Missa do 21º.
dom. comum. Palavra de Deus: Josué 24,1-2a.15-17.18b; Efésios 5,21-32; João
6,60-69.
“Muitos
dos discípulos de Jesus que o escutaram, disseram: ‘Esta palavra é dura. Quem
consegue escutá-la?’ (...) A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele” (Jo
6,60.66). Fale o que as pessoas gostam de ouvir, e você terá muita gente
ao seu redor; fale o que as pessoas precisam ouvir, e você ficará com
pouca gente perto de você.
Nós somos pessoas melindrosas: basta
que alguém diga algo que contrarie nossas ideias, que frustre nossas
expectativas ou questione uma conduta errada da nossa parte e, pronto! A guerra
está declarada, o relacionamento está abalado, a antipatia está criada, a
pessoa é “deletada” dos nossos contatos... É assim que muitos de nós agimos hoje:
nos rodeamos de pessoas que pensam como nós e nos distanciamos de quem pensa
diferente de nós, inclusive dentro da Igreja. Mas, no caso da Palavra de Deus,
Palavra encarnada em Jesus Cristo, a situação é muito mais séria, pois não se
trata de nos distanciarmos de alguém que pensa diferente de nós; trata-se de nos
distanciarmos d’Aquele é “a Verdade” (Jo 14,6), e recusar orientar-se pela verdade
é algo desastroso para qualquer ser humano. Toda
pessoa que rejeita a verdade de Deus a respeito de si e da vida acaba por
destruir-se com as próprias mãos.
Os muitos discípulos que deixaram de
seguir Jesus o fizeram dizendo: “Esta palavra é dura”. É a Palavra que Deus que
é dura, ou somos nós que somos “moles”, pessoas que não admitem ser questionadas
e despertadas do seu estilo de vida doentio? É a Palavra de Deus que é dura, ou
somos nós que temos a mania de “adaptá-La” forçadamente aos nossos interesses
ao invés de nos convertermos à sua verdade? No mundo atual há um “mercado”
religioso gigantesco. Você não precisa mais ficar preso a uma única igreja ou
religião. Sempre que você escuta ou lê algo que fere seu ego, que o tira da
fantasia e o coloca em contato com a realidade, você pode deixar aquela igreja
ou religião e ir em busca de outra, que fale aquilo que confirma seu estilo de
vida e sua maneira de pensar, ainda que você esteja construindo sua vida sobre
a areia da mentira e não sobre a rocha da verdade.
Os discípulos que deixaram de
caminhar com Jesus não suportaram enfrentar a crise que a sua Palavra
provocou neles. Nós, seres humanos, temos aversão a crises. Detestamos quando
alguém nos fale algo que abala nossas certezas e enche nossa fé de
questionamentos. No entanto, a melhor coisa que pode nos acontecer é passar por
uma séria crise. É na crise que nos damos conta de que chegou a hora de
deixarmos de ser infantis e passarmos a enfrentar a vida como adultos. É na crise, palavra ligada ao crisol, lugar onde se purifica o ouro e
a prata, que o nosso olhar é purificado e nós passamos a enxergar de maneira
mais límpida Deus, a vida e a nós mesmos. Toda fé que não aceita passar por
crises é uma fé infantil, mimada, egocêntrica, uma fé que só mantém o
relacionamento com Deus na medida em que não é frustrada por Ele.
No entanto, Deus não está preocupado
em não nos frustrar, mas em nos curar e nos fazer crescer, e não há cura nem
crescimento sem crise. Por entender isso, Jesus não “negociou” com os muitos
discípulos que reclamaram da “dureza” da sua Palavra; ele não modificou o
conteúdo do seu ensinamento para que se tornasse mais adaptado à “preguiça
espiritual” dos discípulos, mas os advertiu: “O Espírito é que dá vida, a carne
não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida” (Jo 6,63). O
sentido da nossa vida não está na “carne”, isto é, não está em reduzirmos os
nossos sonhos e os nossos desejos aos caprichos e às manhas do nosso egoísmo. O
sentido da nossa vida está em nos abrirmos ao Espírito, ao que Deus nos chamou
a ser, ao que o seu Espírito quer realizar em nós por meio da Verdade, isto é,
da Palavra que é espírito e vida, da Palavra que nos vivifica a partir de
dentro.
“Mas entre vós há alguns que não creem”
(Jo 6,64). Entre o clero, entre os pregadores do Evangelho, há alguns que não
creem, alguns que, apesar de terem perdido a fé e o sentido da vida presbiteral,
se mantêm como padres ou bispos por status e, sobretudo, por sobrevivência
econômica. Entre o clero também há aqueles que reduzem a pregação da Palavra a
sermões moralistas, cuja exigência moral eles próprios não tocam nem com um
dedo (cf. Mt 23,4). Entre nós, fiéis, também há alguns que não creem, alguns que
não se deixam interpelar pela Palavra de Deus, alguns que, ao serem
questionados pela Palavra, reagem dizendo: “Eu estou certo! Errada está a
Palavra, errada está a Igreja”.
Muito interessante a reação de
Jesus, ao ver muitos dos seus discípulos o abandonarem. Serenamente, ele se
volta para os doze apóstolos e lhes pergunta: “Vós também vos quereis ir
embora?” (Jo 6,67). Muitas pessoas já se desencantaram com Deus, com Jesus e,
sobretudo, com a Igreja; por que nós ainda estamos nela? Quase duas semanas
depois de o Senado argentino rejeitar a proposta de legalização do aborto,
centenas de argentinos pró-aborto fizeram uma renúncia coletiva ao catolicismo
(https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/08/20/centenas-de-argentinos-fazem-renuncia-coletiva-ao-catolicismo.ghtml).
Você também quer deixar de ser católico?
A
pergunta de Jesus: “Vós também vos quereis ir embora?” (Jo 6,67) nos lembra que
a fé, cada vez mais, é uma escolha pessoal, e não uma tradição familiar. Do
mesmo modo, Josué havia proposto ao povo de Israel: “Se vos parece mal servir
ao Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir (...) Quanto a mim e à minha família,
nós serviremos ao Senhor” (Js 24,15). Por mais intragável que seja, a verdade é
que todo ser humano escolhe a quem servir; todo ser humano está debaixo
de uma autoridade: quem não escolhe
livremente colocar-se sob a autoridade de Cristo e da sua Palavra, acaba
por sofrer uma autoridade imposta
pelo maligno (cf. Rm 6,15-19).
Pedro, representando os doze
apóstolos, fez a sua escolha: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida
eterna” (Jo 6,68). Assim como Pedro, nós, convivendo com inúmeras pessoas que
escolheram sair da Igreja, motivadas inclusive por escândalos praticados por
alguns representantes dessa mesma Igreja, dizemos: ‘Nós continuamos na Igreja
porque ela nasceu de Jesus e dos apóstolos, e a ela foi confiada a Palavra de
vida eterna. Estamos na Igreja por causa da Palavra de Jesus, e não por causa do
esforço dos seus pregadores em viver segundo a Palavra, esforço, aliás,
nitidamente perceptível como cada vez menor. Não continuamos na Igreja porque
ela é uma instituição santa, impecável, mas porque ela é continuamente santificada por Cristo com a sua Palavra
(cf. Ef 5,26), a mesma Palavra que irá julgá-la primeiramente, antes de julgar
o mundo (cf. 1Pd 4,17)!’
Oração:
Aqui estou, Senhor, diante da tua Palavra, Palavra dura, exigente, profunda,
mas verdadeira. Sei das minhas resistências à tua Palavra. Tenho consciência do
quanto procuro adaptá-La aos meus caprichos, ao invés de me deixar curar,
libertar e transformar por sua Verdade. Não quero deixar de te seguir, Senhor.
Não quero fugir do confronto com a verdade da tua Palavra. Não quero viver
reduzido(a) à “carne”, mas aberto(a) ao Espírito que dá vida. Quero aprender a suportar
a crise que a tua Palavra provoca em mim sempre que direciono minha vida para a
ilusão e a mentira.
Olha
por tua Igreja, Senhor, e santifica-a por meio da tua Palavra. Afasta de nós os
pregadores desautorizados a falarem de Ti, porque não se esforçam em viver
segundo o teu Evangelho. Suscita em tua Igreja homens e mulheres que aceitem
ser confrontados com a dureza da tua Palavra, ao mesmo tempo em que a anunciam
aos outros. Enfim, abençoa todos os catequistas, para que sejam portadores da
Palavra que é espírito e vida para as novas gerações. Amém!
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