quinta-feira, 27 de outubro de 2016

INCANSÁVEL AMOR QUE PROCURA A QUEM TRANSFORMAR...

Missa do 31º. dom. comum. Sabedoria 11,22 – 12,2; 2Tessalonicenses 1,11 – 2,2; Lucas 19,1-10.
           
Há uma palavra de Jesus no livro do Apocalipse que nos ajuda a tomar consciência do apelo do Evangelho para nós hoje: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo” (Ap 3,20). Jesus está à porta da consciência e do coração de cada ser humano, independente da sua condição social, moral e espiritual. Estando do lado de fora, Ele bate à porta; de inúmeros modos Ele lança seu apelo, faz ressoar a sua voz e convida cada pessoa a abrir a porta. Mas Jesus respeita a nossa liberdade: Ele entra onde o deixamos entrar; Ele só entra se o permitimos. A chave da porta da nossa consciência e do nosso coração fica do lado de dentro: somos nós que decidimos se vamos abrir a porta para Jesus ou não...
Zaqueu decidiu abrir a porta para Jesus. Na verdade, ele jamais imaginaria que Jesus um dia lhe dirigisse esse convite: “Hoje eu devo ficar na tua casa” (Lc 19,5). Zaqueu “era chefe dos cobradores de impostos e muito rico” (Lc 19,2), um homem considerado “sujo”, corrupto, que se enriqueceu às custas do sofrimento de um povo dominado pelos romanos. Por isso, ao entrar na casa de Zaqueu, Jesus ouviu este comentário: “Ele foi hospedar-se na casa de um pecador!” (Lc 19,7). Hoje nós certamente nos escandalizaríamos se Jesus entrasse na casa de uma pessoa que se enriqueceu roubando, mentindo, traficando, ameaçando, causando estragos na sociedade. Mas quando Jesus decide bater à porta de uma pessoa Ele sabe onde está batendo; Ele sabe que lá dentro daquela consciência e daquele coração habita “um filho de Abraão” (Lc 19,9), um ser humano que se perdeu ou que está se perdendo e que precisa ser encontrado.  
“Hoje eu devo ficar na tua casa” (Lc 19,5). ‘Hoje eu quero entrar na intimidade da sua consciência e do seu coração. Hoje eu quero visitar não só a sala da sua casa interior, onde você mostra para os outros apenas aquilo que quer que eles vejam; eu gostaria de ter acesso também ao seu quintal e ao seu quartinho de despejo, onde você guarda tudo aquilo que não quer que os outros vejam, aquilo com o qual você não consegue lidar, solucionar, e joga lá dentro, fazendo de conta que essas coisas não existem ou não fazem parte de você. Hoje eu gostaria de falar com você também a respeito da sua sexualidade, da sua vida profissional, da maneira como você lida com o dinheiro... Eu posso entrar?’
Diante do convite de Jesus, Zaqueu “desceu depressa e recebeu Jesus com alegria” (Lc 19,6). Quando estamos na missa, existem dois momentos fortes em que recebemos Jesus: no momento da proclamação da Palavra – sobretudo do Evangelho – e no momento da Eucaristia. Como nós vivenciamos esses momentos? Nós estamos presentes ou ausentes? Como nós recebemos Jesus: conscientes de que estamos recebendo Aquele que “veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10)? Nós recebemos Jesus com a mesma alegria com que Zaqueu o recebeu?
Qual era o motivo da alegria de Zaqueu? Zaqueu se deu conta de que, antes de ele procurar ver quem era Jesus, o próprio Jesus estava procurando por ele, assim como procura por todo aquele que se perdeu ou que está se perdendo. Zaqueu se deu conta de que ele, desprezado e odiado por muitas pessoas, era alguém a quem Deus amava e com quem se importava. Ao receber Jesus em sua casa, Zaqueu se sentiu amado por Deus, tocado por aquele amor que só pode vir de Deus, aquele “incansável amor que procura a quem transformar e transforma a quem encontrar” (Walmir Alencar, Lugares).
Eu não sei se você atualmente está procurando por Deus, mas tenha a certeza de que Ele procura por você, assim como Ele procura por cada ser humano. Não sei se a porta da sua vida está aberta ou fechada para Ele, mas saiba que Ele está à sua porta e bate: você é quem decide se vai abrir ou não a porta, e permitir que Deus tenha acesso ao interior da sua consciência e do seu coração. Não sei se você às vezes se sente uma pessoa perdida – não só desorientada, mas sem esperança, sem salvação –, mas saiba que Deus enviou Jesus para procurar e salvar o que estava perdido.
 Sentindo-se encontrado pelo amor de Deus na pessoa de Jesus, Zaqueu tomou uma decisão extremamente difícil, uma decisão que mudou para sempre a sua vida: “Senhor, dou a metade dos meus bens aos pobres, e se defraudei alguém, vou devolver quatro vezes mais” (Lc 19,8). Na presença de Jesus, Zaqueu se deu conta da inversão de valores em que vivia, e decidiu fazer duas mudanças: tornar-se solidário com os pobres, dos quais provavelmente se mantinha distante, e rever sua conduta profissional: caso houvesse prejudicado intencionalmente alguém, procuraria esta pessoa para reparar seu erro.   
            Quando você tem um encontro verdadeiro e profundo com Jesus, seja na Palavra, seja na Eucaristia, seja por meio de um acontecimento, você se dá conta de que há algo que precisa mudar na sua vida; seus valores precisam ser reorientados; sua maneira de entender a pobreza, a injustiça e a violência na sociedade ganha uma nova compreensão e você se torna consciente de que há algo que pode concretamente fazer para que o mundo à sua volta comece a mudar. Assim como Zaqueu, você se dá conta de que o sentido da sua vida não consiste em ganhar dinheiro seja do jeito que for, e sobreviver num mundo onde muitos não estão conseguindo sobreviver. O sentido da sua vida está em fazer a sua parte para que aqueles que estão perdidos sejam encontrados, tanto no sentido social quanto no espiritual.     
            “Hoje a salvação entrou nesta casa”. Pensemos nas casas onde moram pessoas desempregadas ou doentes, pessoas deprimidas ou viciadas em droga, dependentes de bebida, crianças abusadas sexualmente, pais sem filhos, filhos sem pais, pessoas solitárias, casas onde talvez não falte dinheiro, mas falta diálogo, amor, perdão, casas habitadas por Zaqueus, por pessoas perdidas dentro de si mesmas... Certamente Jesus está nos dizendo hoje: “Desce depressa... Hoje eu devo ficar também nessas casas... Seja minha presença para essas famílias... É por meio de você que eu hoje continuo a procurar e salvar o que está perdido!”

Para a sua oração pessoal:
(Lugares, Pe. Fábio de Melo, música de Walmir Alencar)

                                                                       Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

LIVRE-SE DO FERMENTO

Missa do 30º. dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 35,15b-17.20-22a; 2Timóteo 4,6-8.16-18; Lucas 18,9-14.
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Uma pessoa não pode ser curada se ela não se reconhece doente. Mas reconhecer-se doente é, às vezes, algo tão doloroso que muitas pessoas preferem passar pela vida colocando um pano colorido sobre a sua ferida, de modo que elas possam desfilar diante dos outros e serem reconhecidas como pessoas fortes (quando, na verdade, são fracas), alegres (quando, na verdade, são tristes), bem resolvidas (quando, na verdade, são mal resolvidas) etc.
Se na semana passada Jesus nos falou da importância de rezar sempre e nunca desistir, hoje ele nos lembra que a oração é o lugar onde nós podemos ser curados, desde que nos reconheçamos doentes; o lugar onde podemos ser limpos, desde que nos reconheçamos sujos; o lugar onde podemos ser salvos, desde que nos reconheçamos necessitados dessa salvação; o lugar onde podemos ser libertos por meio da verdade, desde que reconheçamos as correntes que nos aprisionam nas nossas mentiras; numa palavra, a oração é o lugar onde podemos ser justificados, desde que tenhamos consciência de que necessitamos dessa justificação.
Para a Sagrada Escritura, a “justificação” é um conceito extremamente importante, de modo que uma pessoa “justificada” é – simplificando o conceito de justificação – uma pessoa curada, transformada, liberta, redimida, salva. Mas, como se dá a “justificação”? Ela é operada por Deus e não pelo ser humano. No sentido pessoal, ser uma pessoa justificada é ser uma pessoa reconciliada com a sua verdade, uma pessoa reajustada à sua própria medida, uma pessoa que se libertou da sua máscara, da sua armadura e que aprendeu a viver sua vida a partir daquilo que ela é e não daquilo que os outros (sociedade, Instituição, mídia) exigem dela. Já no sentido social, a pessoa justificada é aquela a quem Deus fez justiça, defendendo a sua causa e restabelecendo o seu direito (cf. Eclo 35,21-22a).
O oposto de “ser justificado” é considerar-se justo. Talvez sintamos uma certa repulsa desse fariseu do Evangelho, cheio de soberba e arrogância, que se julgava tão bom e correto que, para ele, ninguém prestava (“Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens...” v.11). No entanto, vale a pena nós pensarmos nessas questões: Nós também não temos essa mania de achar que estamos certos e que quem tem que mudar são os outros? Quais são as nossas justificativas para não corrigirmos aquilo que não só podemos como também devemos corrigir em nós? Que justificativas damos para colaborar de forma direta ou indireta com a injustiça e a desumanização que marcam o nosso mundo?
            Assim como este fariseu do Evangelho, nossa sociedade é uma sociedade “inchada”, fermentada com o fermento da arrogância e da soberba. Nós, cristãos, deveríamos ser, no seio dessa sociedade, “pães sem fermento”, exatamente como a Eucaristia que comungamos; deveríamos ser pessoas não inchadas, não cheias de si, não presunçosas. No entanto, quanto ego inflado, quanta postura arrogante, quanta soberba entre nós, inclusive dentro das nossas igrejas! Todo esse fermento, além de nos tornar pães de um sabor detestável, especialmente para os simples e os pobres, revela o quanto nos tornamos a anti-imagem de Jesus, “pão sem fermento”, homem desprovido de soberba e de arrogância, homem assentado sobre a sua verdade, modelo de humildade e de simplicidade para todos os homens de todos os tempos.
            Jesus nos propõe uma mudança de postura, diante de Deus e diante da vida: que nós não tenhamos medo de reconhecer quem somos. Enquanto o fariseu ficou preocupado em dizer para Deus quem ele não era (“eu não sou como...”), o outro homem foi direto ao ponto central: “sou pecador”. É preciso dizer de novo: a cura começa com o reconhecimento da doença, assim como a libertação em relação à mentira começa com a tomada de consciência da verdade. Quem deseja experimentar o céu deve descer do salto, ficar descalço, despir-se da sua armadura, retirar a sua máscara, tomar consciência de quem é e aceitar-se como se é. Só quem mantém seus pés no chão (húmus), só quem abraça a sua verdade como pessoa, pode alcançar o céu, sentindo-se na presença de Deus, como afirma a Escritura: “A prece do humilde atravessa as nuvens...” (Eclo 35,21).
            Lembre-se: a sua grandeza como pessoa não está no comparar-se com os outros e julgar-se superior a eles, mas em ter a consciência do seu real tamanho. A sua força não reside na eliminação ou, pior ainda, na tentativa neurótica e desgastante de esconder dos outros as suas fraquezas, mas no reconhecer que você, como qualquer outro ser humano, tem suas próprias fraquezas e precisa se reconciliar com elas, para ser uma pessoa equilibrada. A sua imagem mais importante não é a virtual, aquela que você procura postar frequentemente nas redes sociais, mas a real, aquela que transparece na forma como você trata as pessoas no seu dia a dia. Por fim, em relação à sua vida de oração, lembre-se: Deus espera você no lugar onde você está, e não no lugar onde você acha que Ele gostaria que você estivesse: é ali, nesse lugar, que pode acontecer a sua justificação. Da mesma forma, Deus ama você como você é, e não como você acha que Ele gostaria que você fosse. Portanto, deixe-se abraçar por este amor, para que, depois de cada oração, você possa sair dela justificado.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

APRENDA A GRITAR E A SUSTENTAR SEU GRITO

Missa do 29º. dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo 17,8-13; 2Timóteo 3,14 – 4,2; Lucas 18,1-8.

            Você já sabe disso: quanto mais a corda do arco fica frouxa, menos força ela tem para lançar a flecha para frente. Da mesma forma, quanto mais somos frouxos, melindrosos, manhosos, menos condições temos de atingir algum objetivo que valha a pena na vida. O que esperar, então, desta geração que está vindo, de crianças que, independente da classe social, crescem como árvores que não aceitam ser podadas, não sabem ouvir um “não”, não aceitam ser frustradas; precisam fazer somente o que querem: comer o que querem, vestir o que querem, assistir ao que querem, tratar os outros como querem, e assim por diante?
Esta é a geração “quebra-fácil”: pessoas que, bastou soprar um vento contrário, quebram – desanimam, desistem, recorrem à bebida, às drogas, ao suicídio ou à agressão contra quem está à sua volta; é a geração “não-me-frustre” – pessoas que, bastou a vida não dar o que elas querem, do jeito que elas querem e na hora em que elas querem, ficam deprimidas, mal humoradas, revoltadas, e inclusive perdem a fé, deixam de rezar e de buscar a Deus.
O recado da Palavra de Deus para nós é muito simples: a vida é luta; a oração é luta; a fé é luta. Viver significa lutar; lutar, antes de mais nada, contra a própria preguiça, contra a indolência, contra a eterna mania que muitos de nós temos de fazer “corpo mole” e de achar que basta fazer um pouco de “manha” para que as coisas se tornem mais fáceis, menos duras... Engano nosso! Quem decide fazer “corpo mole” está optando por assumir um papel de fracassado perante si mesmo e perante a vida. Suas manhas não merecem ser levadas a sério; ele colhe exatamente aquilo que planta.    
            O povo de Israel, ao longo da sua história, teve que enfrentar inúmeras lutas. O texto do Êxodo nos coloca diante de uma: contra Amalec. Porém, aqui entra um detalhe: esta luta não se vence só com a força humana; a vitória depende também da oração. Por que especificamente da oração?! Porque “o nosso combate não é contra uma pessoa humana, mas contra o mal, que combate contra nós de várias formas, inclusive por meio de outras pessoas” (citação livre de Ef 6,12). Desse modo, “enquanto Moisés conservava a mão levantada – entenda-se, em oração –, Israel vencia; quando abaixava, vencia Amalec” (Ex 17,11).
            Qual está sendo o seu combate neste momento? Como você entende a importância da oração na sua vida? Jesus acabou de nos dizer que é necessário “rezar sempre e nunca desistir” (Lc 18,1). Você tem convicção disso? Como a luta entre Israel e Amalec foi longa, “as mãos de Moisés tornaram-se pesadas” (Ex 17,12). Isso significa que a oração não transforma, como num passe de mágica, a situação que estamos enfrentando. Ela nos dá, sim, forças para lidarmos com aquela situação. Então, como estão suas mãos e seus joelhos? Eles também tornaram-se “pesados”, no sentido de que você se cansou de rezar? Em relação à sua vida de oração, você também costuma fazer “corpo mole”? Lembre-se de que, para a geração de hoje, tudo pesa! São pessoas que se cansam facilmente, que desistem facilmente. Ter uma vida de oração séria, então?! Esquece!  
            Aarão e Ur compreenderam a importância da oração de Moisés para que Israel pudesse vencer a luta, e encontraram uma forma de sustentar as mãos de Moisés. “Assim, suas mãos não se fatigaram até o pôr do sol, e Josué derrotou Amalec” (Ex 17,12-13). O que sustenta ou pode ajudar a sustentar a sua oração? Além disso, pelo quê você reza? “A oração cristã, antes de ser palavra que implora, é silêncio profundo para ouvir e acolher em si a palavra de Deus” (Missal Dominical, p.1269). Daí o convite do apóstolo Paulo: aprenda a permanecer na Palavra de Deus – ela tem o poder de te salvar. Deixe-se ensinar, corrigir e educar na justiça por esta Palavra. Além disso, insista no anúncio desta Palavra, com suas atitudes e com sua boca, não importa se as pessoas estão a fim ou não estão a fim de escutar: proclame, argumente, repreenda, aconselhe as pessoas a partir da Palavra, de maneira paciente e sábia (cf. 2Tm 3,14 – 4,2). 
            Voltemos ao assunto da “luta”. Para nos falar da necessidade de “rezar sempre e nunca desistir” (Lc 18,1), Jesus mencionou a luta de uma pobre viúva para conseguir que um juiz lhe fizesse justiça. E ela foi atendida não porque o juiz era bondoso, ou justo, mas por causa do seu grito insistente: “Faze-me justiça contra o meu adversário!” (Lc 18,3). “Quem não chora não mama”. Quem não grita perante uma injustiça não verá a situação injusta mudar. Nada muda por si mesmo. As coisas mudam quando decidimos gritar – com a boca e com as atitudes – e esse grito nada mais é do que uma reação positiva, um protesto, uma decisão de enfrentar o problema ao invés de ser engolido por ele ou de fazer de conta que ele não existe.
            Com quem você precisa gritar? Talvez consigo mesmo, com as suas manhas, com a sua mania de se colocar como vítima diante da vida. Talvez com determinadas pessoas, que se acostumaram a fazer-lhe injustiça porque você permitiu. Talvez com Deus ou para Deus... Quando foi a última vez que você gritou para Deus? Jesus nos ensina que a oração muitas vezes é uma verdadeira luta, uma luta entre continuar a crer ou deixar de crer, uma luta entre impor para Deus a sua vontade ou dobrar-se à vontade d’Ele para a sua vida. Nesta luta, que é a oração, você precisa tomar cuidado com o que vai pedir a Deus: não se deve pedir a Ele algo que cabe a você mesmo fazer. Além disso, tome cuidado para não pedir algo para Deus e depois agir no sentido contrário ao que você pediu. As suas atitudes precisam estar em sintonia com o seu grito – não se esqueça disso.
            Eis uma pergunta incômoda, colocada por Jesus no final do Evangelho: “(...) o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” (Lc 18,8). Quando Jesus voltar, encontrará alguém sobre a terra cujo arco esteja tensionado o suficiente para lançar sua flecha para frente? Ele encontrará alguém sobre a terra que não tenha desistido de não somente de gritar, mas também de agir em favor da justiça? Jesus encontrará alguém que não tenha deixado de lutar com Deus na oração, como Jacó quando, agarrado a Deus, disse: “Eu não te deixarei se não me abençoares” (Gn 32,27)? A oração movida pela fé é isso: eu me agarro a Deus e d’Ele não solto, a Ele não dou descanso, até que me faça justiça, até que me dê a bênção que Ele, como Pai, sabe ser necessária para a minha vida.

                                                    Pe. Paulo Cezar Mazzi

sábado, 8 de outubro de 2016

REAPRENDENDO A AGRADECER

Missa do 28º. dom. comum. Palavra de Deus: 2Reis 5,14-17; 2Timóteo 2,8-13; Lucas 17,11-19.

            As leituras que ouvimos nos colocam diante de dois leprosos agradecidos, porque foram curados da sua doença. Naamã, o sírio, quer primeiramente agradecer ao profeta Eliseu, que intermediou a sua cura: “Por favor, aceita um presente de mim, teu servo” (2Rs 5,15). Mas Eliseu recusa o presente, porque quer que Naamã reconheça o verdadeiro autor da sua cura: Deus. Assim, Naamã volta para o seu país decidido a adorar ao único e verdadeiro Deus que o curou (cf. 2Rs 5,17). No segundo caso, dez leprosos são curados por Jesus “enquanto caminhavam” (Lc 17,14). “Um deles, ao perceber que estava curado, voltou glorificando a Deus em alta voz; atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu” (Lc 17,15-16).  
            Diante desses dois homens “agradecidos”, é bem provável que tomemos consciência do quanto somos hoje uma geração pouco sensível à gratidão. Uma vez que a sociedade de consumo nos leva sempre a olhar aquilo que ainda não temos, nós raramente reconhecemos aquilo que temos e, por isso, raramente agradecemos. Além disso, há uma exigência pelo “resultado”. Como nós ainda não atingimos a meta, ainda não alcançamos o resultado que esperávamos, não vemos motivos para agradecer pelo simples fato de estarmos caminhando, pelos passos já dados no caminho em vista da nossa cura, da nossa libertação, da superação de um determinado problema.
            A gratidão nasce do reconhecimento. Você só pode se tornar uma pessoa agradecida na medida em que reconhece o caminho percorrido, o bem recebido, a graça alcançada, mesmo que o caminho ainda não tenha terminado e a luta esteja em andamento. O profeta Samuel teve essa sensibilidade; foi capaz desse reconhecimento quando, depois de uma etapa vencida na batalha, colocou uma pedra no local em que haviam superado aquele desafio, dizendo: “Até aqui o Senhor nos ajudou!” (1Sm 7,12). Gratidão é isso: ‘Eu ainda não venci todas as batalhas, ainda não cheguei ao final do caminho, ainda não fui curado de todas as minhas feridas, mas eu reconheço e agradeço por aquilo que “até aqui” o Senhor fez por mim!’
            Você só se torna uma pessoa agradecida quando reconhece que a vida é muito mais resultado da graça do que do mérito. Enquanto a graça faz você olhar para Deus, o mérito faz você olhar para si. Enquanto a graça faz você tomar consciência de que tudo o que você tem, você recebeu de Deus (cf. 1Cor 4,7), o mérito faz você pensar que tudo o que você tem é mérito seu, conquista sua, e Deus não tem nada a ver com isso. Portanto, você não Lhe deve nenhum agradecimento. Para evitar esse engano, Moisés alertou o povo de Israel, antes entrar na Terra Prometida: “Não aconteça que, havendo comido e estando saciado, (...) o teu coração se torne soberbo e te esqueças do Senhor teu Deus... Não vás dizer ao teu coração: ‘Foi a minha força e o poder das minhas mãos que me proporcionaram essas riquezas’. Lembra-te do Senhor teu Deus, pois é ele quem te concede força para te enriqueceres” (Dt 8,12.14.17-18). Portanto, este é o modo como a pessoa agradecida enxerga a vida: não “Eu superei tal obstáculo”, mas “Deus me fez superá-lo, e por isso sou-Lhe agradecido(a)”; não “Eu me libertei de tal situação”, mas “Deus me libertou, e por isso sou-Lhe agradecido(a)”.
            Essa questão da gratidão, cada vez mais ausente em nós, precisa provocar um outro questionamento: na base da minha fé em Deus está a Sua “utilidade” para mim, ou nela está também a minha gratuidade para com Ele? Perguntando de outra maneira: eu procuro Deus por quem Ele é ou por algo que eu necessito d’Ele? Da mesma forma como todos nós nascemos necessitados de cuidados – e sem tais cuidados não teríamos sobrevivido –, assim também a nossa relação com Deus sempre se inicia com uma necessidade da nossa parte. Mas como é importante passarmos do nível da necessidade, do interesse, para o nível da gratuidade, da adoração! Os dez leprosos necessitavam de cura, e por isso procuraram Jesus, mas depois de receberem tal cura, somente um voltou para agradecer; somente um demonstrou ter uma fé capaz de ir além do interesse pessoal e imediato. Este homem compreendeu que mais importante do que receber uma graça, é estar com Aquele que é fonte de todas as graças; mais importante do que obter uma consolação de Deus, é buscar viver na presença do Deus de toda a consolação.                 
             Que a sua fé possa ir além da “utilidade” de Deus para a sua vida (isto vale também para a maneira como você entende a presença de tantas pessoas na sua vida). Que você se torne capaz de reconhecer e agradecer a Deus (e quem sabe, a tantas pessoas) por tê-lo(a) ajudado “até aqui”, ainda que exista um longo caminho a ser percorrido na direção da meta que você almeja. Que você se torne capaz de agradecer a Deus não somente por tudo o que Ele te entrega, mas também por tudo o que Ele te nega, pelo que você riu até hoje e pelo que já lamentou, compreendendo que “indo e vindo, trevas e luz, tudo é graça, Deus nos conduz!”

Pe. Paulo Cezar Mazzi