Missa do 22º.
dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 4,1-2.6-8; Tiago 1,17-18.21b-22.27;
Marcos 7,1-8.14-15.21-23
No tempo de Jesus havia uma
separação religiosa considerada fundamental: as pessoas puras não deveriam se misturar com as pessoas impuras. No caso, os fariseus, que se consideravam puros, não se
misturavam com os pagãos, considerados por eles como impuros. No entanto, Jesus
nunca se preocupou com essa separação. Pelo contrário, ele quebrou propositalmente
essa tradição por entender que quem
precisa de médico são os doentes (cf. Mt 9,12), quem precisa de salvação são os
perdidos (cf. Lc 19,10). Portanto, o lugar da Igreja, o lugar de todo discípulo
de Jesus, é no meio das pessoas impuras,
pessoas que são sistematicamente feitas impuras
por uma sociedade injusta, que joga inúmeras pessoas na impureza da violência, do desemprego, da prostituição, da falta de
acesso à saúde e à educação de qualidade.
Essa distinção bíblica entre puro e impuro serve como alerta para nós, que vivemos numa época de
inversão de valores, uma época onde tudo é propositalmente misturado para gerar
confusão e embaralhar a consciência das pessoas, incentivando-as a ver tudo
como “normal”, como “bom” e “válido”. Desse modo, aquilo que é doente deixa de sê-lo, e passa a ser visto apenas como “diferente”.
Aquilo que é errado, mentiroso, injusto e destrutivo deixa de sê-lo, e passa a
ser visto apenas como “diferente”. Se isso não bastasse, nessa sociedade de
valores invertidos está proibido diagnosticar e tratar o doente! Está proibido
corrigir o errado! Está proibido
purificar o impuro! Quem se atrever a fazer isso será processado como preconceituoso.
Mas, afinal de contas, como começou
essa discussão de Jesus com os fariseus, a respeito do puro e do impuro? Ela
começou com o fato de que alguns dos discípulos de Jesus “comiam o pão com as
mãos impuras, isto é, sem as terem lavado” (Mc 7,2). Então, os fariseus foram
questionar Jesus: “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos
antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” (Mc 7,5). A questão hoje é: o que suja as nossas mãos? Você tem
trabalhadores que sujam as mãos na roça ou na indústria, mas cujo pão que comem
em casa é um pão limpo, ganho com honestidade, e você também tem trabalhadores
que estão com as mãos limpas, mas cujo pão que comem em casa é um pão sujo,
ganho não à custa do suor do rosto, mas do roubo, da mentira, da trapaça, da
corrupção. E se perguntarmos a Jesus quando é que nossas mãos são limpas e
quando são sujas, ele certamente nos responderá: ‘Suas mãos são limpas quando, depois de terem recebido nelas o meu
Corpo na Igreja (Eucaristia), essas mesmas mãos se estendem para tocar o meu
Corpo na pessoa dos necessitados. Mas suas mãos são sujas quando, mesmo
tendo recebido o meu Corpo na Igreja (Eucaristia), vocês desviam o olhar,
recolhem as mãos e deixam de ser presença cristã junto aos que sofrem’.
De fato, o apóstolo Tiago disse: “a religião pura e sem mancha diante de
Deus Pai é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se
deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1,27). Hoje nós vivemos um momento
crítico em nossa Igreja: o fascínio pelo tradicionalismo. Não poucos jovens,
seminaristas e padres rejeitam a Igreja do Papa Francisco – a Igreja segundo o
Evangelho – e sonham com o retorno da Igreja da época da cristandade, uma
Igreja reverenciada pelo mundo, uma Igreja ornada de ouro, onde seus ministros
se revestem de paramentos caros e luxuosos na mesma proporção em que são vazios
e se mantém distantes dos pobres e dos que sofrem. Diferente de Jesus e do Papa
Francisco, que entendem a missão da Igreja como presença de salvação junto aos impuros desse mundo, a geração
tradicionalista quer a volta de uma Igreja separada do mundo, distante dos
conflitos da humanidade, fechada em si mesma, sentada no trono da sua arrogância e na sua presunção de se achar uma
instituição “pura” no meio de um mundo “impuro”. Esse tipo de Igreja, além
de ser uma traição ao Evangelho, é um desserviço à humanidade.
Jesus, após rejeitar o
tradicionalismo religioso dos fariseus, disse: “Escutai todos e compreendei: o
que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do
seu interior” (Mc 7,20). Há uma verdade importantíssima aqui: nós não somos o
que o mundo faz de nós; nós somos aquilo que decidimos fazer com o que o mundo
nos oferece. Por uma questão de comodismo, muitas pessoas assumiram diante da
vida uma postura de vítimas: a responsabilidade por elas serem impuras (infelizes, fracas, doentes,
fracassadas) vem de fora: dos pais que as criaram, do ambiente em que cresceram,
da escola em que estudam, do lugar em que trabalham, do país em que vivem. A
teoria delas é essa: se o mundo fosse
melhor, elas também seriam melhores.
Jesus,
ao rejeitar esse tipo de desculpa esfarrapada, nos lembra que existe um espaço
dentro de nós habitado pela liberdade e pela responsabilidade. Esse espaço se
chama “coração” (ou “consciência”). Pelo fato de Deus nos ter dotado de
liberdade e de responsabilidade, cabe a
nós decidir não só o que “entra” em nós (influências externas), mas também o
que “sai” de nós (atitudes, comportamentos). Sem dúvida, todos nós
recebemos uma forte influência do mundo, principalmente da mídia e da
tecnologia. Mas Jesus faz duas perguntas a cada um de nós: ‘O que há dentro de
você: um filtro ou um esgoto? Sua consciência/seu coração
funciona como um filtro ou como um esgoto?’ Enquanto o esgoto engole
tudo (a ideia de que “tudo é válido”), o filtro separa o que presta do
que não presta, o que convém daquilo que não convém, o que condiz com a sua
condição de cristão e o que não condiz.
Muitas
pessoas acham mais fácil “funcionar” como esgoto
do que como filtro. Dá menos trabalho;
no entanto, isso nos faz um mal imenso. Há muita coisa tóxica que tem se
instalado dentro de nós porque pervertemos nosso filtro em esgoto. Neste
sentido, a pior corrupção não é aquela que se encontra fora de nós, mas dentro:
a corrupção dos nossos valores, a
desorientação da nossa bússola interna, o seguir pela vida esperando que os
outros, o destino ou a própria vida escolha e decida por nós, o deixar-se levar
pela onda do momento, pelo “politicamente correto”. Jesus convida cada um de
nós a assumir a responsabilidade por suas escolhas e por suas decisões. Ele nos
convida a cuidar desse espaço sagrado em nós chamado coração/consciência, um
espaço que precisa estar constantemente iluminado pela Palavra da verdade (cf.
Tg 1,18), para poder discernir, separar o puro do impuro, o que presta do que
não presta, o que convém daquilo que não convém a nós como seres humanos, como
cristãos, como pessoas destinadas à vida eterna.
Oração: Senhor Jesus, andando pelo jardim da
minha consciência e do meu coração, percebo a presença de ervas daninhas e de
plantas tóxicas, que têm adoecido a minha alma e trazido confusão aos meus
valores. Essas plantas nasceram em mim porque deixei de cultivar o meu jardim
interior, deixei de fazer a limpeza do filtro da minha consciência, deixei de
distinguir o certo do errado, o justo do injusto, o saudável do doentio.
Hoje
quero agradecer a Palavra da verdade contida no teu Evangelho, Palavra que sou
chamado(a) não só a ouvir, mas a colocar em prática (cf. Tg 1,22). Quero
assumir o compromisso de me posicionar criticamente diante de tudo aquilo que o
mundo me oferece. Quero, sobretudo, reassumir a direção da minha liberdade e da
minha responsabilidade, fazendo as escolhas e tomando as decisões necessárias
para a minha vida, sem esperar e, muito menos, permitir que o mundo escolha ou
decida por mim.
Purifica
minhas mãos, Senhor! Que o meu trabalho e as minhas atitudes sejam pautados
pela honestidade. Que o meu comportamento seja justo. Que a minha vivência
religiosa me leve para perto daqueles que sofrem e que precisam do meu sal e da
minha luz. Enfim, que a minha presença neste mundo o ajude a se tornar menos
impuro, menos injusto, menos corrompido, menos doente, mais fraterno, mais
pacífico, mais saudável e mais digno para todos os seres humanos. Amém!