Missa do 1º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Deuteronômio 26,4-10; Romanos 10,8-13; Lucas 4,1-13.
Na
quarta-feira iniciamos o tempo da Quaresma, tempo em que a Palavra de Deus nos
chama de maneira mais intensa à conversão, à mudança de pensamento e de
atitude, à mudança de vida. Deus acredita na possibilidade que todo ser humano
tem de mudar. No entanto, essa mudança leva tempo (simbolicamente, 40 dias!) e
exige de nós perseverança.
O
Evangelho que narra as tentações de Jesus durante a Sua quaresma está aí para
nos tornar conscientes de que a nossa busca por mudança vai se confrontar com a
força do maligno, o qual não deseja de modo algum a nossa conversão. Ele fará
de tudo para ativar as nossas resistências à mudança e tentará nos convencer de
que a volta para Deus é perda de tempo. Portanto, essa volta só se dará se
estivermos convencidos interiormente de que ela não é somente possível, mas
principalmente necessária para a nossa vida, para a nossa salvação: “Voltai-vos
para mim e sereis salvos, homens todos dos confins de toda a terra” (Is 45,22).
Jesus “foi tentado pelo diabo durante quarenta
dias” (Lc 4,2), uma indicação simbólica para falar que Jesus, assim como
qualquer ser humano, foi tentado durante toda a sua vida. Enquanto estivermos
sobre esta terra, seremos tentados. Além de sermos tentados por nossa própria
natureza humana, que tem as suas manhas e que busca se mover pela lei do menor
esforço, também somos tentados por um mundo que rejeita o compromisso, a
fidelidade, a constância, a santidade e, sobretudo, a cruz, o sofrimento. E o
maligno sabe a hora certa de nos tentar: a hora em que nos sentimos carentes,
em que não estamos bem, em que sentimos falta de algo. E sua proposta é muito concreta:
“Manda que esta pedra se transforme em pão” (Lc 4,3).
Por trás desta primeira tentação está a
proposta enganadora de que você não precisa sentir fome, não precisa sofrer
carência alguma. Sua fome é legítima e você tem o direito de satisfazê-la, não
importa como: os fins justificam os meios. Desse modo, nós nos tornamos pessoas
meramente instintivas. Nossa fome “manda” em nós. Nossa carência “determina”
nossas atitudes. Tudo o que existe e todas as pessoas à nossa volta se tornam
“pães” a serem comidos, devorados, consumidos por nós. Na verdade, a proposta
do maligno – “não ter que sentir fome” – significa “não ter que sofrer”. Para
um mundo como o nosso, que centra tudo no prazer, no bem-estar, não ter que
sofrer é tudo o que as pessoas mais desejam.
No entanto, Jesus nos ensina a dialogar com
essa tentação: “Não só de pão vive o homem” (Lc 4,4). O sentido da vida não
está em não sofrer, mas em permanecer fiel àquilo que é verdadeiro, justo e
bom, – permanecer fiel à nossa própria missão – ainda que essa fidelidade nos
cause algum sofrimento. Além disso, existe uma fome em nós que nem a comida,
nem o dinheiro, nem o sexo podem saciar. Nós somos muito mais do que o nosso
estômago, dos que os nossos instintos. Satisfazer todas as nossas necessidades
não significa ser feliz, nem estar em paz, muito menos ter um sentido para
viver. “Cada vez mais as pessoas têm um ‘como’ viver, mas elas não têm um
‘porque’ viver” (Victor Frankl).
Para não sermos arrastados por nossas carências,
pela desordem dos nossos afetos, precisamos fazer como Jesus: dialogar com a
nossa fome e escolher a melhor forma de lidar com ela, de modo que não seja ela
a determinar as nossas atitudes, mas a nossa consciência, o nosso desejo de nos
mantermos fiéis à missão que nos foi confiada.
Na segunda tentação, “o diabo levou Jesus para
o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo e lhe disse: ‘Eu
te darei todo este poder e toda a sua glória (...). Portanto, se te prostrares
diante de mim em adoração, tudo isso será teu’” (Lc 4,5-7). Nós não gostamos de
nos sentir fracos, pequenos, assim como não gostamos de ser ignorados pelo
mundo. Sabendo disso, o tentador nos promete força, poder, grandeza, glória,
projeção social; ele nos promete tirar do lugar baixo e insignificante em que
julgamos estar e nos colocar no topo, no lugar mais alto, onde seremos vistos e
aplaudidos pelo mundo. O problema é que, além de nos tornarmos escravos de uma
competição desumana, fazendo dos outros degraus para subirmos na vida, destruindo
todos aqueles que nos ameaçam nessa “subida”, nós nos tornamos escravos do
maligno: “Se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu” (Lc
4,7). Quem não conhece os escravos do trabalho, escravos do dinheiro, escravos
do sucesso e da fama, escravos dos likes e do número de seguidores nas redes
sociais?
Jesus desmascarou a mentira do tentador:
“Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (Lc 4,8). A chave para não
cairmos nessa tentação está em ordenar os nossos afetos, colocando Deus em primeiro
lugar em nossa vida e procurando usar das coisas tanto quanto elas nos
aproximam de Deus, ao mesmo tempo em que nos afastamos delas tanto quanto elas
nos afastam d’Ele. Quando fazemos isso, nossa vida se torna mais leve, mais
simples. Deixamos de ser adoecidos por falsas urgências e mantemos o foco
naquilo que é essencial e onde está a nossa paz.
A terceira tentação de Jesus tem um caráter
fortemente religioso: “O diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte
mais alta do Templo, e lhe disse: ‘Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo!
Porque a Escritura diz: Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te
guardem com cuidado!’” (Lc 4,9-10). Nós caímos nessa tentação sempre que procuramos
colocar Deus a serviço dos nossos caprichos; sempre que nos consideramos
inatingíveis, acima do bem e do mal; sempre que vivemos de maneira
irresponsável, esquecendo-nos de que tudo na vida tem consequências.
Eis a resposta de Jesus: “Não tentarás o Senhor
teu Deus” (Lc 4,12). Deus nos deu inteligência e liberdade. Não podemos usar
delas para ter atitudes inconsequentes e depois nos fazermos de vítimas diante
do sofrimento que provocamos a nós mesmos. Trata-se de viver a vida como uma
pessoa adulta, madura e responsável, e não como um adulto infantilizado, que
vive responsabilizando os outros pela sua infelicidade. Por mais que Deus nos
ame e seja misericordioso, Ele nos confrontará com as consequências das nossas
atitudes, pois isso é uma questão de justiça e de lógica: sempre colheremos
aquilo que plantarmos.
Enfim, depois que Jesus venceu as tentações, o
Evangelho nos diz que “o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo
oportuno” (Lc 4,13). A mesma coisa acontece conosco: sempre há um tempo
oportuno para a tentação voltar, porque nós sempre estamos lidando com a nossa
liberdade, fazendo escolhas e tomando decisões. Por isso, nossa luta contra o
mal tem a exata duração da nossa existência, e certamente se intensificará
quando estivermos perto do momento da nossa morte, como aconteceu com Jesus.
Ali será a última chance de o tentador procurar nos fazer renegar a fé. Portanto,
sejamos humildes e realistas. Peçamos diariamente a graça de não cairmos em tentação.
Pe. Paulo Cezar Mazzi
Caro @mazzi, suas homilias e esta especialmente permite aos seguidores de Cristo a confiar neste itinerário de fé, esperança e amor. Quando citou que "cada vez mais as pessoas têm um ‘como’ viver, mas elas não têm um ‘porque’ viver” (Victor Frankl6) me reportei ao Nietzsche que ressalta "quem tem um porque viver, pode, quase sempre suportar um como viver", de fato muitas escolhas são subjetivas no âmbito objetivo, mas sempre a realidade machuca demais. Que Deus te abençoe em seu ministério.
ResponderExcluirExatamente, querido irmão! Nietzsche entendeu perfeitamente isso. Forte abraço!!!
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