sexta-feira, 4 de março de 2022

ENFRENTAR NOSSAS RESISTÊNCIAS À MUDANÇA

 Missa do 1º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Deuteronômio 26,4-10; Romanos 10,8-13; Lucas 4,1-13.

 

Na quarta-feira iniciamos o tempo da Quaresma, tempo em que a Palavra de Deus nos chama de maneira mais intensa à conversão, à mudança de pensamento e de atitude, à mudança de vida. Deus acredita na possibilidade que todo ser humano tem de mudar. No entanto, essa mudança leva tempo (simbolicamente, 40 dias!) e exige de nós perseverança.

O Evangelho que narra as tentações de Jesus durante a Sua quaresma está aí para nos tornar conscientes de que a nossa busca por mudança vai se confrontar com a força do maligno, o qual não deseja de modo algum a nossa conversão. Ele fará de tudo para ativar as nossas resistências à mudança e tentará nos convencer de que a volta para Deus é perda de tempo. Portanto, essa volta só se dará se estivermos convencidos interiormente de que ela não é somente possível, mas principalmente necessária para a nossa vida, para a nossa salvação: “Voltai-vos para mim e sereis salvos, homens todos dos confins de toda a terra” (Is 45,22).  

Jesus “foi tentado pelo diabo durante quarenta dias” (Lc 4,2), uma indicação simbólica para falar que Jesus, assim como qualquer ser humano, foi tentado durante toda a sua vida. Enquanto estivermos sobre esta terra, seremos tentados. Além de sermos tentados por nossa própria natureza humana, que tem as suas manhas e que busca se mover pela lei do menor esforço, também somos tentados por um mundo que rejeita o compromisso, a fidelidade, a constância, a santidade e, sobretudo, a cruz, o sofrimento.   E o maligno sabe a hora certa de nos tentar: a hora em que nos sentimos carentes, em que não estamos bem, em que sentimos falta de algo. E sua proposta é muito concreta: “Manda que esta pedra se transforme em pão” (Lc 4,3).

Por trás desta primeira tentação está a proposta enganadora de que você não precisa sentir fome, não precisa sofrer carência alguma. Sua fome é legítima e você tem o direito de satisfazê-la, não importa como: os fins justificam os meios. Desse modo, nós nos tornamos pessoas meramente instintivas. Nossa fome “manda” em nós. Nossa carência “determina” nossas atitudes. Tudo o que existe e todas as pessoas à nossa volta se tornam “pães” a serem comidos, devorados, consumidos por nós. Na verdade, a proposta do maligno – “não ter que sentir fome” – significa “não ter que sofrer”. Para um mundo como o nosso, que centra tudo no prazer, no bem-estar, não ter que sofrer é tudo o que as pessoas mais desejam.

No entanto, Jesus nos ensina a dialogar com essa tentação: “Não só de pão vive o homem” (Lc 4,4). O sentido da vida não está em não sofrer, mas em permanecer fiel àquilo que é verdadeiro, justo e bom, – permanecer fiel à nossa própria missão – ainda que essa fidelidade nos cause algum sofrimento. Além disso, existe uma fome em nós que nem a comida, nem o dinheiro, nem o sexo podem saciar. Nós somos muito mais do que o nosso estômago, dos que os nossos instintos. Satisfazer todas as nossas necessidades não significa ser feliz, nem estar em paz, muito menos ter um sentido para viver. “Cada vez mais as pessoas têm um ‘como’ viver, mas elas não têm um ‘porque’ viver” (Victor Frankl).

Para não sermos arrastados por nossas carências, pela desordem dos nossos afetos, precisamos fazer como Jesus: dialogar com a nossa fome e escolher a melhor forma de lidar com ela, de modo que não seja ela a determinar as nossas atitudes, mas a nossa consciência, o nosso desejo de nos mantermos fiéis à missão que nos foi confiada. 

Na segunda tentação, “o diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo e lhe disse: ‘Eu te darei todo este poder e toda a sua glória (...). Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu’” (Lc 4,5-7). Nós não gostamos de nos sentir fracos, pequenos, assim como não gostamos de ser ignorados pelo mundo. Sabendo disso, o tentador nos promete força, poder, grandeza, glória, projeção social; ele nos promete tirar do lugar baixo e insignificante em que julgamos estar e nos colocar no topo, no lugar mais alto, onde seremos vistos e aplaudidos pelo mundo. O problema é que, além de nos tornarmos escravos de uma competição desumana, fazendo dos outros degraus para subirmos na vida, destruindo todos aqueles que nos ameaçam nessa “subida”, nós nos tornamos escravos do maligno: “Se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu” (Lc 4,7). Quem não conhece os escravos do trabalho, escravos do dinheiro, escravos do sucesso e da fama, escravos dos likes e do número de seguidores nas redes sociais?

Jesus desmascarou a mentira do tentador: “Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (Lc 4,8). A chave para não cairmos nessa tentação está em ordenar os nossos afetos, colocando Deus em primeiro lugar em nossa vida e procurando usar das coisas tanto quanto elas nos aproximam de Deus, ao mesmo tempo em que nos afastamos delas tanto quanto elas nos afastam d’Ele. Quando fazemos isso, nossa vida se torna mais leve, mais simples. Deixamos de ser adoecidos por falsas urgências e mantemos o foco naquilo que é essencial e onde está a nossa paz.

A terceira tentação de Jesus tem um caráter fortemente religioso: “O diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, e lhe disse: ‘Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’” (Lc 4,9-10). Nós caímos nessa tentação sempre que procuramos colocar Deus a serviço dos nossos caprichos; sempre que nos consideramos inatingíveis, acima do bem e do mal; sempre que vivemos de maneira irresponsável, esquecendo-nos de que tudo na vida tem consequências.

Eis a resposta de Jesus: “Não tentarás o Senhor teu Deus” (Lc 4,12). Deus nos deu inteligência e liberdade. Não podemos usar delas para ter atitudes inconsequentes e depois nos fazermos de vítimas diante do sofrimento que provocamos a nós mesmos. Trata-se de viver a vida como uma pessoa adulta, madura e responsável, e não como um adulto infantilizado, que vive responsabilizando os outros pela sua infelicidade. Por mais que Deus nos ame e seja misericordioso, Ele nos confrontará com as consequências das nossas atitudes, pois isso é uma questão de justiça e de lógica: sempre colheremos aquilo que plantarmos.

Enfim, depois que Jesus venceu as tentações, o Evangelho nos diz que “o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (Lc 4,13). A mesma coisa acontece conosco: sempre há um tempo oportuno para a tentação voltar, porque nós sempre estamos lidando com a nossa liberdade, fazendo escolhas e tomando decisões. Por isso, nossa luta contra o mal tem a exata duração da nossa existência, e certamente se intensificará quando estivermos perto do momento da nossa morte, como aconteceu com Jesus. Ali será a última chance de o tentador procurar nos fazer renegar a fé. Portanto, sejamos humildes e realistas. Peçamos diariamente a graça de não cairmos em tentação.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

2 comentários:

  1. Caro @mazzi, suas homilias e esta especialmente permite aos seguidores de Cristo a confiar neste itinerário de fé, esperança e amor. Quando citou que "cada vez mais as pessoas têm um ‘como’ viver, mas elas não têm um ‘porque’ viver” (Victor Frankl6) me reportei ao Nietzsche que ressalta "quem tem um porque viver, pode, quase sempre suportar um como viver", de fato muitas escolhas são subjetivas no âmbito objetivo, mas sempre a realidade machuca demais. Que Deus te abençoe em seu ministério.

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  2. Exatamente, querido irmão! Nietzsche entendeu perfeitamente isso. Forte abraço!!!

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