intervenção de Deus? Rezar, e rezar com insistência, como a viúva do Evangelho fez, ao suplicar ao juiz que lhe fizesse justiça: “Esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!” (Lc 18,5). Rezar com insistência é “aborrecer” Deus, é “cansá-Lo”, até que Ele atenda ao nosso pedido. Jesus nos manda ouvir aquele juiz da parábola: “Escutem o que diz este juiz injusto. E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar?” (Lc 18,7).

Diz o salmista: “Os que esperam em ti não ficam decepcionados; ficam decepcionados os que por um nada negam a sua fé” (Sl 25,3). São palavras que nos encorajam a nunca deixar de esperar no Senhor e por sua intervenção em nossa vida. No entanto, temos que admitir que a razão da nossa desistência em rezar vem da nossa decepção com Deus. Nós esperávamos cura, mas Ele permitiu a morte; nós esperávamos sucesso, mas Ele nos fez provar o fracasso; nós esperávamos subir ao mais alto dos céus, mas Ele nos fez descer ao mais profundo do abismo. Aqui é preciso recordar mais uma vez: a verdadeira oração não consiste em submeter Deus à nossa vontade, mas em nos abrir confiantemente ao Seu plano de amor e salvação para conosco.

Rezar é lutar com Deus. Se o texto do êxodo nos mostra que nossas lutas neste mundo só podem ser vencidas pela força da oração (Moisés de braços erguidos), cada um de nós precisa ter consciência que a oração é uma luta, antes de mais nada, conosco mesmos: precisamos lutar conosco mesmos para rezar; lutar contra a nossa decepção, a nossa falta de fé e de esperança; lutar contra a nossa preguiça; lutar contra o nosso ego, que não aceita se submeter à vontade de Deus. Quando rezamos profundamente, percebemos que o inimigo a ser derrotado não está fora (Amalec), mas dentro de nós.

Que a oração seja também uma luta com Deus fica claro em Gênesis 32,23-33. Durante uma noite inteira, Jacó ficou sozinho e lutou com alguém que personificava Deus. Jacó prevaleceu na luta, de modo que disse ao seu oponente: “Eu não deixarei você enquanto não me abençoar” (Gn 32,27). Essa é a postura que Jesus quer que tenhamos perante o Pai, em nossa oração: não deixar de rezar, até que Ele nos abençoe; agarrar o Pai e não soltar d’Ele, até que nos dê o que sabe ser o mais necessário para a luta que estamos enfrentando.

 Peçamos o auxílio do Espírito Santo. Só Ele pode vir em auxílio da fraqueza da nossa oração e interceder ao Pai (cf. Rm 8,26), segundo aquilo que o Pai deseja nos dar, em vista do nosso bem e da nossa salvação.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi




quinta-feira, 9 de outubro de 2025

A FORÇA INTERCESSORA DE NOSSA SENHORA

 Missa de Nossa Senhora Aparecida. Palavra de Deus: Ester 5,1b-2;7,2b-3; Apocalipse 12,1.5.13a.15-16a; João 2,1-11.

 

            O Evangelho escolhido pela Igreja no Brasil, para celebrar Nossa Senhora Aparecida, é justamente o texto bíblico que revela a força da sua intercessão. Da mesma forma como a rainha Ester intercedeu ao seu esposo pela salvação do seu povo – “Se ganhei as tuas boas graças, ó rei, e se for de teu agrado, concede-me a vida - eis o meu pedido! - e a vida do meu povo - eis o meu desejo!” (Est 7,3) – Nossa Senhora intercede junto ao seu Filho pelo vinho novo, símbolo bíblico da alegria no coração humano, símbolo, sobretudo, do Espírito Santo no coração humano, fonte de alegria.

“Peça à mãe que o Filho atende”. Ouvimos ou falamos muito esta frase. Nossa Senhora conhece nossa falta de vinho. Quando rezamos a ela, pedimos que interceda junto ao seu Filho, para que ele nos socorra e nos conceda o que mais precisamos para aquele momento em nossa vida. Porém, não basta apresentar a Nossa Senhora as nossas necessidades. Precisamos também obedecer à sua orientação: “Façam tudo o que ele lhes disser” (Jo 2,5). Se nos consideramos realmente filhos da Virgem Maria, precisamos seguir o exemplo dela: “Faça-se em mim segundo a tua palavra (ou, segundo a tua vontade” (Lc 1,38).

A intercessão de Nossa Senhora aconteceu durante uma festa casamento, na qual acabou o vinho. Aquele casamento era símbolo do casamento por excelência, que é a união de amor entre Deus e a humanidade (Antigo Testamento), entre Cristo e a Igreja (Novo Testamento). A falta do vinho, isto é, a ausência da alegria no coração humano (cf. Sl 104,15), se deve ao fato de este ter se afastado de Deus e ter se tornado como aquelas talhas de pedra vazias (cf. Jo 2,6). Mas Deus havia feito uma promessa ao seu povo: “Tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei no vosso íntimo o meu espírito...” (Ez 36,26-27).

Aqui, algumas perguntas são necessárias: Quando foi que a alegria começou a acabar no meu relacionamento? Eu esgotei a jarra de vinho, sem me preocupar em reabastecê-la? “Há mais alegria em dar do que em receber” (At 20,35). Quanto eu dou de mim para que não falte alegria no meu relacionamento? Meu coração ainda é de carne, humano, sensível, ou endureceu como pedra, tornando-se indiferente, egoísta e individualista?

“Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (Jo 2,10). A rotina, o desencanto e o desgaste fazem parte de qualquer relacionamento, inclusive em nossa vida espiritual. É aqui que entra a crise. Recordemos, então, as palavras do Papa Francisco sobre “A alegria do amor”: “Não se vive juntos para ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de maneira nova, a partir das possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise implica uma aprendizagem” (n.232).

O “vinho novo” surgiu depois da crise da falta de vinho. Crise também significa “oportunidade”. A falta de vinho foi a oportunidade para Jesus realizar o seu primeiro sinal, como Filho de Deus, e deixar claro que ele pode transformar toda e qualquer situação que confiamos às suas mãos, por meio de sua e nossa Mãe. Nesta Solenidade de Nossa Senhora Aparecida, em que também celebramos o Dia das Crianças, recordemos as palavras de Jesus: “Não impeçais as crianças de vir a mim, pois delas é o Reino dos Céus” (Mt 19,14). Sabemos o quanto nossas crianças estão adoecidas mentalmente devido ao vício do celular, o qual faz crescer sempre mais a ansiedade, a irritabilidade, a falta de concentração, baixa tolerância à frustração, insônia/sono fragmentado, e também a depressão. Não nos esqueçamos de que a plataforma digital mais usada por crianças e adolescentes é o Tik Tok, criado pela China, mas proibido na própria China. Pais que desejam orientar-se quanto ao cuidado e à educação dos filhos podem encontrar uma escelente ajuda no pediatra Daniel Becker, com inúmeros vídeos no You Tube.

Não nos esqueçamos de que a falta de vinho (alegria) na vida das crianças tem como causa principal a ausência dos pais, os quais substituem a presença por coisas materiais dadas aos filhos. Enfim, a cor vermelha do vinho deve nos fazer recordar que o Governo de Israel, nestes dois anos de guerra na faixa de Gaza, matou até agora 20 mil crianças! Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o número de crianças mortas e feridas até agora, em Gaza, é de 64 mil!   

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi    

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

SEM A FÉ, TODOS SEREMOS DERROTADOS PELAS DIFICULDADES DA VIDA

 Missa do 27º. dom comum. Palavra de Deus: Habacuc 1,2-3; 2,2-4; 2Timóteo 1,6-8.13-14; Lucas 17,5-10.

 

            “Os apóstolos disseram ao Senhor: ‘Aumenta a nossa fé!’” (Lc 17,5). A resposta de Jesus é surpreendente: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria” (Lc 17,6). Enquanto os discípulos pedem uma fé maior, Jesus compara fé à menor semente que existe na terra: o grão de mostarda. Portanto, o problema da nossa fé não é o tamanho, mas a confiança na sua eficácia: embora sendo a menor semente da terra, a mostarda se torna a maior hortaliça que existe. Quanto à amoreira, é a árvore cujas raízes são expansivas, agressivas e podem causar danos às calçadas, canos e fundações se não forem controladas. Portanto, arrancar uma amoreira do lugar não é tarefa fácil, mas Jesus usa propositalmente a imagem da amoreira para falar da força da fé: ela remove aquilo que nossas forças humanas não podem fazê-lo.

            A fé é absolutamente necessária para nos mantermos em pé diante dos ventos contrários e das dificuldades da vida: “Se vocês não tiverem fé, não poderão se manter firmes” (Is 7,9). Quem não tem fé é como uma folha seca levada pelo vento da desorientação, do medo e da perturbação: “Na conversão e na calma estava a vossa salvação, na tranquilidade e na confiança estava a vossa força, mas vós não o quisestes” (Is 30,15). Assim como Israel, nós preferimos confiar em nossos recursos humanos, do que nos apoiar unicamente em Deus. Quando fazemos isso, a vida desaba sobre nós.

            A fé não significa crer em uma suposta força positiva do universo, mas crer em Alguém que tem o poder de nos salvar e de transformar toda e qualquer situação. Por isso, as palavras “Se vocês não tiverem fé, não poderão se manter firmes” (Is 7,9) devem ser entendidas como: “Se vocês não se atreverem a se apoiar em mim, jamais saberão que são amparados”. Só quem se joga nos braços de Deus, através da fé, sente a verdade do Seu amparo, da Sua sustentação.

            Hoje, a fé foi reduzida à emoção, de modo que as pessoas mudam de igreja ou de religião quando deixam de “sentir” Deus. Além disso, a fé deixou de ser compromisso com Deus Pai e com o Evangelho de seu Filho, para se tornar isso: “Eventos cheios, pastorais vazias”. Multidões se deslocam para participar de shows católicos ou evangélicos, mas não participam das missas e muitos menos das pastorais em suas próprias comunidades ou paróquias. Não são pessoas de fé, mas uma massa anônima correndo atrás de emoção (“efeito manada” – vão onde todo mundo está indo). Não são construtores do Reino, mas consumidores de emoções espirituais. Jesus nunca se deixou enganar por multidões. Dois exemplos claros: Jo 6 e Lc 14,25-33.   

            O profeta Habacuc nos mostra que a fé muitas vezes é uma luta com Deus: “Senhor, até quando clamarei, sem me atenderes? Até quando devo gritar a ti: ‘Violência!’, sem me socorreres? Por que me fazes ver iniquidades, quando tu mesmo vês a maldade? Destruições e prepotência estão à minha frente; reina a discussão, surge a discórdia” (Hab 1,2-3). O grito de Habacuc é o grito dos cristãos que sofrem e dos ateus que se perguntam: Se Deus existe, por que permite o mal? A oração de Habacuc é a nossa revolta contra o silêncio de Deus diante da dor dos inocentes. Esse silêncio nos machuca e põe em crise a nossa fé, nos tornando conscientes de que nunca iremos compreender os desígnios de Deus. Aqui é importante recordar que “a fé nunca sabe para onde está sendo conduzida, mas ela confia e ama Aquele que a conduz” (Oswald Chambers).          

            Diante da oração de Habacuc, Deus rompeu o Seu silêncio e disse: “Escreve esta visão... Ela refere-se a um prazo definido, mas tende para um desfecho, e não falhará; se demorar, espera, pois ela virá com certeza, e não tardará. Quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (Hab 2,2-4). Deus garante a quem n’Ele crê e n’Ele se apoia que intervirá na história humana, mas essa intervenção não será imediata, como estamos acostumados, devido à rapidez da tecnologia: “se demorar, espera, pois ela virá com certeza, e não tardará” (Hab 2,3). É aqui que a nossa fé é provada, verificada como verdadeira ou não: suportar as demoras de Deus, crendo que, no fim, o Seu desígnio prevalecerá em nossa vida pessoal e na história humana.

“Quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (Hab 2,4). Quem perder a sua fé, se tornará como um arco frouxo, do qual nenhuma flecha pode ser lançada. Sem a fé, nós nos tornamos vivos mortos; o corpo vive, mas a alma definha e o espírito está morto. Sem a fé, somos vencidos por toda e qualquer dificuldade. Sem a fé, não sobreviveremos às provações que já estão aí, características dos tempos finais (cf. Ap 3,10). Somente as pessoas que têm fé sobreviverão a tudo o que já está acontecendo e que virá a acontecer na história humana. Portanto, a fé não nos blinda contra o sofrimento, mas nos dá força para enfrentá-lo.

O apóstolo Paulo chama a fé de “precioso depósito”. Esse depósito deve ser guardado (mantido vivo, protegido, defendido) dentro de nós com o auxílio do Espírito Santo, sabendo que a nossa fé em Cristo Jesus também significa “sofrer por causa do Evangelho”.

Enfim, após esclarecer aos discípulos que a fé é uma questão de qualidade (transportar uma amoreira de lugar) e não de quantidade (do tamanho de um grão de mostarda), Jesus fala da fé como algo concreto: ter fé é ser um servo de Deus, um simples servo, uma pessoa que não contamina a sua fé com ambições de recompensa e nem com a expectativa de retorno imediato, mas faz o que faz por causa do Reino de Deus, por causa do Evangelho, não se deixando abalar em sua confiança em Deus por causa das circunstâncias externas, mas mantendo seus olhos fixos no próprio Jesus, “iniciador e consumador da nossa fé” (Hb 12,2).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

Oração pela fé (Papa São Paulo VI)

 

Senhor, creio em Ti. Eu quero crer em Ti.

Senhor, faze que minha fé seja plena, sem reservas e que penetre em minha inteligência e em meu modo de julgar as realidades divinas e humanas.

Senhor, faze que minha fé seja livre, isto é, que tenha a minha adesão pessoal, aceite as renúncias e os deveres que ela impõe e seja a última instância decisiva de minha pessoa. Creio em Ti, Senhor.

Senhor, faze que minha fé seja certa. Certa pela coerência exterior dos motivos e certa pelo testemunho interior do Espírito Santo. Certa por uma luz que lhe dê segurança, por uma conclusão que a tranquilize, por uma assimilação que a faça repousar.

Senhor, faze que a minha fé seja forte. Que ela não tema a contradição que surge com os problemas, quando é plena a experiência de nossa vida à vida de luz. Que não tema a oposição de quem a discute, a ataca, a rejeita, a nega; mas que ela se robusteça com a experiência íntima de Tua verdade, resista ao cansaço da crítica, fortaleça-se com a afirmação contínua que vence as dificuldades dentro das quais se desenrola nossa existência terrena.

Senhor, faze que minha fé seja cheia de tranquilidade e que dê ao meu espírito paz e alegria, gosto pela oração com Deus e a convivência com os homens, de maneira que, no diálogo com Deus e com o mundo, se irradie a alegria interior de sua posse afortunada.

Senhor, faze que minha fé seja operante e dê à caridade os motivos de sua atuação, de sorte que a caridade seja verdadeira amizade contigo, busca contínua de Ti, contínuo testemunho, contínuo alimento de esperança nas obras, nos sofrimentos, na expectativa da revelação final.

Senhor, faze que minha fé seja humilde e não pretenda apoiar-se na experiência de meu pensamento, mas que se entregue ao testemunho do Espírito Santo e não busque maior garantia a não ser a docilidade à Tradição e à Autoridade do Magistério da Igreja. Amém.

 

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A OPÇÃO PREFERENCIAL PELOS POBRES É BLÍBLICA, E NÃO MARXISTA, COMUNISTA OU SOCIALISTA

 Missa do 26º dom. comum. Palavra de Deus: Amós 6,1a.4-7; 1Timóteo 6,11-16; Lucas 16,19-31.

 

Nos textos bíblicos do final de semana passado, ficou claro que Deus não é indiferente à desigualdade social que existe no mundo, porque ela gera fome, dor e muito sofrimento na vida dos pobres da terra. Hoje, encerrando o mês da Bíblia, tomamos consciência mais uma vez de que a Sagrada Escritura não nos oferece somente consolação e orientação, mas também nos questiona em relação ao nosso modo de viver, em um mundo onde 20% das pessoas desfrutam de 80% das riquezas, enquanto que 80% da população mundial tem que tentar sobreviver com 20% das riquezas.

Deus não criou pessoas ricas e pessoas pobres; Ele criou os seres humanos. A riqueza e a pobreza foram produzidas pela maioria dos homens que estiveram no poder, em todos os tempos. Diante dessa diferenciação entre ricos e pobres, Deus claramente toma partido: Ele se coloca do lado dos que sofrem e faz sérios alertas aos ricos, não porque sejam ricos, mas porque são indiferentes aos pobres. O texto do profeta Amós deixa isso evidente: “Ai dos que vivem despreocupadamente... que dormem em camas de marfim, deitam-se em almofadas, comendo cordeiros do rebanho e novilhos do seu gado; os que bebem vinho em taças, e se perfumam com os mais finos perfumes e não se preocupam com a ruína dos pobres. Eles irão para o desterro..., o bando dos gozadores será desfeito” (citação livre de Am 6,1.4.6.7).

A expressão bíblica “Ai” diz respeito a um lamento fúnebre. Pessoas que ostentam sua riqueza e seu alto poder de consumo, que pagam valores absurdos em produtos de marca só para mostrarem aos outros que elas podem comprá-los e que, ao mesmo tempo, se mantêm o mais distante possível dos pobres e de todos os que sofrem, “irão para o desterro” (Am 6,7), ou seja, serão arrancadas da sua terra e levadas escravas para uma terra estrangeira (Babilônia). Esse duro julgamento sobre os ricos egoístas tem uma razão: o luxo e esbanjamento deles resultam da exploração dos mais pobres e dos roubos cometidos contra os fracos. Para o nosso Deus, ninguém tem o direito de viver uma vida cômoda e confortável sem se preocupar com a miséria e o sofrimento que afligem os seus irmãos. Resumindo, Deus nunca estará do lado daqueles que não se importam com o sofrimento dos seus irmãos. 

Vejamos agora como Jesus se posiciona diante da desigualdade social do seu tempo. A conhecida parábola do rico (sem nome) e do pobre Lázaro (nome que significa “Deus ajuda”) é dirigida especificamente aos fariseus, homens religiosos “amigos do dinheiro” (Lc 16,14). Pessoas religiosas “amigas do dinheiro” são uma contradição, pois tanto o Pai quanto o Filho são “amigos dos pobres”, daqueles que os “amigos do dinheiro” exploram e mantém subjugados a uma vida de privação e sofrimento.

Jesus descreve a imagem da desigualdade social: um rico que se vestia de púrpura e linho puro (vestes muito caras) e que se banqueteava esplendidamente todos os dias, e o pobre Lázaro, que se “vestia de feridas”, cujo “banquete” era os pedaços de pão que, segundo o costume, se utilizavam para limpar as mãos e que, em seguida, eram atirados para debaixo da mesa para serem comidos pelos cães da família. Ignorado pelo rico, Lázaro recebia a atenção dos cães que vinham lamber-lhe as feridas.

Da desigualdade na terra, fabricada pelo egoísmo dos mais ricos, Jesus passa para a “desigualdade” na vida após a morte, uma desigualdade muito bem recordada no filme “Gladiador”: “O que fazemos nesta vida, ecoa na eternidade”. Ironicamente, a situação se inverte: o pobre Lázaro agora encontra-se no céu (seio de Abraão, pai na fé dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos), enquanto o rico fica enterrado, na região dos mortos, pois, quem na vida terrena viveu em função das coisas terrenas só pode ter como destino após a morte ficar enterrado.

O rico, que sempre ignorou o pobre Lázaro à sua porta agora o vê, o enxerga no céu. Atormentado pela sede, ele pede a Abraão que mande Lázaro, com o dedo humedecido em água, para lhe refrescar a língua. Mas Abraão explica que isso não é possível, por causa do abismo que existe entre o céu e região dos mortos, o mesmo abismo cavado pela desigualdade social que há no mundo. Desesperado, o rico pede a Abraão que mande Lázaro de volta à terra, para alertar os seus irmãos, ricos e egoístas, a serem solidários com os pobres. Abraão responde que os que estão na terra já têm a Sagrada Escritura (Moisés e os Profetas), como orientação. Ninguém que partiu desta vida voltará para dar qualquer aviso aos seus parentes neste mundo.

A parábola que Jesus nos contou não é sobre o que nos espera na vida futura, mas sobre a forma como devemos viver enquanto caminhamos sobre a terra.  Os bens que Deus nos confia pertencem a todos e devem ser partilhados com todos os nossos irmãos. Se nos fechamos em nosso egoísmo, na autossuficiência, e nos tornamos indiferentes aos que sofrem, teremos falhado completamente o sentido da nossa existência. 

O grande pecado do “rico” foi se tornar completamente indiferente ao sofrimento do pobre Lázaro. A indiferença nos desumaniza. Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de sentir compaixão, de chorar com os que choram e de rir com os que riem; passamos pelo irmão que sofre sem ver, ou como se o sofrimento do outro não nos dissesse respeito. Jesus deixou bem claro que o Pai não está de acordo com a nossa insensibilidade diante do sofrimento, com a nossa indiferença face ao irmão necessitado, com o egoísmo que nos leva a olhar apenas para o nosso bem-estar, com o esbanjamento dos bens que pertencem a todos os homens.

Uma última palavra. A Teologia da Libertação, tão atacada por católicos conservadores, é a resposta de uma Igreja fiel ao Evangelho de Jesus Cristo. Assim como o Pai (no Antigo Testamento) e o Filho (no Novo Testamento) fizeram uma clara opção preferencial pelos pobres, assim a Teologia da Libertação também o fez. E isso, não em nome do marxismo, do comunismo ou do socialismo, mas em nome da fidelidade ao Evangelho de nosso Senhor.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

COMO ANDA A SUA RELAÇÃO COM O DINHEIRO E COM OS MAIS POBRES?

 Missa do 25º. dom. comum. Palavra de Deus: Amós 8,4-7; 1Timóteo 2,1-8; Lucas 16,1-9.

 

                A Sagrada Escritura nos revela não somente quem é Deus, mas que o Deus em quem nós cremos tem uma sensibilidade muito grande com os pobres, com os que sofrem. Através do profeta Amós, Deus faz duras críticas às pessoas que exploram os pobres, aos que causam a prostração dos pobres da terra (v.4). Causar prostração significa derrubar a pessoa, esgotá-la, explorá-la, adoecê-la, sugar suas energias. Quem são as pessoas que prostram os pobres da terra? Segundo o profeta Oseias, são alguns empresários que pagam salários muito baixos aos seus funcionários; políticos que trabalham pelo favorecimento dos mais ricos e em prejuízo dos mais pobres (“dominam os pobres com dinheiro e os humildes com um par de sandálias”); comerciantes que “diminuem medidas, aumentam pesos e adulteram balanças” (cf. Am 8,5); e o agro, que põe à venda o refugo do trigo, sendo que o refugo pertence aos pobres, conforme está escrito: “Quando fizerem a colheita da sua terra, não colham até às extremidades da sua lavoura, nem ajuntem as espigas caídas da sua colheita. Deixem-nas para o necessitado e para o estrangeiro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 23,22).     

            A condenação de Deus para com os que exploram os pobres não significa romantizá-los e não enxergar que alguns deles são desonestos, mal intencionados e que exploram as empresas nas quais trabalharam, por meio de advogados desonestos. Não podemos fazer de conta que não existem casos em que empresas chegam a falir por causa de ações trabalhistas injustas e absurdas. Embora existam pobres assim, não podemos cair no erro de generalizá-los como pessoas de má vontade e que simplesmente não querem trabalhar. Do mesmo modo como há ricos desonestos e corruptos, há pobres assim também.    

           Justamente porque o Pai sempre teve uma atenção particular para com os pobres da terra, o Filho a teve também. Jesus veio para salvar a todos, mas sempre dedicou a maior parte do seu tempo diário para estar com os pobres, sentir suas dores e levar-lhes uma palavra de esperança: “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20). A preocupação de Jesus com os pobres joga por terra o discurso moralista e espiritualista de que a missão da Igreja é salvar almas, e não se envolver em questões sociais que causam desigualdade social e aumento do empobrecimento em muitas pessoas. Portanto, a opção preferencial pelos pobres não é coisa de padre, bispo ou Papa comunista, mas de padre, bispo ou Papa fiel a Jesus Cristo e ao seu Evangelho.

            No Evangelho de hoje Jesus nos propõe uma parábola que mexe com a nossa maneira de pensar a vida e de dar prioridade a muitas coisas – ou seria uma só? (ganhar dinheiro, ficar rico) –, nos esquecendo do essencial. Um administrador, descoberto na sua desonestidade, foi colocado contra a parede: “Presta contas da tua administração, pois já não podes mais administrar meus bens” (Lc 16,1). Na visão de Jesus, todos nós somos administradores, pois Deus nos confiou bens como saúde, liberdade e recursos financeiros para a nossa sobrevivência neste mundo. No dia do nosso julgamento, Jesus, constituído pelo Pai juiz dos vivos e dos mortos (cf. At 10,42; 2Cor 5,10), nos perguntará: ‘Como você administrou a sua vida? Como você administrou seus bens? Você se lembrou de socorrer os pobres em suas necessidades?’.

            Quando o administrador infiel recebeu o aviso de que seria mandado embora, começou a pensar no seu futuro – o que significa que nós precisamos pensar na nossa salvação. O administrador chegou à mesma conclusão que Jesus quer que nós cheguemos: a nossa salvação depende da forma como tratamos os pobres da face da terra: “Já sei o que fazer, para que alguém me receba em sua casa quando eu for afastado da administração”. Então ele chamou cada um dos que estavam devendo ao seu patrão. E perguntou ao primeiro: “Quanto deves ao meu patrão?” Ele respondeu: “Cem barris de óleo!” O administrador disse: “Pega a tua conta, senta-te, depressa, e escreve cinquenta!” (Lc 16,4-6).  

            Os devedores, na parábola de Jesus, representam os pobres. O administrador desonesto representa a pessoa que está disposta a fazer de tudo para ser salva, isto é, para entrar no Reino de Deus. Numa tentativa de atenuar o escândalo dessa parábola, muitos pregadores afirmam que o administrador mandou os devedores abaterem da dívida aquilo que seria o seu lucro como administrador. Essa maneira de ver acaba por trair a intenção de Jesus, que é nos escandalizar, no sentido de nos perguntar: ‘Até onde você iria, para ser salvo? Do que você seria capaz, para recuperar a sua salvação?’.

            Eis o escândalo dessa parábola: o administrador, que já havia lesado seu patrão uma vez, o lesou pela segunda vez, diminuindo a dívida dos pobres, com a esperança de que eles o recebessem em suas casas quando fosse despedido. Jesus conclui a parábola dizendo: “E o senhor elogiou o administrador desonesto, porque ele agiu com esperteza. Com efeito, os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz” (Lc 16,8). Quem é o “senhor” que elogiou a esperteza do administrador? Obviamente que não foi o seu patrão, mas o “Senhor Jesus”, que se alegra quando nos vê recolocando em ordem os nossos valores e dando prioridade à nossa salvação e não ao desejo comum de riqueza, implantado em nós pelo sistema capitalista.

            Voltemos por um instante ao perigo de romantizar os pobres. A grande maioria de nós sonha em ficar rico, acreditando que o dinheiro nos garante não só sobrevivência no presente, mas, principalmente, segurança em relação ao futuro. Por isso ser verdade, Jesus faz um lamento: ‘As pessoas que buscam se enriquecer são muito mais espertas do que os meus discípulos de todos os tempos, que não têm a mesma esperteza no que diz respeito à sua vida espiritual e à própria salvação’.

            Concluindo a parábola, Jesus nos dá um importante conselho: “Usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois, quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas” (Lc 16,9). Para Jesus, todo dinheiro é sujo, desonesto, injusto, até aquele que nós ganhamos trabalhando de maneira honesta. Todo dinheiro é injusto porque provém de um sistema que privilegia os ricos e prostra por terra os mais pobres. Seja pouco, seja muito, o dinheiro que temos precisa ser destinado não somente à nossa sobrevivência, mas ao socorro dos mais pobres. São eles que nos receberão nas moradas eternas. Essa revelação de Jesus é surpreendente! Quem estará na porta do Céu para nos receber não será São Pedro, mas os pobres que nós ajudamos (ou que, infelizmente, ignoramos e não nos preocupamos em ajudar).

           

            Pe. Paulo Cezar Mazzi    

 

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

QUAL A IMPORTÂNCIA DA IMAGEM DO CRUCIFICADO?

 Festa da Exaltação da Santa Cruz. Palavra de Deus: Números 21,4b-9; Filipenses 2,6-11; João 3,13-17.

 

Celebramos a festa da “Exaltação da Santa Cruz”. Não exaltamos o sofrimento, nem as cruzes de cada dia. Exaltamos o que aconteceu na Cruz: a fidelidade e a entrega radical de uma Vida em solidariedade com todos os crucificados do mundo. A imagem do Crucificado nos diz: “Eu estou com todos os que sofrem”.  

A Cruz de Jesus foi prefigurada, no Livro dos Números, pela imagem da serpente de bronze. A caminhada pelo deserto dos escravos hebreus libertados do Egito foi sofrida. Por isso, a reação deles foi reclamar e esquecer tudo o que Deus havia feito por eles, ou seja: ingratidão. “Porque nos fizestes sair do Egito, para morrermos neste deserto? Aqui não há pão nem água e já estamos com nojo deste alimento miserável” (Nm 21,5). Esse “nojo” que os hebreus sentiram pelo maná que Deus fez descer do céu para que eles não morressem de fome e pudessem caminhar firmemente em direção à Terra Prometida está presente em nós também. A propaganda de consumo nos faz olhar para o que ainda não temos e desprezar o que temos. Desse modo, vivemos insatisfeitos e temos nojo da nossa rotina e da vida que levamos. Ao lamentar o que ainda não temos, nos tornamos ingratos para com a vida e para com o próprio Deus. No lugar da gratidão entra a reclamação e o amargor. Quanto mais reclamamos, mais a vida fica pesada.

A resposta à reclamação e ingratidão dos hebreus foi o surgimento das serpentes venenosas. Esse veneno tem vários nomes: o veneno do egoísmo, da violência, da injustiça, da exploração, do orgulho, da ambição, da mentira, do medo, da maldade... A cura para o veneno que nos adoece passa por uma atitude: olhar para o alto, onde está a imagem de uma serpente de bronze. Ela simboliza a bondade, a misericórdia e o amor de Deus pelo seu povo. A serpente de bronze levantada sobre uma haste é um símbolo de Jesus levantado na Cruz: “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).  

A imagem de Jesus Crucificado é fonte de cura para nossas doenças: “Por suas feridas fostes curado” (1Pd 2,24). Mas a cura que precisamos não acontece sem a nossa participação, como nos lembra Hipócrates, pai da medicina: “Antes de curar alguém, pergunte se ele está disposto a desistir das coisas que o deixam doente”. A Cruz de Cristo não é um símbolo mágico, mas um questionamento: qual é a minha responsabilidade na doença que está me acometendo? Em outras palavras, as nossas opções erradas têm consequências que nos fazem sofrer; esse sofrimento não deve ser atribuído a Deus, mas sim às nossas escolhas egoístas e aos efeitos que elas têm na nossa vida.

O salmo de hoje nos revela o quanto somos parecidos com os hebreus que andavam pelo deserto: “Quando os feria, eles então o procuravam, convertiam-se correndo para ele;  recordavam que o Senhor é sua rocha e que Deus, seu Redentor, é o Deus Altíssimo. Mas apenas o honravam com seus lábios e mentiam ao Senhor com suas línguas; seus corações enganadores eram falsos e, infiéis, eles rompiam a Aliança” (Sl 78,34-37). Em outras palavras, o que nos traz para Deus é mais a dor do que o amor. Quando a vida está boa, nos esquecemos d’Ele; quando fica ruim, O procuramos; quando volta a ficar boa, O esquecemos novamente.

O apóstolo Paulo fala da Cruz de nosso Senhor como “aniquilação” ou “despojamento” (“kenosis” – v.7). Cristo abriu mão da sua condição divina para vestir a fragilidade dos seres humanos e tornou-se homem: experimentou nossas dores e limites, conviveu com os nossos dramas e nos indicou o caminho que leva à salvação, fez-se servo dos homens. Como se tudo isso não bastasse, desceu ainda mais: foi contestado, preso, condenado e sofreu uma morte infame na Cruz, a morte reservada aos malditos e abandonados por Deus (v.8), segundo a mentalidade da época. Exatamente porque Jesus nos amou até o fim, Deus Pai o ressuscitou e o exaltou, dando-lhe um nome que está acima de todo nome: “Senhor”, o que significa que Jesus está revestido do poder e da autoridade do Pai para salvar a humanidade inteira (“os céus, a terra e os infernos”).

No Evangelho de hoje, Jesus aplica a si mesmo a imagem da serpente de bronze. Como ela, Jesus será, para todos aqueles que o contemplarem, sinal visível do amor de Deus; aliás, mais do que a serpente de bronze, Jesus será, para aqueles que nele creem, fonte de vida eterna! A Cruz de Cristo sempre deve nos lembrar desta verdade fundamental: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Portanto, sempre que sentirmos que Deus não nos ama, olhemos a imagem do Crucificado. Mais ainda, sempre que nos sentirmos condenados por causa de algum pecado que cometemos, olhemos para o Crucificado e nos lembremos: “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). Jesus veio oferecer a todos os homens, sem exceção, a Vida definitiva. Sua Cruz nos ensina que só quando amamos até o fim é que o mal pode ser vencido.

Uma última palavra. Ninguém pode se considerar cristão quando busca a comunhão com Deus, mas se afasta do drama de quem está crucificado. Não podemos separar Deus do sofrimento dos inocentes; Ele sofre nos seus filhos e filhas. A cruz ou o crucifixo que carregamos no peito ou tatuamos no corpo se torna hipocrisia religiosa, se não estamos dispostos a fazer descer da cruz aqueles que estão dependurados nela.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi