quinta-feira, 27 de março de 2025

SER O ABRAÇO DO PAI PARA TODO AQUELE QUE PRECISA VOLTAR A VIVER

 Missa do 4º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Josué 5,9a.10-12; 2Coríntios 5,17-21; Lucas 15,1-3.11-32.

 

O que motivou Jesus a contar a parábola que acabamos de ouvir foi a crítica dos fariseus e dos mestres da Lei: “Este homem acolhe pecadores e faz refeição com eles” (Lc 15,2). Por trás dessa crítica, há uma imagem distorcida de Deus e da Igreja: quando uma pessoa decide conscientemente se afastar de Deus pecando, Deus a abandona no seu pecado, e o papel da Igreja é declarar que tal pessoa está perdida, que não tem salvação. Em outras palavras, para os fariseus e os mestres da Lei de ontem e de hoje, a Igreja é o lugar dos salvos e o “mundo” é o lugar dos perdidos, dos que não têm salvação.       

Jesus deixa claro que Deus não aceita perder ninguém, e para recuperar um filho Seu, Ele é capaz de tudo. Além disso, a Igreja não é o lugar dos salvos, mas dos reencontrados, porque não há ninguém que algum dia não tenha se perdido na vida. Ninguém de nós está garantido de não se perder, assim como não há ninguém perdido que não possa ser reencontrado. Jesus quer reavivar em nós a esperança de que nada está perdido para sempre: o filho mais novo estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado! (cf. Lc 15,24.32).

Se o desencanto nos faz abandonar a esperança da volta, da mudança, da conversão, Jesus nos ensina que a nossa fé deve ser pascal: para quem crê, sempre existe uma possibilidade de páscoa, de tomar o caminho de volta e fazer a passagem da morte para a vida, da perda para o reencontro. Aqui cabe uma pergunta: “Minha fé se transformou em desilusão ou ainda pulsa viva, na certeza de que aquele que morreu pode voltar a viver e aquele que se perdeu pode ser reencontrado?”.

O filho mais novo, que decide não mais viver na casa com o pai, retrata a humanidade atual, na sua decisão de não depender de Deus, de afastar-se da religião (autoridade do Pai), decidindo por si mesma o que é o bem e o que é o mal; em alguns casos, de crer em Deus, mas de não aceitar que Ele interfira nas suas escolhas e decisões, por meio das orientações da Igreja; em outros casos, de viver como se Deus não existisse. O resultado do afastamento de Deus é uma vida autodestrutiva, pois toda pessoa que decide sair das mãos de Deus passa a destruir-se com suas próprias mãos.

Eis o retrato da autodestruição: o filho que tinha tudo na casa do pai agora se encontra passando fome, sem poder comer até mesmo a comida que ele próprio dava aos porcos. Esse filho desceu ao mais profundo do poço, ao mais profundo do buraco que ele mesmo cavou. Quando nós rejeitamos depender de Deus, passamos a sofrer uma dependência imposta pelo mundo. Quantas pessoas estão vivendo no meio de porcos?

Felizmente, existe algo no ser humano capaz de fazê-lo voltar: sua consciência. Foi “caindo em si” que o filho mais novo percebeu o erro que havia cometido e que ainda havia um lugar para o qual voltar: sua casa; ainda havia alguém para quem ele voltar: seu pai! Se existe um caminho de distanciamento, existe também um caminho de reaproximação. Nada está perdido para sempre; nada está morto definitivamente! É possível voltar! Nós temos não apenas “para onde” voltar, mas para quem voltar: o Pai! Qualquer que seja o nosso pecado, qualquer que tenha sido o nosso desejo de matá-lo dentro de nós, o Pai continua vivo e de braços abertos para nos receber de volta! Portanto, se muitas pessoas desistiram de si mesmas, Deus não desiste de nenhum ser humano.

O coração do Evangelho está aqui: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos... ‘Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado’” (Lc 15,20.23-24). O retrato mais verdadeiro de Deus está aqui! Somos provocados por esta cena a nos deixar abraçar pelo Pai. É possível que também nós estejamos longe d’Ele, longe da Sua compaixão para com quem erra. Precisamos do Seu abraço, para que o nosso coração deixe de se referir ao que erra como “esse teu filho” e passe a reconhecê-lo como “este meu irmão”. 

Vivendo no seio de uma humanidade órfã, nós precisamos ser o “abraço do Pai” para as pessoas descartadas, esquecidas e ignoradas. Todos aqueles que estão perdidos precisam saber que podem ser reencontrados! Todos aqueles que estão mortos por dentro precisam saber que podem voltar a viver! Jesus quer a sua Igreja misericordiosa, um lugar onde haja lugar para aqueles que não têm lugar neste mundo. A ação pastoral da nossa Igreja precisa se traduzir em buscar e salvar os que se distanciaram, se extraviaram, se perderam. O abraço do Pai precisa chegar, por meio de cada um de nós, a muitos que ainda estão longe.

Deus hoje nos faz um apelo para que reconheçamos que aquele que se perdeu é nosso irmão, e a nossa alegria só será completa quando aquele que está morto voltar a viver, quando aquele que está perdido for encontrado. Por isso, ao comungar hoje, é importante que nos perguntemos: A quem eu devo procurar? Quem precisa ser encontrado por mim? Para quem eu devo ser nesta semana sacramento da misericórdia do Pai?

 

            Pe. Paulo Cezar Mazzi    

quinta-feira, 20 de março de 2025

DEIXAR DE SER UMA PRESENÇA INÚTIL E TORNAR-SE UMA PRESENÇA NECESSÁRIA

 Missa do 3º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Êxodo 3,1-8a.13-15; 1Coríntios 10,1-6.10-12; Lucas 13,1-9.

 

As tragédias sempre marcaram a história humana. Concretamente, podemos nos lembrar de duas: 1) Em 25/01/2019, a barragem da Mina de Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho (MG), rompeu, matando 270 pessoas. 2) Em 09/08/2024, um avião com 62 pessoas a bordo caiu em um condomínio no bairro Capela, em Vinhedo (SP). Nenhum sobrevivente. Como interpretamos uma tragédia? Ela seria castigo de Deus pelos pecados das pessoas que nela morreram?   

Existem tragédias que são consequência das atitudes erradas das pessoas, assim como existem tragédias que são simplesmente uma fatalidade, ou seja, as pessoas atingidas por elas não foram responsáveis pelo que aconteceu. Jesus não nos explica a razão de ser das tragédias ou das fatalidades, mas aproveita esses fatos para nos fazer uma advertência: “Se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (Lc 9,4.5). Em outras palavras, quando interpretamos que as pessoas morrem numa tragédia porque pecaram, estamos profundamente enganados. Além disso, a questão principal é: o que essa tragédia está dizendo a cada um de nós?

Quando recebemos a notícia de vidas que foram destruídas numa tragédia ou numa fatalidade, devemos revisar as nossas atitudes, principalmente aquelas que favorecem a destruição de valores, como a bondade, a justiça, a verdade, como também aquelas que favorecem a destruição de pessoas em nossos relacionamentos. Neste sentido, precisamos tomar consciência de que a verdadeira tragédia não é a nossa morte física, mas a nossa morte espiritual. Tragédia é abandonar nossa vida de oração, é desistir de ser uma pessoa fiel, honesta e justa; tragédia é deixar os nossos desejos desordenados tomarem o lugar da nossa consciência e nos jogarem de um lado para o outro, como uma folha seca que o vento leva para onde quer. Tragédia é seguir o fluxo, ir atrás da maioria, tornar-se uma pessoa mundana justificando que todo mundo faz assim.

Para nos ajudar a fazer um exame de consciência das nossas atitudes, Jesus nos conta a parábola da figueira estéril: “Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a! Por que está ela inutilizando a terra?” (Lc 9,7). Cada um de nós é uma árvore frutífera que Deus plantou em um lugar específico da face da Terra. Independentemente do tipo de terreno em que nos encontramos, temos a capacidade de ser fecundos, de produzir frutos, de fazer o bem. A questão, porém, é: nós temos vontade de fazer o bem? Nós usamos nossa inteligência, nossa vontade e nossa liberdade para produzir destruição em nossa própria vida, na vida de outras pessoas e em nosso Planeta, ou fazemos aquilo que está ao nosso alcance para gerarmos vida à nossa volta?

Nosso mundo está cheio de árvores inúteis, isto é, de pessoas preguiçosas e com má vontade, pessoas não somente individualistas, que não se importam com os outros, mas verdadeiras parasitas, que além de não ajudarem ninguém, vivem à custa do trabalho de outros. O recado do Evangelho é muito claro: “Corta-a! Por que está ela inutilizando a terra?” (Lc 9,7). Essa ordem de cortar está relacionada com o julgamento de cada um de nós, e se ela nos parece muito radical, lembremos a advertência da Palavra de Deus: “Aquele que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4,17). Em outras palavras, nós pecamos não somente quando provocamos destruição em nossa vida, na vida das pessoas ou do Planeta; nós também pecados quando cruzamos os braços e nos tornamos indiferentes às necessidades à nossa volta.

Antes que chegue o dia do nosso julgamento, quando o Senhor pedirá contas dos frutos que somos capazes de produzir, o próprio Senhor nos oferece o tempo da sua misericórdia, pois Ele “é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e compassivo” (Sl 103,8). Se, na parábola da figueira estéril, o Pai é o dono da plantação, seu Filho Jesus é o servo que intercede pela manutenção da figueira por mais um ano: “Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás” (Lc 9,8-9). Cada vez que ouvimos o Evangelho e permitimos que ele questione as nossas atitudes, estamos nos abrindo para receber o adubo do Espírito Santo, que transforma nossa esterilidade em fertilidade.

Finalizando nossa reflexão, é importante não abusar da misericórdia de Deus. Toda pessoa que morre de forma trágica nos lembra que, quando menos imaginarmos, nós seremos “cortados” da face da terra e colocados diante do Senhor, o justo Juiz, para prestar contas dos frutos que Ele mesmo nos tornou capazes de produzir. Se durante a Quaresma a nossa Igreja realiza uma Campanha da Fraternidade é justamente para nos lembrar que nossas atitudes cristãs devem ter uma incidência social, pois, da mesma forma como uma árvore não produz fruto para si mesma, a Igreja não existe em função de si mesma, mas da salvação do mundo.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

 

 

quinta-feira, 13 de março de 2025

SÓ A ORAÇÃO TEM FORÇA PARA NOS TRANSFIGURAR

 Missa do 2º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 15,5-12.17-18; Filipenses 3,17 – 4,1; Lucas 9,28-36.

 

            “Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar” (Lc 9,28). Quando foi a última vez que você subiu à montanha para rezar? São Paulo afirmou que nós somos cidadãos do céu. Só a oração nos coloca em contato com o céu, com Aquele que é fonte da nossa origem. Um cidadão do céu que não reza tem o seu espírito desnutrido, definha na sua fé e na sua esperança. Um cristão que não reza é vencido pelas diversas situações que não só o desfiguram por fora, mas sobretudo por dentro. Quando diariamente não separamos um tempo para a oração, para estarmos na presença de Deus, as preocupações da vida e as cobranças do mundo vão nos desfigurando e nos enchendo de angústia. Só a oração pode nos transfigurar, como também transfigurar a realidade à nossa volta: “Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,29).

            A desfiguração pode ser vista por toda a parte: casamentos / relacionamentos desfigurados pelo distanciamento, pelo desencanto e pelo ressentimento; crianças, adolescentes e jovens desfigurados pelo vício das telas; pessoas desfiguradas por algum tipo de vício, pela cobrança no trabalho, pelas pressões do mundo, pela sobrevivência da família; cidades desfiguradas pela violência, pelo tráfico e pelo fechamento das pessoas em seus próprios interesses; um mundo desfigurado pela guerra, pela fome; igrejas desfiguradas por escândalos; um fé desfigurada pela incapacidade de esperar em Deus...             Jesus se deparou inúmeras vezes com pessoas desfiguradas, e ele mesmo sofreu a desfiguração da cruz. No entanto, sua experiência de transfiguração nos revela que por trás da sombra da cruz há a luz da ressurreição; por trás da dor do sacrifício há a alegria da salvação. É por isso que o evangelista Lucas, ao narrar a transfiguração de Jesus, menciona a Sua glória. “Glória” é um termo bíblico usado para falar da presença de Deus. Na carne humana e frágil de Jesus, que como a nossa se desfigura dia a dia, habita a presença de Deus, que tudo transfigura. Se o passar do tempo nos traz a consciência da nossa finitude, na oração tomamos consciência de que “somos cidadãos do céu. De lá aguardamos o nosso Salvador, o Senhor, Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso, com o poder que tem de sujeitar a si todas as coisas” (Fl 3,20-21).

            Estamos no ano do Jubileu da Esperança. “A esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). A Esperança é a força divina capaz de transfigurar a nossa vida. Ela nos recorda que o nosso corpo humilhado, que carrega em si a fragilidade da natureza humana, um corpo que morre um pouco a cada dia, está destinado a se tornar “corpo glorioso”, pleno de vida, transfigurado definitivamente pela nossa ressurreição futura. Portanto, qualquer que seja a nossa experiência de desfiguração, ela é temporária, e não definitiva.

            Há um detalhe importante na experiência da transfiguração de Jesus: embora Ele se encontrasse na glória de Deus, onde estavam Moisés e Elias, os três conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém (cf. v.31). Isso nos revela que a verdadeira oração nunca é fuga da vida, mas coragem para enfrentar aquilo que faz parte do nosso caminho de vida. A oração não é o momento em que Deus nos tira do mundo e nos blinda contra a dor e o sofrimento, mas o momento em que Ele nos dá o Seu Espírito, para que possamos nos manter fiéis à nossa missão, enfrentando nossa experiência de cruz na certeza de que ela terá como desdobramento a nossa participação na glória de Deus. Por isso, a nossa oração nunca pode se tornar fuga da realidade, mas lugar onde a nossa realidade desfigurada recebe a garantia da transfiguração que Deus opera na história de quem a Ele se confia na oração.

            Presenciando a oração de Jesus, Pedro Tiago e João foram envolvidos por uma nuvem, símbolo bíblico da presença de Deus, e ouviram a Sua voz: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!” (Lc 9,35). Nós reclamamos que não ouvimos a voz de Deus em nossa oração, mas essa voz está na pessoa de Seu Filho Jesus. “Escutar” Jesus significa aprender com Ele como lidar com nossas experiências de desfiguração, como tomar consciência da realidade que nos cabe enfrentar e, sobretudo, como rezar, entendendo a oração como o momento em que Deus nos conduz para fora do nosso medo, da nossa angústia, da nossa falta de fé, e alarga o horizonte da nossa compreensão, como fez com Abrão: “o Senhor conduziu Abrão para fora e disse-lhe: ‘Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!’ E acrescentou: ‘Assim será a tua descendência’ (Gn 15,5).  

            Eis a importância da Esperança em nossa vida! Ela nos conduz para fora da estreiteza do nosso olhar e nos faz enxergar a amplitude do horizonte da nossa vida. A vida não é somente aquilo que estamos conseguindo enxergar neste momento. Deus vê de cima, vê do alto, e por isso nos convida a olhar para o céu e tentar contar as estrelas: elas são tão numerosas quanto a areia das praias! Em outras palavras, ainda que nos sintamos envelhecidos e enfraquecidos como Abrão, ainda que carreguemos em nosso corpo as marcas da morte de Jesus, estamos destinados a carregar em nosso corpo as marcas da sua vida (cf. 2Cor 4,10).

A Campanha da Fraternidade – “Ecologia integral” – quer nos conduzir para fora da indiferença quanto ao sofrimento da Terra e também para fora dos desejos desordenados do consumismo e do materialismo que atentam contra os recursos da natureza. Ela nos convida a “cuidar da casa”: da casa interior de cada um de nós (espiritualidade), da casa em que habitamos (família), da casa em que passamos grande parte do nosso tempo (escola, trabalho), da casa em que nos relacionamos (redes sociais) e da Casa Comum (Terra), pois nela tudo está interligado (Texto Base da Campanha da Fraternidade 2025, n.16).

Rezemos juntos: “Ó Deus, nosso Pai, ao contemplar o trabalho de tuas mãos, viste que tudo era muito bom! O nosso pecado, porém, feriu a beleza de tua obra, e hoje experimentamos suas consequências. Por Jesus, teu Filho e nosso irmão, humildemente te pedimos: dá-nos, nesta Quaresma, a graça do sincero arrependimento e da conversão de nossas atitudes. Que o teu Espírito Santo reacenda em nós a consciência da missão que de ti recebemos: cultivar e guardar a Criação, no cuidado e no respeito à vida. Faz de nós, ó Deus, promotores da solidariedade e da justiça. Enquanto peregrinos, habitamos e construímos nossa Casa Comum, na esperança de um dia sermos acolhidos na Casa que preparaste para nós no Céu. Amém!” (Oração da CF 2025).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

 

 

quinta-feira, 6 de março de 2025

QUAIS SÃO AS SUAS TENTAÇÕES MAIS FREQUENTES?

 Missa do 1º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Deuteronômio 26,4-10; Romanos 10,8-13; Lucas 4,1-13.

 

            Em todo primeiro domingo da Quaresma ouvimos o Evangelho das tentações de Jesus. Dois são os motivos. Primeiro, para nos tornar conscientes de que a nossa vida é um combate espiritual. Segundo, para nos lembrar de que a Quaresma, cuja meta é a nossa transformação, a nossa libertação em Cristo, é um tempo mais intenso do ataque do inimigo, para nos fazer desistir da conversão que sabemos ser necessária para a nossa vida. Tomar consciência disso não nos deve desanimar, pois não estamos sozinhos nesse combate espiritual: o Espírito Santo está conosco, como força do Alto, dada por Deus, para nos auxiliar.

            “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão (batismo), e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito. Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias” (Lc 4,1-2). Por qual razão o Espírito Santo nos coloca numa situação de deserto e nos permite ser tentados pelo diabo? Porque Ele é o “Espírito da Verdade” (Jo 16,13) e essa Verdade precisa nos tornar conscientes das mentiras que nos habitam, mentiras que costumamos usar para justificar a nossa permanência no pecado.

            São Lucas nos informa que Jesus “foi tentado pelo diabo durante quarenta dias” (Lc 4,2). O número “quarenta” simboliza, na Bíblia, a duração da vida de uma pessoa. Portanto, assim como Jesus, nós somos tentados pelo espírito do mal a vida toda, sendo que essa tentação se intensifica quando experimentamos uma situação de fome, de carência, de ausência de algo que nos é importante e necessário. De fato, foi quando Jesus sentiu fome que o diabo se aproximou dele para tentá-lo. Portanto, quando sofremos uma carência, uma ausência, precisamos estar atentos porque ali é o momento oportuno para o tentador se aproximar de nós e nos propor falsas compensações para a nossa fome, para a frustração de um desejo que não está sendo satisfeito em nós.

Enquanto na primeira tentação o diabo propôs a Jesus dar livre curso aos seus desejos e não sofrer a frustração de nada, na segunda ele lhe prometeu um caminho de sucesso, de glória e de plena autorrealização. Exatamente porque vivemos num mundo capitalista que produz desigualdade social, o sonho de consumo da maioria das pessoas é ficar rica. Em nome desse sonho, sacrifica-se a saúde, o casamento, a relação com os filhos, a fé, a espiritualidade, o caráter, a honestidade etc. Enquanto ambicionam “ganhar o mundo inteiro”, essas pessoas destroem-se a si mesmas (cf. Lc 9,25) e aquilo que mais têm de sagrado na vida, esquecendo-se do que o próprio tentador disse: “Tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser” (Lc 4,6). Em outras palavras, o desejo pelo enriquecimento é puramente diabólico.   

Diferente de Mateus e de Marcos, Lucas é o único evangelista que, ao narrar as tentações de Jesus, encerra o relato com uma observação preocupante: “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (Lc 4,13). Quando, auxiliados pelo Espírito Santo, conseguimos resistir e não cair em tentação, não podemos aposentar nossas armas espirituais e pensar que conseguimos atingir um nível de maturidade emocional e espiritual que nos garantirá nunca mais cair no pecado. Para o diabo, nunca faltará o “momento oportuno” de voltar a nos visitar e nos tentar. Quando é esse momento? Principalmente, o momento da dor, da perda, do fracasso, da frustração, do cansaço, da decepção com Deus, com as pessoas, conosco mesmos e com a vida, o momento do envelhecimento, da perda de importância para a Igreja e para a sociedade da produção e do resultado; numa palavra, o momento da solidão da morte. É ali que o diabo se aproximará de nós e nos perguntará se valeu a pena termos sacrificado tantas coisas em nome da nossa fé, para agora morrermos como pessoas insignificantes e esquecidas por Deus e pelo mundo. Precisamos estar conscientes e preparados para esse ataque final do maligno.

Quais são suas tentações mais frequentes? Como você lida com sua fome, com sua carência? Você consegue ter maturidade para frustrar seus desejos, sempre que eles se tornam uma armadilha para manter você escravo(a) do pecado? Vivendo em um mundo materialista e competitivo, onde quem pode mais chora menos, você se percebe contaminado pelo desejo diabólico de ser um vencedor, uma pessoa de sucesso, garantindo-se ilusoriamente pelo acúmulo de riqueza material? Seus joelhos se dobram diariamente diante de Deus para pedir que Ele te faça prosperar sempre mais, ou para que Ele te conceda o pão de cada dia? Você tem consciência de que toda vitória sua contra o tentador é apenas temporária e que ele sempre encontrará um momento oportuno para voltar a te tentar? No momento de maior dor, de maior solidão e de maior insignificância, você manterá a sua fé no amor de Deus por você?

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

terça-feira, 4 de março de 2025

ESTE HOMEM DEVE MORRER!

 

“Os fariseus saíram da sinagoga e, junto com alguns do partido de Herodes, faziam um plano para matar Jesus” (Mc 3,6).

 “É réu de morte!” Então, cuspiram no rosto de Jesus, e o esbofetearam (Mt 26,66-67).

 “Então eles pegaram pedras  para atirar em Jesus” (Jo 8,59).

 “E a partir desse dia, as autoridades dos judeus decidiram matar Jesus” (Jo 11,53).

 “Nós temos uma lei, e segundo a lei este homem deve morrer” (Jo 19,7).

Estes versículos são apenas alguns exemplos que nos recordam que os verdadeiros inimigos de Jesus nunca foram do campo político e, sim, do campo religioso. Quem matou Jesus foi a Religião, usando para tal crime o braço da Política (O Império Romano). Exatamente como aconteceu com Jesus, quem hoje deseja a morte do Papa Francisco não são pessoas movidas por interesses políticos, mas gente de dentro da Igreja, pessoas que, com a mesma arrogância dos fariseus e doutores da Lei, se consideram “católicos de verdade”, defensores da “sã doutrina”.

Os constantes ataques e perseguições que o Papa Francisco vem sofrendo, desde quando assumiu o seu pontificado, é a prova mais viva do quanto ele é fiel ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo: “Lembrem-se do que eu disse: nenhum empregado é maior do que seu patrão. Se perseguiram a mim, vão perseguir a vocês também... Farão isso a vocês por causa do meu nome, pois não reconhecem aquele que me enviou” (Jo 15,20.21). Unicamente por querer reconduzir a nossa Igreja ao Evangelho e questionar as tradições ultrapassadas que, ao invés de levar as pessoas para mais perto de Deus, as mantém afastadas do Reino, Francisco precisa pagar o mesmo preço que Jesus pagou: o preço da rejeição.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

TEMPO DE TRATAR A FERIDA

 

Missa da Quarta-feira de Cinzas. Palavra de Deus: Joel 2,12-18; 2Coríntios 5,20 – 6,2; Mateus 6,1-6.16-18.

 

“Toda a cabeça está contaminada pela doença, todo o coração está enfermo; desde a planta dos pés, até a cabeça, não há lugar são. Tudo são contusões, machucaduras e chagas vivas que não foram espremidas, não foram atadas nem cuidadas com óleo” (Is 1,5-6).

            Essas palavras do profeta Isaías revelam a situação do povo de Israel, ferido pelo seu próprio pecado. É a imagem do filho que livremente decidiu deixar a casa do pai, desperdiçou todos os seus bens, passou fome e o único emprego que encontrou foi cuidar dos porcos (cf. Lc 15,14-16). Mas foi ali, naquela situação, que ele “caiu em si” e tomou a decisão de voltar para junto do pai: “Vou-me embora, procurar meu pai e dizer-lhe: ‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti’” (Lc 15,18).

            Eis o grande convite que o Senhor nos faz, neste início de Quaresma: “Voltai-vos para mim e sereis salvos, porque eu sou Deus e não há nenhum outro” (Is 45,22). “Volta, Israel, ao Senhor teu Deus, pois tropeçaste em tua falta” (Os 14,2). “Voltai-vos para mim com todo o vosso coração” (Jl 2,12). Nós somos livres e, muitas vezes, damos uma direção errada à nossa vida. Como saber se a direção da nossa vida está correta? Se ela está nos levando para Deus. Tudo o que nos afasta de Deus pode até nos dar algum tipo de ganho, mas nos leva para a destruição. Tudo o que nos aproxima de Deus é válido e precisa ser mantido ou retomado.

            Conversão é fazer a volta. Não voltamos para um determinado ponto da estrada; voltamos para uma Pessoa, para o nosso Deus: “É ele quem perdoa todas as tuas faltas e cura todos os teus males. É ele que redime da cova a tua vida e te cerca de carinho e compaixão” (Sl 103,3-4). “O Senhor cura os corações quebrantados e cuida dos seus ferimentos” (Sl 147,3). “Com o Senhor está o amor e redenção em abundância: ele resgatará Israel de toda a sua culpa” (Sl 130,7-8). 

            Jesus é o sacramento da misericórdia de Deus. Ele não veio quebrar a cana que já está rachada, nem veio apagar o pavio que já está quase se extinguindo (cf. Is 42,3). Pelo contrário, Ele “veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10); não veio chamar os justos, mas os pecadores, porque o Médico não existe para quem tem saúde, mas para quem está doente (cf. Mt 9,12.13). Eis, portanto, o convite do apóstolo Paulo: “Deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20).

Se é verdade que o pecado nos adoece da cabeça aos pés (cf. Is 1,3-4), temos que nos perguntar se realmente desejamos a nossa cura: “Antes de curar alguém, pergunta-lhe se está disposto a desistir das coisas que o fizeram adoecer” (Hipócrates). Quem não está disposto a abandonar as cebolas do Egito nunca porá os pés na Terra Prometida, rica de fertilidade.

A Campanha da Fraternidade nos recorda que a Terra não é um reservatório de recursos sem fim, mas uma Casa a ser cuidada. Além do cuidado com essa Casa (natureza, florestas, rios etc.), devemos cuidar das nossas relações humanas e sociais. 

“Precisamos superar a indiferença frente ao sofrimento da Terra e abandonar a idolatria dos desejos desordenados do consumismo e do materialismo” (TB, n.14). “O desafio para a nossa conversão nesta Quaresma é cuidar da casa: da casa interior de cada um de nós (espiritualidade), da casa em que habitamos (família), da casa em que passamos grande parte do nosso tempo (escola, trabalho), da casa em que nos relacionamos (rede) e da Casa Comum (Terra), pois nela tudo está interligado” (TB, n.16).  

Uma santa e fecunda Quaresma a todos nós! 


Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

RÁPIDOS EM CRITICAR OS OUTROS, MAS NUNCA DISPOSTOS A FAZER AUTOCRÍTICA



Missa do 8º. Dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 27,5-8; 1Coríntios 15,54-58; Lucas 6,39-45.

            O livro do Eclesiástico faz quatro afirmações sobre o falar: “Os defeitos de um homem aparecem no seu falar” (Eclo 27,5); “O homem é provado em sua conversa” (Eclo 27,6); “A palavra mostra o coração do homem” (Eclo 27,7); “É no falar que o homem se revela” (Eclo 27,8).

            Nossas palavras sempre produzem algo. Elas podem levantar muros, causando distanciamento, separação entre as pessoas; ou podem construir pontes, favorecendo o diálogo, o perdão e a reconciliação. O nosso grande problema hoje não reside tanto nas palavras que saem da nossa boca, mas nas palavras que comunicamos nas redes sociais. Aquilo que postamos pode destruir a imagem de uma pessoa, como pode também salvar uma pessoa da autodestruição. Por isso, antes de publicarmos alguma coisa em nossas redes sociais, devemos nos perguntar: Isso que eu vou postar é verdade ou mentira? Minhas postagens favorecem a fraternidade ou o ódio entre as pessoas? Eu costumo contribuir com a disseminação de fake news e desinformação?

              Se o Eclesiástico afirma que “a palavra mostra o coração do homem” (Eclo 27,7), Jesus explica que a “boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45). Quem tem o coração ingrato vai sempre reclamar e murmurar. Quem não resolveu seu sentimento de inferioridade vai sempre procurar diminuir os outros e afirmar a si mesmo, de forma autoritária. Quem não enfrenta seus conflitos internos vai sempre despejar sobre os outros palavras grosseiras e ofensivas. Quem não quer enfrentar a verdade vai sempre falar demais, para tentar convencer os outros a respeito da sua própria mentira. Quem busca sempre ganhar o afeto dos outros nunca vai dizer “não”, e vai acabar se sobrecarregando e adoecendo.    

            Antes de uma palavra sair da nossa boca, ela deveria passar pela nossa consciência: O que eu vou falar ou postar vai favorecer o bem ou o mal? Vai edificar ou destruir? Além disso, aquilo que eu falo é uma convicção do meu coração ou um simples repassar para os outros aquilo que eu recebi de algum guia cego? Jesus pergunta: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?” (Lc 6,39). A Internet está cheia de guias cegos, de motivadores ou orientadores que oferecem receita para tudo: campo financeiro, afetivo, sexual, profissional e espiritual. Só caem no mesmo buraco em que esses guias cegos se encontram quem tem preguiça de pensar, de pesquisar, de ler e de estudar.

            Jesus também nos alerta a respeito dos caçadores de ciscos, que fazem vista grossa às traves de seus próprios olhos: “Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (Lc 6,41.42). É sempre mais fácil para nós enxergar os erros das pessoas do que os nossos próprios erros. Somos rápidos em criticar os outros, mas quase nunca dispostos a fazer uma séria autocrítica. Ao lembrar que existe uma trave em nosso próprio olho, Jesus nos ensina que todo julgamento nosso sobre determinada pessoa é um julgamento míope: não enxergamos nela o que Deus vê. Além disso, precisamos estar conscientes de que os defeitos que mais detestamos nos outros são, normalmente, aqueles que não suportamos em nós mesmos.

            Para quem gosta de justificar os seus erros culpando o ambiente, o mundo, os tempos atuais, Jesus nos lembra que a questão é interna e não externa. Ainda que sejamos de alguma forma influenciados pela cultura do nosso tempo, somos nós quem decidimos qual atitude adotar diante das pessoas e dos acontecimentos. Há um espaço dentro de nós que está unicamente sob a nossa responsabilidade: o nosso coração. Se ele é bom, de nós sempre sairá o bem; se ele é mau, de nós sempre sairá o mal. Se ele está azedo ou envenenado, de nossa boca só sairá azedume e veneno; se ele está reconciliado e pacificado, de nossa boca só sairá o que favorece a reconciliação e a pacificação.    

        Uma advertência final: “A língua, ninguém consegue domá-la; é mal irrequieto e está cheia de veneno mortífero. Com ela bendizemos ao Senhor, nosso Pai, e com ela maldizemos os homens feitos à semelhança de Deus. Da mesma boca provém bênção e maldição. Ora, tal não deve acontecer, meus irmãos. Porventura uma fonte jorra água doce e água salgada?” (Tg 3,8-11).     

 

            Pe. Paulo Cezar Mazzi