quinta-feira, 20 de novembro de 2025

NÃO EXISTE CONDENAÇÃO PARA QUEM ESCOLHE VIVER SOB O DOMÍNIO ESPIRITUAL DE CRISTO

Missa de Cristo, Rei do Universo. Palavra de Deus: 2Samuel 5,1-3; Colossenses 1,12-20; Lucas 23,35-43.

 

            Hoje se dá o enceramento do ano litúrgico. Cada celebração dele nos ensina que a nossa vida neste mundo, marcada pelo tempo cronológico, está inserida num tempo maior, que nos ultrapassa, o tempo chamado “kairós”, palavra grega que significa “o momento certo” ou “o tempo oportuno”, tempo onde Deus realiza a sua salvação na vida de cada um de nós. Esse tempo de Deus tem como horizonte final restaurar todas as coisas em seu Filho Jesus Cristo. Uma vez que “tudo foi criado por meio dele (Cristo) e para ele” (Ef 1,16), Deus Pai “quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres, os que estão na terra e no céu, realizando a paz pelo sangue da sua cruz” (Ef 1,19-20).

            Existe uma afirmação bíblica que nos deixa desconcertados, quando proclamamos que Jesus Cristo é o rei do universo: “O mundo inteiro está sob o poder do Maligno” (1Jo 5,19). João, ao afirmar isso, está dizendo que todos aqueles que não aceitam livremente se colocar debaixo do domínio de Cristo (obediência ao seu Evangelho), acabam sofrendo uma dominação imposta pelo Maligno. Ora, o Maligno é o divisor: aonde ele exerce o domínio, cria conflito. Esse conflito se encontra no coração de muitas pessoas e igualmente em muitas famílias e locais de trabalho. Somente quando deixamos os sentimentos de Jesus (cf. Fl 2,5) reinarem sobre nós é que podemos nos beneficiar da reconciliação que o Pai nos oferece, reconduzindo-nos à Sua paz.

            A leitura de Samuel 5,1-3 nos fala do momento em que todo o país de Israel decide se colocar sob o senhorio de Davi, reconhecendo-o como rei. Até então, Israel era dividido entre reino do norte e reino do sul, uma divisão que sempre prejudicou a vida das pessoas e enfraqueceu o país na sua política, na sua economia e também na sua religião. Quando o rei Davi unificou o país, os israelitas voltaram a ter paz. Davi foi “um homem segundo o coração de Deus” (cf. 1Sm 13,14). Mas, no auge do seu reinado, não dominou os seus desejos e cometeu adultério, tentando depois escondê-lo de todos, a ponto de mandar matar a esposo da adúltera (cf. 2Sm 11 – 12). A partir desse momento, Davi recebeu o anúncio da futura divisão do reino que ele tanto lutou para unificar.

            O sucesso e o fracasso do rei Davi nos ensinam que nenhum homem pode pretender ser rei, isto é, exercer domínio sobre pessoas ou situações, quando ele não sabe dominar a si mesmo. O contrário do domínio sobre si é aquilo que assistimos na vida política do mundo: escândalos sexuais e financeiros. Os roubos bilionários, que às vezes são descobertos, têm uma ligação direta com a vida promíscua de políticos e empresários corruptos.

            Se o rei Davi traiu a sua identidade de “homem segundo o coração de Deus”, Jesus é verdadeiramente o Filho segundo o coração do Pai. Sendo verdadeiramente homem, ele escolheu viver longe dos centros de poder, tanto político quanto religioso. Embora tenha vindo para libertar o ser humano de todo tipo de domínio injusto, doentio e destrutivo, Jesus encontrou muitas pessoas fechadas à sua proposta de salvação: “Não queremos que esse homem reine sobre nós” (Lc 19,14).

O trono de Jesus, por excelência, foi a cruz. Exatamente ali a sua realeza foi questionada três vezes: “Salve-se a si mesmo” (Lc 23,35); “Salva-te a ti mesmo!” (Lc 23,37); “Salva-te a ti mesmo e a nós!” (Lc 23,39). Nós também pensamos a vida dessa forma: salvar a nós mesmos. Quanto aos outros... Um exemplo claro. Os mesmos super-ricos que  esgotam os recursos naturais e fazem campanha contra a preservação do meio ambiente, unicamente para aumentarem o próprio capital, estão se preparando para o que eles mesmos chamam de “grande apocalipse”, construindo bunkers (construções de ferro e concreto subterrâneas) e estocando comida e água para sobreviverem às catástrofes provenientes das mudanças climáticas, as quais são negadas por eles (Assista ao vídeo de Átila Iamarino: “O que os BILIONÁRIOS não te contam” – Youtube).

Jesus não é o rei “salve-se a si mesmo” porque ele não veio “se” salvar, mas salvar a humanidade de si mesma (pecado pessoal) e da tirania dos reis do mundo (pecado social). Além disso, o domínio salvífico de Jesus só pode ser experimentado por quem se submete à verdade do Evangelho, como ele mesmo afirmou: “Todo aquele que comete pecado é escravo do pecado. Se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres” (cf. Jo 8,34.36). Essa libertação foi experimentada por um homem que, assim como Jesus, estava condenado à morte: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”. Jesus lhe respondeu: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,42-43).

Na sua carta aos Romanos, ao apóstolo Paulo afirma: “Não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus” (Rm 8,1). Muitas vezes já nos sentimos e, certamente, ainda vamos nos sentir condenados: uma doença incurável; uma culpa que não nos abandona; uma situação de penúria na vida financeira; a solidão pelo término de um relacionamento; um vício que não superamos; a voz do acusador (Maligno), que tenta nos fazer desacreditar do perdão de Deus e cancelar a nossa esperança de salvação, etc. Em todas essas situações nas quais nos sentimos “condenados”, precisamos clamar como o ladrão na cruz: “Lembra-te de mim”.

“Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43). O Reino do Pai e do Filho não é para quem não tem nenhuma condenação, mas para quem não aceita morrer condenado a nada, e por isso recorre ao perdão do Rei; e também por isso decide viver cada dia de sua vida não mais carregando o peso de uma condenação, mas liberto por Aquele que o Pai enviou não para condenar, mas para salvar.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

HÁ UM SENTIDO MAIOR POR DETRÁS DE DESTRUIÇÃO DE TODAS AS COISAS

 Missa do 33º dom. comum. Palavra de Deus: Malaquias 3,19-20a; 2Tessalonicensses 3,7-12; Lucas 21,5-19. 

 

Estamos caminhando para o final do ano litúrgico, o qual será encerrado no próximo domingo, com a festa de Cristo, Rei do Universo. Por isso, as leituras de hoje, sobretudo o Evangelho, são leituras “escatológicas”. Escaton é uma palavra grega que significa “o fim”. Trata-se do evento final do plano divino para a criação e toda a humanidade.  

No Antigo Testamento, os profetas anunciavam o “Dia do Senhor”, um dia de ira, onde Deus viria para fazer justiça aos justos e destruir os injustos. Uma vez que Jesus afirmou que “o Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo julgamento” (Jo 5,22), o Novo Testamento passou a anunciar o “Dia do Senhor” como “Dia do Senhor Jesus”, dia da Parusia, da segunda vinda de Cristo, o qual virá como Juiz (julgar significa separar). Ele separará a humanidade, recolhendo os justos como trigo no celeiro de Deus e esmagando os injustos como uvas, “no grande lagar do furor da ira de Deus” (cf. Ap 14,14-20). A cor da uva – vermelho – significa que todos aqueles que derramam sangue sobre a terra (violência, destruição, morte), terão o seu sangue derramado, isto é, serão condenados.

O profeta Malaquias nos fala do “Dia do Senhor” como um fogo que destruirá as pessoas injustas e más como palha. Ao mesmo tempo, esse fogo do julgamento de Deus se tornará “sol da justiça” para os que perseveraram no bem. Já o salmista nos convidou a confiar que “O Senhor virá julgar a terra inteira; com justiça julgará”. A impunidade e a injustiça que pairam sobre a Terra não têm a última palavra.

No Evangelho, Jesus dialoga com pessoas que estavam maravilhadas com a beleza e suntuosidade do Templo de Jerusalém. Hoje também as pessoas se maravilham com muitas coisas: Inteligência Artificial, celulares e computadores de última geração, carros elétricos, robôs inteligentes etc. Mas, para quem quer que esteja encantado com a evolução da ciência e da tecnologia, Jesus questiona e alerta: “Vocês admiram estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído” (Lc 21,6).

Quantas vezes a vida já nos colocou diante da realidade da destruição? Morte de crianças e de jovens por doença ou acidente; acidentes fatais; catástrofes ambientais; o “pequeno apocalipse” de Rio Bonito (Paraná), provocado por um tornado que destruiu 90% da cidade, e, contudo, matou “apenas” sete pessoas; o câncer, que continua a espalhar a sua destruição sobre cada vez mais pessoas, independente da idade e da condição social, etc.

Ao nos tornar conscientes da futura destruição de tudo aquilo que hoje temos como segurança e amparo na vida presente, Jesus nos convida a não nos iludir: a Terra não é o Céu. Tudo o que vivemos aqui é transitório, e nada ficará para sempre; nada, nem mesmo nós. Retornando à imagem do Apocalipse, todos seremos ceifados desta Terra, e a questão é saber se a ceifa nos encontrará como trigo (pessoas que não desistiram de caminhar na justiça e na santidade) ou como uva (pessoas que se cansaram de perseverar no bem e decidiram aproveitar deste mundo enquanto ele, que já está em processo de destruição, serve aos nossos interesses egoístas).

Muitas coisas ruins já estão acontecendo, e muitas outras coisas ainda virão. Quanto mais se aproxima a volta de Jesus, mais o maligno grita de desespero, sabendo da sua destruição definitiva. Em meio a tudo isso, Jesus nos faz um apelo: “Esta será a ocasião em que testemunharão a sua fé” (Lc 21,13). Uma casa só testemunha o seu alicerce diante de uma forte tempestade. Da mesma forma, a nossa fé é chamada a se erguer como absoluta confiança no Pai que nos chamou à salvação em seu Filho Jesus Cristo, o qual nos advertiu: “O céu e a terra passarão; minhas palavras, porém, não passarão” (Lc 21,33).

 Eis o convite de Jesus para nós: “É permanecendo firmes que vocês irão ganhar a vida!” (Lc 21,19). Toda e qualquer destruição que já tenha nos visitado em nossa vida pessoal, ou que esteja visitando a história da humanidade, não deve nos encher de pessimismo e falta de sentido, mas despertar a firmeza da nossa fé e da nossa esperança, uma firmeza que se traduz em não desistirmos de viver cada um dos nossos dias na santidade e na justiça, esperando o momento da nossa colheita, não desistindo de fazer o bem de que somos capazes e esperando firmemente no “sol da justiça”, que nos garantiu: “Eis que venho muito em breve e retribuirei a cada um segundo as suas obras (atitudes)” (Ap 22,12).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

COISAS E ATITUDES QUE DESTROEM O TEMPLO QUE É O CORPO HUMANO

 Homilia da Dedicação da Basílica de São João do Latrão. Palavra de Deus: Ezequiel 47,1-2.8-9.12; 1Coríntios 3,9c-11.16-17; João 2,13-22. 

 

“A Basílica de São João de Latrão é a catedral do Papa, enquanto Bispo de Roma. Ela é chamada “a igreja-mãe de todas as igrejas”, símbolo das Igrejas de todo o mundo, unidas ao Sucessor de Pedro. A Festa da sua Dedicação nos recorda que a Igreja nascida de Jesus Cristo é hoje, no meio do mundo, o testemunho vivo da presença de Deus na caminhada histórica dos homens” (Dehonianos).

            Segundo o apóstolo Paulo, a Igreja é o Corpo de Cristo, do qual somos os membros (cf. 1Cor 12,12-30). O próprio Jesus acabou de falar do seu corpo como o verdadeiro Templo de Deus: “Destruam este Templo, e em três dias o levantarei” – “Jesus estava falando do Templo do seu corpo”, esclarece o evangelista João (cf. Jo 2,19.21). A prefiguração do corpo de Jesus como Templo de Deus foi descrita, pelo profeta Ezequiel, na belíssima imagem da água que escorre de dentro do Templo e, por onde passa, gera vida: “Onde o rio chegar, todos os animais que ali se movem poderão viver. Nas margens junto ao rio, de ambos os lados, crescerá toda espécie de árvores frutíferas; suas folhas não murcharão e seus frutos jamais se acabarão. Seus frutos servirão de alimento e suas folhas serão remédio” (Ez 47,9.12).

            Essa profecia de Ezequiel se cumpriu na cruz, quando um soldado perfurou o peito de Jesus com uma lança, e dali escorreu sangue e água (cf. Jo 19,34). Cada um de nós, membros do Corpo de Cristo, que é a Igreja, deve lançar suas raízes na direção da água viva que sai do peito de Cristo, imagem bíblica do Espírito Santo (cf. Jo 7,37-39), para nos tornar fecundos e sermos curados das nossas doenças, acolhendo o convite de Jesus: “Quem tem sede, venha a mim e beba” (Jo 7,37).

Daí se segue uma primeira aplicação prática. O corpo humano tem 70% de água! Essa água é perdida no suor, na urina e nas fezes. Portanto, precisa ser reposta. A medicina nos orienta a beber de 2 a 3 litros de água por dia! Aqui estão um dos muitos benefícios da água em nosso corpo:  1. Regula a temperatura corporal. 2. Evita a pedra nos rins. 3. Desintoxica o organismo. 4. Ajuda na perda de peso. 5. Regula o sistema imunológico... Apesar dos muitos benefícios da água, ela foi substituída pelo refrigerante, principalmente na vida de crianças e adolescentes.

São Paulo nos lembra, na liturgia de hoje, que não somente o corpo de Jesus, mas também o nosso corpo é um templo, um santuário: “Acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá, pois o santuário de Deus é santo, e vós sois esse santuário” (1Cor 3,16-17). Quais coisas ou atitudes destroem o nosso corpo como santuário de Deus? Vida sexual desregrada, drogas, todo tipo de excesso (bebida alcoólica, comida, preguiça), cigarro (sobretudo eletrônico), etc. Uma vez que a saúde do nosso corpo depende da saúde da nossa mente, a falta de descanso adequado, o vício das telas, não ler nenhum livro, cultivar pensamentos negativos etc., também colaboram para adoecer o nosso corpo.

Daí surge uma segunda aplicação prática. As roupas que vestimos respeitam o sagrado do nosso corpo? Temos consciência de que a tendência atual de “adultizar”* crianças, vestindo-as com roupas sensuais ou antecipando uma idade que elas ainda não têm, chama a atenção de pedófilos e deixam nossas crianças expostas a redes de pedofilia? O abuso sexual nas famílias** tem como causa apenas a perversão sexual do abusador, ou a pessoa responsável por vestir a criança também é cúmplice do abuso? A maquiagem que muitas meninas costumam usar está de acordo com a idade das mesmas?    

Olhemos agora para o Evangelho. Jesus descarrega a sua ira contra o coração da religião judaica: o Templo. O chicote que ele faz e com o qual derruba as mesas dos cambista – sem atingir qualquer pessoa ou animal comercializado ali – expressa o julgamento de Deus contra uma religião que usa do sagrado para lucrar financeiramente, uma religião que se mantém distante da dor humana, ao mesmo tempo em que ama o poder mundano e faz do dinheiro o seu verdadeiro deus.  

Daí se segue uma terceira aplicação prática. Podemos assistir os episódios 2 e 3 da quinta temporada da série The Chosen (digitar no buscador: assistir The Chosen gratuitamente) e entrar em comunhão com essa cena magnífica da expulsão dos vendilhões do Templo, nos perguntando, ao mesmo tempo, o que Jesus exige que seja retirado do templo que somos, segundo a sua ordem: “Tirai isso daqui!” (Jo 2,16).    

Uma última palavra. O filme “O som da liberdade” (2023) denuncia que os EUA são o país que mais consome sexo infantil, fazendo vista grossa ao tráfico internacional de crianças e adolescentes. Segundo dados da Unicef, 300 milhões de crianças sofreram exploração sexual e abuso infantil online. Assista ao documentário da CNN: “EUA: Crianças à Venda”, em https://www.youtube.com/watch?v=zQsDjtOpNF8.

 

*A adultização infantil ocorre quando crianças começam a adotar comportamentos, escolhas e responsabilidades típicas de adultos, muitas vezes influenciadas pela mídia, pela internet e pelo ambiente em que vivem. Essa influência faz com que as crianças tenham contato com conteúdos e padrões que não são adequados para a idade, como músicas, roupas ou atitudes ligadas à aparência e à sexualidade. Também é comum que tenham rotinas cheias de compromissos e responsabilidades. A adultização infantil pode mudar o caminho natural do crescimento, antecipando preocupações que deveriam surgir só mais tarde e comprometendo a saúde emocional, psicológica e o desenvolvimento da criança (Fonte: https://www.tuasaude.com/adultizacao-infantil/).

*Abuso sexual na família: 70% dos estupros acontecem em casa! (Fonte: https://vlvadvogados.com/abuso-sexual-na-familia/).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

SÍNDROME DE PAVÃO

Menos panos e rendas, menos palácios de veludo e frases de efeito ensaiadas. O que falta não é brilho nos paramentos, mas brilho no olhar de quem realmente caminha com o povo. A fé não precisa de vitrines douradas, precisa de pés na estrada, mãos sujas de serviço e ouvidos abertos para as dores que ecoam pelas ruas e nos corações cansados.

Menos barretes e enfeites, menos preocupação com holofotes e mais consciência de que o Reino não se ergue sobre aparências, mas sobre compromisso. Não é a estética que sustenta a verdade do Evangelho, mas a entrega sincera e o amor encarnado na vida comum de cada dia.

Menos “cercos”, menos teatralidade de piedade, menos pregações que colocam Deus em um trono inalcançável, distante, inatingível. Ele desceu, caminhou conosco, chorou nossas lágrimas, sentiu o peso da fome e da solidão, e nisso nos ensinou que a santidade começa no chão.

É triste ver uma geração de padres mais preocupada em ser vista do que em ver; mais interessada em ser celebrada do que em celebrar a vida de Cristo entre os pequenos. A missão não é virar celebridade da fé, mas testemunha do Cristo servo, aquele que se curva para lavar os pés, que abraça o sofrimento humano para transformá-lo em esperança.

Que voltemos ao essencial: menos espetáculo, mais Evangelho. Menos pose, mais presença. Menos glória humana, mais cruz compartilhada. Porque o Reino nasce quando alguém escolhe amar sem precisar ser aplaudido.

Samuel Elânio

 





quinta-feira, 30 de outubro de 2025

DEIXE SUA CASA EM ORDEM, POIS A MORTE O(A) ENCONTRARÁ NA HORA EM QUE VOCÊ MENOS IMAGINAR.

 Missa pelos fiéis falecidos. Palavra de Deus: Jó,19,1.23-27a; 1Coríntios 15,20-24a.25-28; Lucas 12,35-40. 

 

Dia de Finados, palavra que nos remete para o fim. A nossa existência terrena um dia terá um fim. Mas a nossa fé nos faz olhar para além do fim, isto é, para a finalidade para a qual tende a nossa vida, que é a nossa ressurreição em Jesus Cristo, ele que nos prepara um lugar na casa do Pai, porque quer que estejamos onde ele mesmo está (cf. Jo 14,3). Se hoje sentimos saudades e tristeza por aqueles que partiram, sabendo que a tristeza é proporcional ao amor que temos pela pessoa, a nossa tristeza deve unir-se à esperança de reencontrarmos aqueles que partiram e que estão em Cristo (1Ts 4,13.16-17), o qual afirmou que o nosso Deus “não é Deus de mortos, mas sim de vivos; todos, com efeito, vivem para ele” (Lc 20,38).

A morte, fim da nossa existência terrena, nos ensina a rever a forma como vivemos a nossa vida. “Lembra-te do fim e deixa o ódio” (Eclo 28,6). Não devemos permitir que o ódio adoeça a nossa breve existência neste mundo. A consciência da nossa morte deve nos levar a perdoar. Mas o Eclesiástico também nos orienta quanto ao luto: “Filho, derrama tuas lágrimas por um falecido. Chora amargamente; depois, consola-te de tua tristeza. Porque a tristeza leva à morte. Não abandones teu coração à tristeza, afasta-a” (Eclo 38, 16.17.20).

A morte nos dá a consciência de que a nossa existência neste mundo é única, e nunca mais se repetirá: “Os homens morrem uma só vez, depois do que vem um julgamento” (Hb 9,27). A respeito desse julgamento, o apóstolo Paulo afirma: “Todos nós compareceremos perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito em sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal” (2Cor 5,10). Aquilo que plantamos hoje, em nossa vida terrena, será colhido por nós mesmos, após a nossa morte.  

Segundo Jesus, a consciência da nossa morte deve nos libertar de todo tipo de ganância material. Quando um homem muito rico, após ter derrubado todos os seus celeiros para construir outros maiores, a fim de guardar toda a sua riqueza, diz a si mesmo: “Descansa, come, bebe, aproveita!”, Deus lhe diz: “Insensato, nesta mesma noite será pedida de volta a tua vida. E as coisas que acumulaste, de quem serão?” (Lc 12,16-20). Aqui entra também a sabedoria de Dalai Lama: “Os homens do nosso tempo vivem como se nunca fossem morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido”.

Quando o rei Ezequias ficou gravemente enfermo, o profeta Isaías recebeu a ordem de Deus para dizer-lhe: “Põem em ordem a tua casa, porque vais morrer, e não sobreviverás” (2Rs 20,1). A consciência de que um dia iremos morrer deve nos fazer perguntar: O que eu preciso colocar em ordem, na minha vida, antes de morrer? Para Jesus, o principal a ser colocado em ordem é a nossa reconciliação com o próximo (cf. Mt 5,25-26).

Como encaramos a certeza de que um dia iremos morrer? O apóstolo Paulo nos anuncia uma grande consolação: “Ninguém de nós vive para si mesmo ou morre para si mesmo. Se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor. Com efeito, Cristo morreu e ressuscitou para ser o Senhor dos vivos e dos mortos” (Rm 14,7-9). Ainda segundo o apóstolo, morrer significa mudar da tenda (morada provisória) para a casa, “morada eterna, não feita por mãos humanas” (2Cor 5,1). Em outras palavras, morrer significa “deixar a mansão deste nosso corpo para ir morar junto Senhor” (2Cor 5,8).       

Em cada experiência de morte que fazemos, diante da perda de pessoas que nos são caras, devemos manter os olhos fixos em Jesus, que disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim nunca morrerá” (Jo 11,25-26). A morte biológica do corpo não é a morte da pessoa. Jesus experimentou a morte “em favor de todos os seres humanos” (Hb 2,9). Como ele mesmo afirma: “Eu sou o Vivente: estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho comigo as chaves da morte e da região dos mortos” (Ap 1,17-18). Ter as chaves significa ter o poder de arrancar da morte e da região dos mortos todos os que morreram.

Diante desta catequese bíblica sobre a morte, podemos rezar, neste dia de Finados: “Ó Deus, nosso Pai, vossos dias não conhecem fim, e a vossa misericórdia não tem limites. Fazei-nos lembrar sempre a brevidade da vida e a incerteza da hora da nossa morte. Que o vosso Espírito Santo nos conduza neste mundo, todos os dias da nossa vida, na santidade e na justiça. E depois de vos servirmos na terra na comunhão da vossa Igreja, na confiança de uma fé segura, na consolação da esperança e na perfeita caridade para com todos, possamos chegar ao vosso Reino. Por Cristo, nosso Senhor. Amém” (Sacramentário, Rito das Exéquias, p.229).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

 

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

SANTIFICAR-SE SIGNIFICA TORNAR-SE SEMELHANTE A JESUS, "O SANTO DE DEUS" (Jo 6,69).

 Missa de todos os Santos. Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12a

 

A palavra “santo” significa “separado”. Jesus afirmou aos seus discípulos: “Minha escolha separou vocês do mundo” (Jo 15,19). O cristão é alguém “separado” do mundo, no sentido de estar no mundo, mas não aceitar ser corrompido por ele: “Não se conformem com o mundo, mas transformem-se, renovando a mente de vocês a fim de poderem discernir qual é a vontade de Deus” (Rm 12,2). Jesus foi chamado por Pedro de “o Santo de Deus” (Jo 6,69) exatamente porque buscou diariamente fazer a vontade do Pai: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou” (Jo 4,34).

Jesus é o nosso modelo de santidade. Como ele, somos chamados a ser pessoas pobres em espírito (que se apoiam unicamente em Deus); pessoas que se afligem com o sofrimento alheio; pessoas que mantém a mansidão diante dos conflitos; que desejam a justiça e lutam por ela; que são misericordiosas (compadecem-se com a miséria do outro); puras de coração; pessoas que não só desejam a paz, mas buscam promovê-la no ambiente em que se encontram; pessoas que suportam perseguições e sofrimentos por causa da justiça e por causa do próprio Jesus (cf. Mt 5,3-11).

Tudo isso nos faz entender que o nosso processo de santificação se dá na terra, não no céu. É na terra que os santos são “marcados na fronte” (Ap 7,3), procurando fortalecer orientar a cada dia a sua consciência de pertencimento a Deus. Segundo o livro do Apocalipse, os santos que estão nos céus são pessoas que “vieram da grande tribulação” (Ap 7,14), e se no céu trajam “vestes brancas” (Ap 7,9), símbolo da ressurreição e da santidade, é porque na terra “lavaram e alvejaram suas roupas no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14), envolvendo-se na mesma luta que Jesus se envolveu, contra o pecado, a injustiça e a dor que tanto ferem a humanidade.

Na sua exortação apostólica sobre a santidade, o Papa Francisco afirmou que “todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra” (GE, n.14). É na rotina de cada dia, nas ocupações diárias, que cada um de nós é chamado a santificar-se. Quando você defende uma pessoa que está sendo injustiçada e sofre perseguição por causa disso, está sendo uma pessoa santa. Quando não aceita suborno, quando prefere levar uma vida mais simples, ganhando dinheiro de maneira honesta, ao invés de se enriquecer corrompendo-se, você está sendo uma pessoa santa. Quando, a exemplo de Jesus, você decide amar até o fim e não somente até que a beleza acabe, até que a doença chegue, até que a situação financeira se complique, você está sendo uma pessoa santa.

Um desafio para a nossa vida de santidade é integrar o nosso corpo, a nossa sexualidade, na vivência da nossa fé. Toda espiritualidade que despreza o corpo e demoniza a sexualidade é doentia e está na contramão do mistério da Encarnação. Jesus teve um corpo como o nosso e sentiu tudo o que nós sentimos: “ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15). É a partir do nosso corpo e na vivência da nossa sexualidade que nós nos santificamos. Uma santidade “desencarnada” é estranha à Sagrada Escritura e, sobretudo, estranha ao próprio Jesus, modelo para a nossa santidade.

Enfim, o apóstolo João nos ensina que ser uma pessoa santa significa ter paciência conosco mesmos, com os nossos limites e as nossas imperfeições, pois a nossa santificação é um processo: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,2). O que nós somos como pessoa não é algo definitivo; estamos em abertura, em processo, em transformação: a santificação tem por objetivo nos tornar semelhantes a Jesus, até que sejamos puros como ele é puro, até que sejamos como ele é: um verdadeiro sacramento do Deus Santo, Santo, Santo (cf. Is 6,3).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

A HUMILDADE É A PORTA QUE ABRIMOS PARA QUE DEUS POSSA ENTRAR E NOS TRANSFORMAR, ENQUANTO REZAMOS.

 Missa do 30º dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 35,15b-17.20-22a; 2Timóteo 4,6-8.16-18; Lucas 18,9-14.


            Por que nós rezamos? Porque temos consciência da nossa insuficiência enquanto seres humanos. Em outras palavras, só pode rezar quem sente a necessidade de ser salvo. Pessoas que se sentem totalmente seguras, garantidas pelos seus recursos materiais, normalmente não buscam a Deus na oração, a menos que alguma coisa saia do controle delas e as ameace.

            Depois de nos ter ensinado a oração do Pai nosso (cf. Lc 11,1-13) e nos mostrado a importância de insistirmos com Deus na oração (cf. Lc 18,1-8), Jesus hoje nos apresenta duas formas de oração: a primeira, cheia de orgulho e arrogância; a segunda, cheia de humildade; a primeira, feita por um homem que se colocou diante de Deus não para louvá-Lo, mas para louvar a si mesmo por se considerar bom, justo e não necessitado de salvação; a segunda, feita por um homem consciente dos seus pecados e, portanto, profundamente necessitado de salvação.

            Antes de tudo, precisamos prestar atenção para quem Jesus contou a parábola que acabamos de ouvir no Evangelho: “Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros” (Lc 18,9). Confiar na própria justiça significa julgar-se bom o suficiente a ponto de não necessitar ser salvo. Mas o problema maior não é apenas a postura orgulhosa e arrogante diante de Deus, e sim o desprezo pelos outros, por aqueles que julgamos piores do que nós. Quando isso acontece, acabamos por erguer um muro de separação entre nós e essas pessoas, pensando que Deus as vê como nós as vemos.   

Eis a oração do fariseu: ele se coloca diante de Deus convencido de que não precisa da salvação que Deus lhe oferece, porque já a conquistou pelo esforço do seu bom comportamento. Apresenta-se diante de Deus como uma pessoa justa que veio “cobrar” a recompensa pelo seu esforço em ser uma pessoa de bem. O pior em tudo isso é que ele sente que a sua vivência “cristã” o coloca acima dos outros homens, “miseráveis pecadores”, como o cobrador de impostos que, aos olhos do fariseu, não passa de um ladrão e explorador do seu povo.

Diferente do fariseu, o cobrador de impostos, reza a partir da sua verdade. Consciente dos seus erros e da sua necessidade de ser salvo, ele clama a Deus por misericórdia. É um homem que tem consciência da sua indignidade. Na sua oração, ele não se compara com outros homens; apenas reconhece o seu pecado e invoca a misericórdia de Deus. Não podendo agarrar-se ao seu bom comportamento para se salvar – pois seu comportamento não é correto – ele só pode confiar na compaixão de Deus: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!” (Lc 18,13).

A oração do publicano nos lembra a verdade de todo ser humano: somos pecadores, falhos, imperfeitos, e não podemos nos salvar por nós mesmos, mas unicamente nos abrindo à ação do Espírito Santo de Deus. Da mesma forma como nenhuma pessoa doente pode ser curada, se não reconhecer a sua própria doença e não aceitar ajuda, assim nós não podemos sair da oração transformados se não admitimos diante de Deus a nossa impotência em nos modificar pelo nosso próprio esforço. De fato, para Jesus o fruto mais precioso da oração é quando saímos dela “justificados”, isto é, perdoados, reconciliados, salvos. Justamente porque “diante de Deus nenhum ser humano pode se declarar justo” (Sl 143,2), o Pai das misericórdias nos concede a graça da justificação, pela nossa fé em seu Filho Jesus Cristo (cf. Rm 4,25; 5,1.18-19).     

Jesus conclui o seu terceiro ensinamento sobre a nossa vida de oração afirmando que “quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado” (Lc 18,14). A humildade não é vista como um valor, na cultura atual. Pelo contrário, somos constantemente motivados a nos expor, a pisarmos sobre as pessoas para nos destacarmos como fortes e vencedores. O distanciamento da nossa humildade é o distanciamento da nossa verdade. É como uma árvore que, na sua obsessão em crescer e ser vista e admirada pelos outros, perde o contato com as próprias raízes, tornando-se superficial, sem profundidade.

Humilhar-se não significa rebaixar-se, mas se recusar a ser definido a partir de fora, por uma sociedade vazia e que cultua o próprio vazio. Humilhar-se é ter consciência do próprio tamanho, das suas capacidades e dos seus limites; é viver a partir da sua verdade interior; é sustentar-se a partir das próprias raízes que, escondidas no húmus, na terra, dão sustentação interior à pessoa, para que ela dê frutos, independente se as circunstâncias externas são favoráveis ou não.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi