sexta-feira, 24 de agosto de 2018

DIANTE DA VERDADE NÃO HÁ NEGOCIAÇÃO

Missa do 21º. dom. comum. Palavra de Deus: Josué 24,1-2a.15-17.18b; Efésios 5,21-32; João 6,60-69.

            “Muitos dos discípulos de Jesus que o escutaram, disseram: ‘Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?’ (...) A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele” (Jo 6,60.66). Fale o que as pessoas gostam de ouvir, e você terá muita gente ao seu redor; fale o que as pessoas precisam ouvir, e você ficará com pouca gente perto de você.
            Nós somos pessoas melindrosas: basta que alguém diga algo que contrarie nossas ideias, que frustre nossas expectativas ou questione uma conduta errada da nossa parte e, pronto! A guerra está declarada, o relacionamento está abalado, a antipatia está criada, a pessoa é “deletada” dos nossos contatos... É assim que muitos de nós agimos hoje: nos rodeamos de pessoas que pensam como nós e nos distanciamos de quem pensa diferente de nós, inclusive dentro da Igreja. Mas, no caso da Palavra de Deus, Palavra encarnada em Jesus Cristo, a situação é muito mais séria, pois não se trata de nos distanciarmos de alguém que pensa diferente de nós; trata-se de nos distanciarmos d’Aquele é “a Verdade” (Jo 14,6), e recusar orientar-se pela verdade é algo desastroso para qualquer ser humano. Toda pessoa que rejeita a verdade de Deus a respeito de si e da vida acaba por destruir-se com as próprias mãos.
            Os muitos discípulos que deixaram de seguir Jesus o fizeram dizendo: “Esta palavra é dura”. É a Palavra que Deus que é dura, ou somos nós que somos “moles”, pessoas que não admitem ser questionadas e despertadas do seu estilo de vida doentio? É a Palavra de Deus que é dura, ou somos nós que temos a mania de “adaptá-La” forçadamente aos nossos interesses ao invés de nos convertermos à sua verdade? No mundo atual há um “mercado” religioso gigantesco. Você não precisa mais ficar preso a uma única igreja ou religião. Sempre que você escuta ou lê algo que fere seu ego, que o tira da fantasia e o coloca em contato com a realidade, você pode deixar aquela igreja ou religião e ir em busca de outra, que fale aquilo que confirma seu estilo de vida e sua maneira de pensar, ainda que você esteja construindo sua vida sobre a areia da mentira e não sobre a rocha da verdade.
            Os discípulos que deixaram de caminhar com Jesus não suportaram enfrentar a crise que a sua Palavra provocou neles. Nós, seres humanos, temos aversão a crises. Detestamos quando alguém nos fale algo que abala nossas certezas e enche nossa fé de questionamentos. No entanto, a melhor coisa que pode nos acontecer é passar por uma séria crise. É na crise que nos damos conta de que chegou a hora de deixarmos de ser infantis e passarmos a enfrentar a vida como adultos. É na crise, palavra ligada ao crisol, lugar onde se purifica o ouro e a prata, que o nosso olhar é purificado e nós passamos a enxergar de maneira mais límpida Deus, a vida e a nós mesmos. Toda fé que não aceita passar por crises é uma fé infantil, mimada, egocêntrica, uma fé que só mantém o relacionamento com Deus na medida em que não é frustrada por Ele.
            No entanto, Deus não está preocupado em não nos frustrar, mas em nos curar e nos fazer crescer, e não há cura nem crescimento sem crise. Por entender isso, Jesus não “negociou” com os muitos discípulos que reclamaram da “dureza” da sua Palavra; ele não modificou o conteúdo do seu ensinamento para que se tornasse mais adaptado à “preguiça espiritual” dos discípulos, mas os advertiu: “O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida” (Jo 6,63). O sentido da nossa vida não está na “carne”, isto é, não está em reduzirmos os nossos sonhos e os nossos desejos aos caprichos e às manhas do nosso egoísmo. O sentido da nossa vida está em nos abrirmos ao Espírito, ao que Deus nos chamou a ser, ao que o seu Espírito quer realizar em nós por meio da Verdade, isto é, da Palavra que é espírito e vida, da Palavra que nos vivifica a partir de dentro.
            “Mas entre vós há alguns que não creem” (Jo 6,64). Entre o clero, entre os pregadores do Evangelho, há alguns que não creem, alguns que, apesar de terem perdido a fé e o sentido da vida presbiteral, se mantêm como padres ou bispos por status e, sobretudo, por sobrevivência econômica. Entre o clero também há aqueles que reduzem a pregação da Palavra a sermões moralistas, cuja exigência moral eles próprios não tocam nem com um dedo (cf. Mt 23,4). Entre nós, fiéis, também há alguns que não creem, alguns que não se deixam interpelar pela Palavra de Deus, alguns que, ao serem questionados pela Palavra, reagem dizendo: “Eu estou certo! Errada está a Palavra, errada está a Igreja”.
            Muito interessante a reação de Jesus, ao ver muitos dos seus discípulos o abandonarem. Serenamente, ele se volta para os doze apóstolos e lhes pergunta: “Vós também vos quereis ir embora?” (Jo 6,67). Muitas pessoas já se desencantaram com Deus, com Jesus e, sobretudo, com a Igreja; por que nós ainda estamos nela? Quase duas semanas depois de o Senado argentino rejeitar a proposta de legalização do aborto, centenas de argentinos pró-aborto fizeram uma renúncia coletiva ao catolicismo (https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/08/20/centenas-de-argentinos-fazem-renuncia-coletiva-ao-catolicismo.ghtml). Você também quer deixar de ser católico?
A pergunta de Jesus: “Vós também vos quereis ir embora?” (Jo 6,67) nos lembra que a fé, cada vez mais, é uma escolha pessoal, e não uma tradição familiar. Do mesmo modo, Josué havia proposto ao povo de Israel: “Se vos parece mal servir ao Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir (...) Quanto a mim e à minha família, nós serviremos ao Senhor” (Js 24,15). Por mais intragável que seja, a verdade é que todo ser humano escolhe a quem servir; todo ser humano está debaixo de uma autoridade: quem não escolhe livremente colocar-se sob a autoridade de Cristo e da sua Palavra, acaba por sofrer uma autoridade imposta pelo maligno (cf. Rm 6,15-19).
            Pedro, representando os doze apóstolos, fez a sua escolha: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68). Assim como Pedro, nós, convivendo com inúmeras pessoas que escolheram sair da Igreja, motivadas inclusive por escândalos praticados por alguns representantes dessa mesma Igreja, dizemos: ‘Nós continuamos na Igreja porque ela nasceu de Jesus e dos apóstolos, e a ela foi confiada a Palavra de vida eterna. Estamos na Igreja por causa da Palavra de Jesus, e não por causa do esforço dos seus pregadores em viver segundo a Palavra, esforço, aliás, nitidamente perceptível como cada vez menor. Não continuamos na Igreja porque ela é uma instituição santa, impecável, mas porque ela é continuamente santificada por Cristo com a sua Palavra (cf. Ef 5,26), a mesma Palavra que irá julgá-la primeiramente, antes de julgar o mundo (cf. 1Pd 4,17)!’       

            Oração: Aqui estou, Senhor, diante da tua Palavra, Palavra dura, exigente, profunda, mas verdadeira. Sei das minhas resistências à tua Palavra. Tenho consciência do quanto procuro adaptá-La aos meus caprichos, ao invés de me deixar curar, libertar e transformar por sua Verdade. Não quero deixar de te seguir, Senhor. Não quero fugir do confronto com a verdade da tua Palavra. Não quero viver reduzido(a) à “carne”, mas aberto(a) ao Espírito que dá vida. Quero aprender a suportar a crise que a tua Palavra provoca em mim sempre que direciono minha vida para a ilusão e a mentira.
Olha por tua Igreja, Senhor, e santifica-a por meio da tua Palavra. Afasta de nós os pregadores desautorizados a falarem de Ti, porque não se esforçam em viver segundo o teu Evangelho. Suscita em tua Igreja homens e mulheres que aceitem ser confrontados com a dureza da tua Palavra, ao mesmo tempo em que a anunciam aos outros. Enfim, abençoa todos os catequistas, para que sejam portadores da Palavra que é espírito e vida para as novas gerações. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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