sexta-feira, 16 de outubro de 2015

RITO DE PASSAGEM

Missa do 29º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 53,10-11; Hebreus 4,14-16; Marcos 10,35-45.

Quanto vale a vida de alguém que você ama? Quanto você estaria disposto(a) a pagar/sofrer para resgatar/trazer de volta aquilo que é mais precioso para a sua vida? Você é capaz de “morrer” para salvar/resgatar/recuperar seu casamento, sua família, seu filho, o ambiente em que trabalha, a igreja que frequenta, o planeta em que vive?
Aceitar ser macerado/esmagado com sofrimentos. Aceitar fazer de sua vida uma expiação/um contínuo pedido de perdão pelos pecados os outros. Aceitar carregar sobre si as culpas dos outros. Só um aceitou viver assim: Jesus, o Servo Sofredor. Embora instintivamente nós fujamos (ou tentemos fugir) da dor, Jesus quis ir ao encontro dela para nos ensinar que não se trata de buscar o sofrimento pelo sofrimento, mas de entrar em comunhão com todo aquele que sofre.
Sim. É verdade que o confronto com a dor, com o sofrimento, nos faz vacilar na fé. Contudo, devemos aprender a permanecer “firmes na fé que professamos” (Hb 4,14), pois não há dor neste mundo que Jesus não tenha conhecido, experimentado, carregado sobre si e redimido. Ele é, diante de Deus, o nosso Intercessor, o “sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15). Não há culpa/condenação neste mundo que Jesus não tenha absolvido, expiado, perdoado.
Existem expressões bíblicas que precisam ser aprofundadas. Ser “macerado” (Is 53,10) significa ser moído como trigo, esmagado como uva. Há situações que exigem isso de nós: fidelidade, coerência, santidade. Trata-se de moer/esmagar o próprio ego, a tendência a se fechar, a se acomodar, a não ajudar, a deixar morrer algo que podemos impedir que morra. Ser “provado” (Hb 4,15)/experimentado no sofrimento significa tornar-se adulto diante da vida; agir como adulto diante das escolhas que fizemos. É uma espécie de “rito de passagem”. Quem não aceita ser provado/experimentado na dor permanece na infância ou na adolescência de si mesmo, da sua fé, da compreensão da vida; ainda não se tornou adulto, nem como pessoa, nem como cristão.
“Queremos que faças por nós o que vamos pedir... Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda quando estiveres na tua glória!” (Mc 10,35.37). Assim como Tiago e João, nós também queremos a glória, a coroa, a vitória, o troféu, o reconhecimento, o prêmio... Mas ninguém recebe isso sem lutar (cf. 1Cor 9,24-25)! A vida é luta; a fé é luta: luta consigo, com os próprios instintos, com o ego que quer tudo para si e se recusa a não ser o centro, a não ser tratado como príncipe; luta com uma sociedade que busca a sua própria glória à custa do sofrimento dos outros; luta contra a tentação de ser reconhecido como vencedor sem ter tido que lutar.  
Antes de sentar-se na glória, é preciso ter a capacidade de beber o cálice da dor e de mergulhar (batismo) no sofrimento do mundo. Você está disposto(a)? Mais uma vez é importante deixar claro: não se trata de programar seu GPS interior para ir de encontro à dor, mas de aprender a lidar com ela, caso cruze o seu caminho. Trata-se de não desistir dos nossos objetivos ou dos ideais que abraçamos simplesmente porque agora nos deparamos com a dor. “Quando começou a doer, eu larguei, eu desisti”: é assim que você se comporta diante das escolhas que faz na vida?
Jesus afirma que “veio para servir e dar sua vida como resgate para muitos” (Mc 10,45). Todo resgate tem um preço. Eu só aceito pagar o preço do resgate por algo que é por demais precioso para mim. Qual é o preço do resgate? O preço é a doação da vida, o sacrifício de si mesmo. Justamente porque cada ser humano é precioso para Deus, Jesus suportou morrer, isto é, ser moído, esmagado, sofrer, para ter você de volta, para te resgatar, para te salvar. E você, está disposto(a) a fazer o mesmo para salvar aquilo ou aqueles aos quais você ama? 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

DESVENCILHAR-SE DO ANZOL DÓI

Missa do 28. dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 7,7-11; Hebreus 4,12-13; Marcos 10,17-30.

            Dizem que “todo homem tem seu preço”, isto é, todos nós somos passíveis de sermos corrompidos; todos nós colocamos de lado valores como ética e justiça, quando se trata de “ganhar” dinheiro, mesmo que ele seja fruto de desonestidade ou injustiça. O filósofo Nietzsche discordava dessa afirmação. Ele dizia: Todo homem tem seu preço, diz a frase. Não é verdade. Mas para cada homem existe uma isca que ele não consegue deixar de morder” (Nietzsche). Talvez nem todos nós sejamos passíveis de sermos corrompidos, mas, com certeza, ninguém de nós consegue resistir àquela “isca” que nos mantêm presos ao “anzol de ouro” do mundo atual, chamado “dinheiro”.
            Qual “isca” tem cevado você? Em que tipo de anzol sua vida se encontra enroscada? Que tipo de situação “fisga” a sua alma, puxando você para fora da água de que tanto precisa para viver? Como está sua vida financeira? Como anda a sua liberdade diante da propaganda de consumo? Como você lida com o dinheiro? Você é uma pessoa livre ou “possessa”, isto é, possuída por seus bens? (E, consequentemente, atormentada por dívidas?)
            O livro da Sabedoria faz uma comparação a respeito de “valores”: “Preferi a sabedoria... à riqueza (...), pois a seu lado, todo ouro do mundo é um punhado de areia... Amei-a mais que a saúde e a beleza... Todos os bens me vieram com ela” (Sb 7,8-11). Quando você tem sabedoria, discernimento, equilíbrio, liberdade interior, muito pouco é necessário para que se sinta feliz. Mas, quando te falta sabedoria, tudo o que você possa vir a ter, a possuir, a acumular, a construir, arruína, se perde, porque você não tem cabeça: seu coração está fragmentado, você perdeu sua bússola interior.
            Diz Tagore: “Há triunfos que só se obtêm pelo preço da alma, mas a alma é mais preciosa que qualquer triunfo”. Quem se corrompe para se enriquecer, ou não crê na existência da alma, ou ignora quão preciosa ela seja. Por isso, precisamos pedir, como o salmista: “Ensinai-nos a contar os nossos dias e dai ao nosso coração sabedoria!” (Sl 90,12). Precisamos permitir que a Palavra do Senhor penetre em nós “até dividir alma e espírito”, ou seja, até nos tornar conscientes dos “pensamentos” e das verdadeiras “intenções” do nosso coração (cf. Hb 4,12).
            Existe o palco e existem os bastidores. Enquanto os nossos olhos veem aquilo que algumas pessoas ricas ostentam, os olhos de Deus enxergam os “bastidores”, e sabe de onde vem essa ostentação: se ela é fruto de trabalho honesto ou de atitudes corruptas. Além disso, ainda que o dinheiro possa comprar alguns juízes, ele não pode comprar o verdadeiro Juiz, cuja Palavra julgará as atitudes de cada um de nós (cf. Hb 4,13).
            Foi diante dessa Palavra que um homem rico se colocou. Ao que tudo indica, ele tinha um coração bom e caminhava na retidão diante de Deus. Mas Jesus, que conhece o que há no coração do ser humano, percebeu que ele estava preso a um “anzol”, e então lhe disse: “Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!” (Mc 10,21).
            Este é o motivo pelo qual fazemos questão de não silenciar, de não ouvir Deus em nossa consciência ou em nosso coração: temos medo de que Ele nos diga: “Ainda te falta uma coisa”. O que falta para que você seja um ser humano melhor, um cristão melhor? Você está disposto a deixar de morder a isca e se desenroscar desse anzol que te prende à margem do rio da vida, impedindo você de mergulhar em águas mais profundas, de experimentar uma felicidade mais verdadeira?
            Ao se dar conta de que podia ser um ser humano melhor, desvencilhando-se da falsa segurança da sua riqueza, aquele homem “ficou abatido e foi embora cheio de tristeza” (Mc 10,22). Quando você estiver lendo a Bíblia ou ouvindo a Palavra numa celebração e sentir-se triste, angustiado, incomodado, agradeça a Deus! É sinal de que a Palavra penetrou em você e acordou o seu coração, para lhe mostrar que você precisa se abrir mais para Deus, que você precisa dar de si e não dar apenas dinheiro, que você precisa despojar-se da falsa segurança que o dinheiro te dá e ter a consciência de que você precisa ser salvo.
Ao final desse “diálogo” entre a Palavra de Deus e a sua consciência, se você se der conta de que precisa ter uma outra postura diante dos pobres, reflita sobre essas palavras do Papa Francisco: “A verdadeira pobreza dói. Desconfio da esmola que não custa nem dói. A atenção pelos pobres está no Evangelho”

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

TALVEZ ALGO EM VOCÊ PRECISE DE "ATUALIZAÇÃO"

Missa do 27º. dom. comum. Palavra de Deus: Gênesis 2,18-24; Hebreus 2,9-11; Marcos 10,2-16.
           
Uma pergunta para os solteiros: você se casaria? Uma pergunta para os casados: você se casaria com a mesma pessoa com quem se casou? Uma pergunta para os divorciados e para os viúvos: você voltaria a se casar?
Esta é a convicção de Deus: “Não é bom que o homem (ser humano) esteja só” (Gn 2,18). Você compartilha desta convicção ou, devido à convivência estar hoje cada vez mais difícil, você também decidiu optar por ficar só? Se é verdade que “não é bom que o ser humano esteja só” também é verdade que não é bom que o ser humano queira preencher o seu “vazio” com qualquer coisa, de qualquer forma. É importante suportar-se, ouvir-se, conhecer-se. É igualmente importante perceber se o que leva você a buscar alguém é porque quer se sentir feliz ou porque quer fazer esse alguém feliz...
As novas gerações demonstram não só uma decepção/rejeição em relação ao casamento – consequência do que vivem em casa? – como também um medo enorme em fazer uma escolha definitiva. Antes de o ser humano encontrar-se com o outro, ele precisou dar nome aos animais (cf. Gn 2,19). No campo psicológico, isso significa dar nome/reconhecer nossos sentimentos, nossas emoções. Significa também saber por que estão ali e ouvir o que eles estão nos dizendo. Antes de aprender a conviver com o outro, eu preciso aprender a conviver comigo, com a minha delícia e com a minha dor.
A Escritura descreve a mulher em relação ao homem como uma “auxiliar semelhante a ele” (Gn 2,16). Por que “auxiliar”? Por que o peso da vida precisa ser compartilhado. A palavra “cônjuge” – com jugo, com peso – pede que se compartilhe o mesmo peso. Tudo tem seu peso. Decidir casar-se tem um peso, assim como decidir não casar-se tem outro peso. Além disso, esse outro que é meu “auxiliar” é também “semelhante” a mim. Assim como eu, ele tem sua delícia e sua dor, sua força e sua fraqueza, seu lado encantador e seu lado decepcionante...
Onde encontrar o(a) meu(minha) auxiliar? Na internet? No baile funk? Na igreja? Na boca de fumo? Que critérios usar na escolha? Pode ser qualquer um, desde que você não esteja só? Para lhe conceder uma auxiliar semelhante, Deus faz o ser humano cair num sono profundo (cf. Gn 2,21): é ali que sonhamos e é também ali que “ouvimos” o nosso inconsciente. Deus coloca a presença do outro em minha vida não como se ele fosse uma criação minha, mas como ele verdadeiramente é: parte de mim. Somos parte um do outro. E, se somos “parte”, preciso aprender a considerar a parte que é o outro e não somente a parte que sou eu. A superação da crise, a cura, a restauração, a revitalização do relacionamento depende das duas partes, e nunca de uma só.
Para começar um caminho com o outro, eu preciso deixar meu pai e minha mãe, o que supõe que eu alcancei a minha maturidade econômica e emocional. Hoje nós temos inúmeras crianças e adolescentes precocemente “iniciados” na vida sexual, assim como temos inúmeros adultos infantilizados, mal resolvidos na sexualidade e desorganizados na administração das finanças, causa de não poucos divórcios.      
O autor da carta aos Hebreus fez uma afirmação a respeito de Jesus que vale para os nossos relacionamentos: “Pela graça de Deus em favor de todos, ele provou a morte” (Hb 2,9). Hoje é cada vez mais visível a incapacidade ou a rejeição de “morrer” pelo bem da família, do casamento, do vínculo. No entanto, só quem ama verdadeiramente é capaz de “morrer”, de suportar e de enfrentar “momentos de morte”, para que o relacionamento com a pessoa amada possa reviver.
Quando questionado a respeito do divórcio, Jesus deixou claro que ele é resultado da “dureza do coração”, isto é, “eu me recuso a morrer”, a me sacrificar, a renunciar aos meus caprichos (egoísmo) para revitalizar / sanar / recuperar meu relacionamento. Por isso, quando falamos de divórcio, precisamos questionar: Eu fiz tudo o que podia para evitá-lo? Qual foi a minha parcela de responsabilidade neste divórcio? 
Jesus deixa claro que o divórcio não é desejo de Deus: “O que Deus uniu o homem não separe!” (Mc 10,9). Então, aqui também cabem algumas perguntas: Deus esteve junto, no seu relacionamento, desde o início? Quando foi que Ele pôde entrar na sua casa, no seu relacionamento (se é que pôde)? Depois que tudo havia se quebrado? Só em Deus é possível superar as crises de um relacionamento. “Deus é amor” (1Jo 4,8), amor que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera e tudo suporta” (1Cor 13,7). Foi esse o amor que levou você a se unir a alguém? Ou foi somente paixão, tesão, atração física, beleza, emoção, necessidade de sair de casa, de se libertar do “domínio” da mãe e/ou do pai?
Em muitos casamentos, a frustração aparece cedo demais porque idealizamos a outra pessoa e colocamos expectativas irreais no relacionamento. Quanto maior e irreal a expectativa, maior a decepção. Caia na real: nenhum relacionamento sacia por completo a sua sexualidade, nem deleta as suas fantasias, nem elimina a sua solidão, nem preenche aquele lugar em você que só Deus pode ocupar. Case-se; relacione-se; sonhe, mas com os pés no chão.
Recentemente o Papa Francisco nos lembrou de que não existem famílias perfeitas, porque ninguém convive sem se machucar e sem machucar o outro. No entanto, o perdão cura, o amor cura. E, embora a mídia tenha distorcido esse assunto, Francisco recentemente tomou medidas não para “facilitar” a nulidade matrimonial nos casamentos realizados na Igreja, mas para “simplificar” o processo em reconhecer e declarar tal nulidade, a fim de libertar as pessoas que se sentem condenadas a um fardo injusto.
A cena final do Evangelho – Jesus abraçando as crianças e as abençoando (cf. Mc 10,16) – lembra que elas são o “termômetro” da família. As escolas públicas e particulares testemunham como estão as crianças: algumas, agressivas; outras, deprimidas; algumas com a sexualidade aflorada precocemente; outras, desonestas, preguiçosas e egoístas etc. Você ainda consegue abraçar seu filho como “parte” de você, ou vocês já se tornaram “estranhos” um para o outro? Lembre-se: os aplicativos do seu celular precisam de atualizações. Sem elas, deixam de funcionar como devem. Portanto, pergunte-se: Eu tenho atualizado a escolha que fiz da outra pessoa como minha “auxiliar”? Eu tenho atualizado o meu abraço em meu filho? E, por fim, eu tenho atualizado a minha fé?  

Pe. Paulo Cezar Mazzi

terça-feira, 29 de setembro de 2015

VOCÊ PRESTA?


Me desculpe a pergunta acima. O que a despertou em mim foi um vídeo que recebi pelo whatsapp, uma entrevista com o filósofo brasileiro Mário Sérgio Cortella, onde ele analisa a atitude de um atleta espanhol, o qual estava em segundo lugar numa corrida (em 2012). Aquele que estava em primeiro se enganou com relação à linha de chegada e diminuiu a marcha antes da hora. O que estava em segundo percebeu o engano dele e o avisou de que deveria continuar correndo, o que acabou acontecendo e ele, então, ganhou a competição. Quando o repórter questionou o segundo colocado sobre o porquê ele não “aproveitou” a distração do que estava em primeiro para ultrapassá-lo, ele disse que, além de a vitória não ser justa, ele não saberia como “explicar” essa atitude “esperta” à sua mãe.    
Cortella explicou, então, que a figura da mãe representa a vergonha. “Se a pessoa que te trouxe ao mundo ficar com vergonha de ter te parido, é porque você não presta. Não presta pra quê? Pra conviver, pra estar junto, pra ser gestor público ou privado, pra ser professor, pra ser marido ou esposa, pra ser amigo ou amiga”, explicou o filósofo.
Vivemos tempos difíceis, onde muitos não sentem mais vergonha. Não sentem vergonha de mentir, roubar, trapacear; não sentem vergonha de se enriquecerem de maneira ilegal, de corromperem e serem corrompidos; não sentem vergonha em trair, adulterar, ser infiel; não sentem vergonha em serem uma pessoa dentro da igreja e outra fora; não sentem vergonha em não sustentarem hoje o que disseram ontem; não sentem vergonha em serem parasitas, vivendo sempre à custa dos outros etc.   
Talvez você pergunte: mas, o que é “vergonha”? Na entrevista, Cortella lembra uma frase de um outro filósofo, chamado Immanuel Kant: “Tudo o que não puder contar como fez, não faça!”. Esse é um princípio que vale para toda e qualquer pessoa, em toda e qualquer situação, em toda e qualquer área da vida. Se eu sentir vergonha em contar para alguém como eu fiz aquilo, significa que aquilo não é moralmente bom, nem justo.
Estamos ouvindo cada vez mais pessoas dizendo: “Os outros que se danem!”. Cada vez mais pessoas estão deixando de lado a vergonha, a honestidade e a fidelidade porque querem tirar proveito de alguma situação. Cada vez mais nós estamos convivendo com gente que não presta: não presta pra ser mãe, nem pai; não presta pra ser político, nem funcionário público; não presta pra ser médico, nem pedreiro, nem lixeiro; não presta para ser padre, nem pastor, nem cristão...
Mas, não nos enganemos. Ainda existe gente que presta. Ainda existe gente que sente vergonha. Quem sabe você seja uma dessas pessoas. Quem sabe você ainda não tenha perdido de tudo a vergonha. Quem sabe você tenha decidido não jogar a sua honestidade no lixo com a desculpa de que ninguém mais é honesto hoje em dia. Quem sabe você tenha decidido continuar a ser justo, mesmo que ao seu lado ninguém mais se preocupe em sê-lo. Se você ainda é capaz de sentir vergonha significa que você ainda presta. Preserve isso. Preserve sua vergonha. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O ESPÍRITO DA PROFECIA

Missa do 26º. Dom. comum. Palavra de Deus: Números 11,25-29; Tiago 5,1-6; Marcos 9,38-43.45.47-48.

            No último domingo de setembro, mês da Bíblia, celebramos o dia da Bíblia. Para entendermos a importância da Palavra de Deus em nossa vida, poderíamos lembrar aqui quando Deus mandou o profeta Ezequiel anunciar a Palavra aos exilados na Babilônia, os quais diziam: “Os nossos ossos estão secos, a nossa esperança está desfeita. Para nós está tudo acabado” (Ez 37,11). Então Deus disse a Ezequiel: “Profetiza a respeito desses ossos secos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor... Eis que vou fazer com que sejais penetrados pelo espírito e vivereis” (Ez 37,4-5).  
            Este dia da Bíblia precisa despertar em nós a consciência a respeito da força da Palavra de Deus em nossa vida e da importância do Espírito da profecia em nosso tempo. A Palavra é espírito e vida: só ela pode fazer com que sejamos penetrados pelo Espírito de Deus e tenhamos uma postura ativa diante das dificuldades. Além disso, a Palavra deve ser profetizada, isto é, anunciada, proclamada, principalmente diante de situações onde as pessoas dizem: “a nossa esperança está desfeita; para nós está tudo acabado”.     
            A Palavra é profecia: ela nos ajuda a ver além das circunstâncias, a enxergar aquilo que Deus quer para nós e para a humanidade. Ela denuncia a ilusão da riqueza (“Vossa riqueza está apodrecendo... Vosso ouro e vossa prata estão enferrujados...” Tg 5,3), desmascara a injustiça (“O salário... que deixastes de pagar está gritando...” Tg 5,4) e revela a consequência dela para a vida de quem a pratica (“Vós vivestes luxuosamente... cevando os vossos corações para a matança” Tg 5,5).
           Todos nós somos chamados a profetizar/proclamar/pronunciar a Palavra de Deus (“Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta” Nm 11,29), não esquecendo de que o Autor da profecia é o Espírito, pois é Ele quem sonda os corações. Isso significa que, antes de a Palavra passar por nós e chegar às outras pessoas, ela precisa penetrar em nós, dando retidão às intenções do nosso coração (cf. Hb 4,12). Além disso, devemos ter a humildade de reconhecer que o Espírito é livre (“O Espírito sopra onde quer...” Jo 3,8): Ele suscita a Palavra em quem Ele quer, até mesmo em pessoas que não são da nossa Igreja, como acabaram de nos mostrar a primeira leitura e o Evangelho. É o Espírito que se apropria de nós; nós nunca nos apropriamos d’Ele. É o Espírito quem nos diz a quem devemos levar a Palavra; nunca somos nós a dizer ao Espírito quem é que deve receber a Palavra.
            A profecia sempre “escandaliza”, porque desmascara as falsas boas intenções e denuncia as injustiças, até mesmo daqueles que se sentem muito “tranquilos” diante da Palavra. Da mesma forma, a liberdade do Espírito também escandaliza (cf. Nm 11,27-28; Mc 9,38). No entanto, Jesus acabou de deixar claro que o verdadeiro escândalo é a tentativa sempre frequente de “domesticar” o Espírito e de “alisar” as “asperezas” da Palavra, para que ela não venha a provocar alguma crise em nossa consciência. O verdadeiro escândalo é deixar de profetizar para não ser perseguido, para não perder “privilégios”, inclusive dentro das igrejas, ou para não ser privado dos mesmos.
            “Profetiza a respeito desses ossos secos...” (Ez 37,4). Crie o hábito diário de ler a Bíblia. Peça a Deus uma Palavra sobre os ossos secos do seu relacionamento, da sua vida profissional, da sua vida de fé... Profetize o Espírito sobre as famílias com as quais você tem contato, sobre aqueles com os quais você trabalha/estuda/convive diariamente. Profetize o Espírito sobre as estruturas sociais injustas, frutos da corrupção disseminada em nosso país. Permita que o Espírito sonde as profundezas da sua consciência e revele o quê você precisa cortar/modificar nas suas atitudes para não condenar-se ao “inferno”, isto é, a uma vida onde você tenha de admitir que os seus ossos estão secos, que a sua esperança está desfeita, e que, para você, tudo está definitivamente acabado...

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O PRIMEIRO EM QUE?

Missa do 25º. dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 2,12.17-20; Tiago 3,16 – 4,3; Marcos 9,30-37.

Quem de nós não se emocionou com a foto de Aylam Kurdi, um menino sírio de três anos, cujo corpo encontrado na praia se tornou símbolo da crise imigratória no mundo? Quem de nós não sentiu o desejo de fazer com ele o que Jesus acabou de fazer diante dos discípulos: pegar uma criança, colocá-la no meio deles e abraçá-la?  
            Abraçar uma criança pode não ser difícil para nós, mas o problema é o que a criança significava na cultura em que Jesus vivia. Ela não era nada. Era ignorada, desprezada, não levada em conta. Você abraçaria alguém que, aos olhos do mundo atual, nada vale? Até que ponto nós também já não nos acostumamos a ignorar, desprezar e não levar em conta tantas pessoas que cruzam o nosso caminho, se é que as enxergamos?
O que levou Jesus a colocar no meio dos discípulos uma pessoa “insignificante” aos olhos da sociedade do seu tempo e abraçá-la? Tudo começou com uma rejeição: os discípulos não quiseram se tornar conscientes do sofrimento pelo qual Jesus iria ter que passar (v.31). Além de não quererem entender o que Jesus disse e de ficarem com medo de perguntar – justamente por medo de se tornarem conscientes de tal sofrimento –, os discípulos mudaram de assunto e passaram a conversar sobre algo que realmente os preocupava e que importava para eles: ‘Quem de nós é o maior, o mais importante, o primeiro?’
Quem é o ‘maior’ na sua empresa ou na sua sala? Quem é o ‘maior’ na classe do seu filho? Quem é ‘maior’ na cidade? Quem é o ‘maior’ em nossa Paróquia ou Diocese? Bom, mas por que essa preocupação com “quem é o maior”? Deixemos que o apóstolo Tiago responda: “Onde há inveja e rivalidade, aí estão as desordens... De onde vêm as guerras? De onde vêm as brigas entre vós? Não vêm, justamente, das paixões que estão em conflito dentro de vós?” (3,16; 4,1).
A preocupação em querer ser o maior é fruto de algo muito mal resolvido dentro de nós e que se chama ‘sentimento de inferioridade’. Quanto mais eu me sinto inferior – e se eu me sinto inferior é porque estou me comparando com os outros, os quais eu considero ‘superiores’ a mim – mais eu preciso compensar esse sentimento buscando formas de me sentir superior. Dessa forma, nós nos afastamos da nossa criança interior – da simplicidade, da bondade e da espontaneidade – e passamos a viver atormentados por uma única preocupação: eu preciso me destacar; se não for pela inteligência, que seja pela esperteza; se não for pelo corpo, que seja pelo modelo do carro; se não for pelo trabalho, que seja pelo dinheiro etc.
O resultado disso é uma sociedade doente, um ambiente de trabalho doente, uma Igreja doente, porque nós estamos doentes. Existe cura para essa doença chamada ‘mania de grandeza’? Se você quiser se livrar dessa preocupação inútil em querer ser o maior, faça uma visita ao Hospital do Câncer de Barretos, sobretudo na ala infantil. Quando você vir a quantidade de crianças com câncer e os diversos tipos de câncer que existem, se dará conta do quanto é inútil a maioria das suas preocupações e do quanto você tem muito mais do que precisa pra viver e ser feliz.
Nós, padres, também precisamos desse ‘choque terapêutico’, nós que vivemos atormentados em sermos os maiores: Quem atrai mais multidões? Quem tem mais “amigos” ou “seguidores” no Face? Quem tem o Dízimo mais alto da Diocese? Quem faz a melhor homilia? Quem brilha mais aos olhos do bispo? (E a preocupação inconfessável em muitos: Quem será o próximo a “sair” como bispo?) Nós também somos doentes, assim como também somos em boa parte responsáveis pelas “desordens” em nossa Igreja. Nós sabemos muito bem o quanto de inveja e rivalidade existem entre nós.
Ao abraçar uma pessoa “insignificante” para a sociedade de seu tempo, Jesus deixou claro que o mais importante aos olhos de Deus – e que deve ser visto como o mais importante para o nosso cuidado pastoral – é o mais fraco, o mais rejeitado, o mais exposto à violência ou à dor no mundo atual. O abraço de Jesus nesta criança nos lembra uma pergunta: “Você já abraçou seu filho hoje?” Poderíamos desdobrá-la em outras perguntas: Você já abraçou a sua criança interior hoje? Você já abraçou a sua fraqueza, a sua ferida, o seu sentimento de inferioridade hoje? Você já abraçou um ‘estranho’ hoje, aquele para quem ninguém liga?
Dois pequenos lembretes: 1) O descaso com os “pequenos” da sociedade se volta contra nós em forma de violência. 2) Muito bom que seu filho seja o “primeiro” da classe. Mas ele também é o “primeiro” a ser justo, a se preocupar com o próximo, a ser honesto, a não mentir, a cuidar do meio ambiente, a ajudar os que estão à sua volta? 

Pe. Paulo Cezar Mazzi


sexta-feira, 11 de setembro de 2015

POR QUE NÃO COM VOCÊ?

Missa do 24º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 50,5-9a.; Tiago 2,14-18; Marcos 8,27-35.

Para nos convencer a comprar algo, a publicidade busca agradar ao máximo o nosso ego, usando frases do tipo: “Isto foi criado/construído/fabricado/projetado para o seu conforto, para a sua segurança, para o seu bem estar, para facilitar a sua vida...”. Justamente porque a vida moderna se tornou por demais complicada, nós sempre escolhemos aquilo que promete facilitar a nossa vida: o caminho mais curto, o acesso mais rápido, a solução mais imediata. Afinal de contas, nós não temos tempo para esperar, para suportar, para sofrer.
Para tomarmos consciência do quanto isso influencia a nossa fé e a nossa compreensão de Deus e da vida, Jesus nos coloca uma pergunta: “Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,27). Aqui podemos encontrar diversas respostas: ‘Jesus é uma ilusão – promete, mas não realiza’; ‘Jesus é uma fuga da realidade’;  ‘Jesus é um fracassado (morreu numa cruz)’; ‘Jesus é uma caixa de lápis de cor: ele exclui da nossa vida o cinza e o preto’; ‘Jesus é um empreendedor bem sucedido que tem receitas infalíveis de sucesso para a vida profissional/financeira’; ‘Jesus é o remédio para livrar você de todas as dores (físicas, emocionais e espirituais)’ etc.
As “imagens” de Jesus são inúmeras. No entanto, ainda que sejamos influenciados por essas imagens alheias, sempre chega o momento em que a pergunta se dirige exclusivamente para cada um de nós: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mc 8,29). Em outras palavras, Jesus está lhe perguntando: ‘O que você espera de mim quando me procura na oração, na Palavra (Evangelho) ou na Eucaristia?’ ‘Como você entende a minha presença na sua vida como Messias, Libertador e Salvador?’.  
Pedro deu a sua resposta pessoal: “Tu és o Messias” (Mc 8,29), isto é o “Esperado” desde Abraão, o “Libertador” de Israel, o “Ungido” de Deus, o “Salvador” do mundo. Todas essas respostas são perfeitamente corretas a respeito de Jesus. O problema é que Jesus esclarece que tipo de “Messias” ele é: “(...) o Filho do homem devia sofrer muito, ser rejeitado... ser morto e ressuscitar depois de três dias” (Mc 8,31). E o mais interessante é esse detalhe: “Ele dizia isso abertamente” (Mc 8,32a), ou seja: ‘Tome consciência de que a vida comporta essas coisas’; ‘Tome consciência de que você não é o centro do mundo’; ‘Tome consciência de que ninguém pode ter tudo, nem mesmo você’; ‘Tome consciência de que a cruz é maior para quem quer viver de acordo com a vontade de meu Pai’.
Mas, quem de nós quer viver conscientemente a vida? Quem de nós quer colocar as suas fantasias em diálogo com a realidade, com a sua realidade de pessoa humana? É por isso que Pedro reage: “Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo” (Mc 8,32b). Podemos imaginar o que Pedro disse a Jesus: ‘Deve haver um jeito de evitar o sofrimento!’; ou então ‘Você não merece passar por isso!’. Então, o evangelista Marcos sublinha que Jesus, olhando para os discípulos, olhando para mim e para você, que hoje supostamente somos discípulos de Jesus, repreendeu a Pedro: “Vai para longe de mim, satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens” (Mc 8,34).
Da mesma forma como satanás propôs a Jesus evitar o caminho da dor e buscar uma vida de glória na terra (cf. Mt 4,1-11), Pedro pensa a mesma coisa, assim como pensa a maioria de nós hoje em dia. Nós buscamos o bem estar próprio, o prazer, o benefício, o lucro. Enquanto isso, Deus busca o bem do outro, o direito, a justiça, aquilo que contribui para a paz, mesmo que isso custe algum tipo de renúncia e sacrifício da nossa parte. Dizendo de outra maneira, diante do sofrimento nós costumamos reclamar e perguntar: “Por que comigo?” E então, para decepção nossa, Deus responde sem meios termos: “Por que não com você?”
O Evangelho de hoje se conclui com uma palavra de Jesus dirigida a qualquer pessoa que aceite o desafio de se tornar discípula dele: ‘Ser cristão é o caminho mais difícil; não é para quem faz corpo mole, para quem se melindra, para quem quer que o seu ego seja massageado o tempo todo. Ser cristão é isso: renunciar a si mesmo (ao seu egoísmo), tomar a sua cruz e me seguir – viver como eu vivi, se comportar como eu me comportei, lidar com o sofrimento como eu tive que lidar. Quanto mais você quiser evitar dificuldades, lutas e desafios, menos você viverá a sua vida em plenitude. Quanto mais você abraçar a vida com tudo o que ela tem de alegria e tristeza, de conquista e de perda, de vitória e de derrota, mais você terá vivido a sua em plenitude.
Está dado o recado. Que cada um faça a sua escolha e tome a sua decisão. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi