quinta-feira, 19 de março de 2020

A CEGUEIRA INTENCIONAL NÃO PODE SER CURADA


Missa do 4º dom. quaresma. Palavra de Deus: 1Samuel 16,1b.6-7.10-13a; Efésio 5,8-14; João 9,1-41.

“Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis: ‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece” (Jo 9,41). Existe um “não poder” ver, um “não conseguir” enxergar; mas também existe um “não querer” enxergar, um “não admitir” a verdade a respeito daquilo que a vida está tentando nos fazer ver há tempos. Existe uma cegueira que é proposital em nós: preferimos não ver para não nos comprometer. Essa cegueira é praticamente impossível de ser curada, porque não se trata de não poder, mas de não querer ver.
Este relato da cura de um cego de nascença nos revela que a cura da nossa cegueira começa pela correção da visão distorcida que temos em relação ao sofrimento, interpretando que quando Deus permite que uma pessoa sofra, é porque ela pecou: “Mestre, quem pecou para que nascesse cego: ele ou os seus pais?” (Jo 9,2). Na época de Jesus, havia uma mentalidade que afirmava que era possível a uma criança pecar antes de nascer, quando ainda estava no ventre de sua mãe. Jesus corrige essa visão distorcida, ao dizer: “Nem ele, nem seus pais pecaram” (Jo 9,3).
Ao fazer barro e colocar sobre os olhos do cego, Jesus nos diz que a cura da nossa cegueira começa quando aceitamos mudar a nossa maneira de ver as coisas, quando aceitamos nos colocar como barro nas mãos de Deus, nosso Oleiro, que pode nos fazer enxergar além das aparências: “O homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração” (1Sm 16,9). A pandemia do coronavírus é um barro que está sendo colocado sobre nossos olhos, olhos habituados a ver somente aquilo que lhe interessa e lhe oferece alguma vantagem; olhos que agora precisam enxergar e admitir a verdade de que somos todos iguais e todos mortais.
O Evangelho nos fala de visões que se chocam: de um lado, os fariseus, que veem Jesus como “um homem que não vem de Deus, porque não guarda o sábado” (Jo 9,16), e os judeus, que veem Jesus como “um pecador” (Jo 9,24); de outro, o homem que era cego e que vê Jesus como “um profeta” (Jo 9,17), como “um homem que veio de Deus” (Jo 9,33). Qual visão nós temos a respeito de Deus, de Jesus, da Igreja, da política etc.? Quantas pessoas estão cegas pelo fanatismo e pela ignorância? Quantas pessoas são doutrinadas por líderes políticos ou religiosos, por pseudos-filósofos, por youtubers etc.? Uma das coisas que nos ajuda a enxergar, a ampliar nossa visão a respeito da vida, é a leitura. Apesar de a geração nova não gostar de ler, a quarentena imposta pelo coronavírus é uma grande oportunidade de fazermos leituras que ampliem e aprofundem nossa visão a respeito de nós mesmos e da vida.
O conflito entre os judeus e o homem que era cego fez com que este fosse expulso da comunidade religiosa (cf. Jo 9,34). Quando começamos a enxergar melhor as coisas, passamos a enfrentar conflitos com pessoas que até então nos impunham a sua maneira de ver. Mas existem certos rompimentos que são necessários e que, embora nos causem sofrimento no momento, acabam nos fazendo bem. Quando começamos a ver com um pouco mais de profundidade, entendemos que precisamos nos afastar de pessoas e de hábitos que são nocivos, que nos adoecem, por nos oferecerem uma visão distorcida da realidade.
Assim como Jesus conversou com o homem que havia sido expulso da comunidade, ele nos pergunta se estamos dispostos a continuar aprofundando a nossa visão, compreendendo melhor a nós mesmos, os outros e a própria vida. Jesus nos convida a aceitar o desafio de permitir que certos acontecimentos quebrem com a imagem que temos de Deus, uma imagem distorcida, incorreta, que precisa ser reformulada porque não está sendo suficiente para sustentar a nossa fé frente aos acontecimentos do mundo atual.
Jesus afirmou que a verdade do seu Evangelho provoca uma reviravolta, fazendo com que “os que não veem vejam e os que veem se tornem cegos” (Jo 9,39). Os fariseus, que se julgavam ter uma visão esclarecida a respeito de tudo, não aceitam enxergar Jesus como salvador, coisa que o cego de nascença enxergou não somente com seus olhos físicos, mas também com os olhos da sua fé. Desse modo, um relato que começou acusando um cego de nascença de ser pecador terminou relevando que o pecado não consiste em ter nascido cego (Jo 9,2-3), mas em insistir em não ver, em não querer enxergar (Jo 9,40-41).
Concluindo nossa reflexão, o Evangelho de hoje deixa claro que a cegueira física – que pode ser curada por Jesus – não é consequência do pecado. Já a cegueira da falta de fé é consequência de um pecado de obstinação e, portanto, não pode ser curada. Desse modo, precisamos tomar para nós a pergunta dos fariseus: “Porventura também nós somos cegos?” (Jo 9,40). Nós também somos pessoas obstinadas em nossa visão estreita e, muitas vezes, míope a respeito da realidade? Até que ponto nós queremos ver? Até que ponto queremos viver como filhos da luz, guiando-nos na vida pela bondade, pela justiça e pela verdade? (cf. Ef 5,8-9). Jesus hoje toca em nossos olhos e nos convida a nos lavar, a mergulhar nas águas da Sua verdade para que possamos começar a ver, a enxergar com outros olhos a nós mesmos, aos outros e a realidade à nossa volta.
           
            Oração: Senhor Jesus, minha visão a respeito da vida algumas vezes é estreita e superficial. Amplia a minha capacidade de ver, de enxergar e de compreender as coisas. Senhor, eu quero aprender a ver em profundidade. Lava meus olhos nas águas da tua Verdade, para que eu veja o que preciso ver, em vista do meu bem, do meu crescimento, e em vista da minha colaboração para que outras pessoas deixem de serem guiadas por outros que têm uma visão distorcida e mal intencionada. Ajuda-me a ver, Senhor, para além das aparências. Ilumina-me com a tua Luz, para que eu caminhe na vida como filho(a) da luz, vivendo segundo a bondade, a justiça e a verdade. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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