quinta-feira, 26 de abril de 2012

SOFRIMENTO INÚTIL

Sobre bebês sem cérebro e adultos sem consciência
       
No dia 12 de abril p.p., o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 8 votos a 2, que o aborto de fetos com anencefalia deixa de ser crime. Na ocasião, dois dos oito juízes que votaram a favor desse tipo de aborto alegaram que o sofrimento da mãe em gerar um filho que, devido ao problema de anencefalia, viverá apenas algumas horas depois de nascido – embora existam casos em que a criança tenha vivido mais de um ano – é um “sofrimento inútil”.
            O que os juízes do Supremo Federal entendem por “sofrimento inútil”? Se uma mãe gera, dá à luz, cria e educa um filho com luta, sacrifício e muito sofrimento, e anos mais tarde esse filho fica doente ou sofre um acidente e vem a morrer, o sofrimento dela foi inútil, porque o filho morreu? O que seria um sofrimento “útil”? Seria somente aquele que nos dá o “resultado” que esperamos?
            Pergunte aos pais de filhos com síndrome de down ou que nasceram com alguma deficiência física se eles consideram seus filhos como uma inutilidade; se eles consideram que estão sofrendo inutilmente por gerarem e criarem filhos com alguma limitação. Pergunte a você mesmo(a) como você se sente diante da expressão “sofrimento inútil”.
            Com toda certeza, existem sofrimentos que são inúteis, principalmente aqueles que são provocados pela nossa teimosia, por alimentarmos vícios e comportamentos autodestrutivos, por fazermos coisas que sabemos que são injustas e estão erradas. Mas chamar de “sofrimento inútil” o esforço em gerar uma vida que depois, cedo ou tarde, irá morrer – com qual vida não acontece isso? – é assinar um atestado de ignorância sobre o significado do que seja “sofrimento”, bem como sobre o significado do que seja “inútil”.
            O que restou de toda a discussão entre os juízes do STF a respeito desse assunto foi a constatação de que “caberá à mãe decidir” se vai abortar ou se vai levar até o fim a gravidez do filho anencéfalo. Caberá à consciência da mãe a decisão sobre o assunto. Como as novas gerações estão se mostrando cada vez mais despreparadas para lidar com o sofrimento, serão pouquíssimos os casos em que não ocorrerá este tipo de aborto.
            Para toda pessoa que se considera cristã, vale o alerta da Sagrada Escritura: “Não se conformem com este mundo, mas transformem-se, renovando a mente de vocês, a fim de poderem discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito” (Rm 12,2). Quando você julgar que determinado sofrimento parece inútil na sua vida, pergunte a Deus, na sua consciência, se Ele também considera tal sofrimento “inútil”.
            Se há um problema sério a ser enfrentado em nossa sociedade não são os bebês sendo gerados sem cérebro, mas os adultos fazendo escolhas e tomando decisões sem consciência, sem se perguntarem com sinceridade qual é a vontade de Deus a respeito da decisão que precisam tomar. 
                                                                                                                              
                                                                                                                           Pe. Paulo Cezar Mazzi

A PEDRA E O PASTOR

Missa do 4º. dom. da páscoa. Palavra de Deus: Atos do Apóstolos 4,8-12; 1João 3,1-2; João 10,11-18.

            Um dia, uma jovem disse à sua mãe, que insistia com ela para ir à Igreja: “Religião é coisa para gente fraca”. Essas palavras revelam a atitude de muitas pessoas hoje, que se sentem autônomas, se julgam fortes, inteligentes e capazes de lidar sozinhas com a vida. No entanto, quando as pessoas retiram Deus ou a religião de sua vida, acabam colocando outra coisa no lugar, porque a verdade é que todo ser humano se sente frágil e necessita apoiar-se em alguém ou em alguma coisa maior do que ele. Em outras palavras, todo ser humano necessita ser salvo.
            Ao se referir a Jesus Cristo como pedra, o apóstolo Pedro está nos dizendo que Jesus é o fundamento da nossa vida. Cedo ou tarde, consciente ou inconscientemente, nós sempre procuramos por um fundamento, por algo firme sobre o qual construir a nossa vida. Mas Pedro diz que Jesus é a pedra angular, a pedra central do ângulo, pedra que dá sustentação à construção. Se ela for retirada, a construção vem abaixo.
            Se você experimenta uma profunda instabilidade, sem saber onde se apoiar, ou se sente soterrado(a), porque colocou como pedra angular da construção de sua vida algo que não é sólido, que não vem de Deus, se você buscou no ser humano o seu refúgio, um refúgio que só podia ser encontrado em Deus (cf. Sl 118,8), é hora de rever o quê ou quem você está colocando como o fundamento e a sustentação da sua vida.
            Justamente porque todo ser humano precisa de apoio, de refúgio, de sentir-se salvo, o apóstolo Pedro afirma que “debaixo do céu não há outro nome dado aos homens pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12), a não ser o nome de Jesus Cristo, crucificado, morto e ressuscitado. Mas, invocar o nome de Jesus não é algo mágico. Invocar o nome de Jesus significa colocá-lo como verdadeiro fundamento e sustentação da nossa existência.
            No mundo em que vivemos, existem inúmeras pedras, inúmeras propostas de fundamento, de sustentação e de salvação, inúmeros pastores, como também inúmeros mercenários e inúmeros lobos, tudo isso como resultado da desorientação do rebanho, que é a humanidade. No meio dessa profunda desorientação, onde cada um segue o caminho que acha melhor e se confia às mãos daquilo ou daquele que acredita ser seu pastor, Jesus se revela como o único bom pastor, como aquele que dá a vida por suas ovelhas (cf. Jo 10,11).
            Além de ser o único capaz de dar a vida por suas ovelhas, Jesus se define como aquele que conhece as suas ovelhas (cf. Jo 10,14). Ele conhece a cada um de nós. Conhece a nossa desorientação, nosso desencanto com os pastores humanos; conhece as vezes em que nos ferimos por nos termos confiado às mãos de mercenários que, na verdade, sempre estiveram mais preocupados consigo mesmos do que conosco; conhece as vezes em que nos expusemos desnecessariamente aos lobos porque não quisemos ouvir e obedecer à sua voz de bom pastor.
            Jesus, nosso bom pastor, tem no seu coração um desejo: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; elas escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16). Ao reafirmarmos a nossa convicção de que Jesus Cristo é o fundamento e a sustentação da nossa vida, e ao nos comprometer em escutar a sua voz e nos manter unidos ao seu rebanho, nos perguntemos também o que podemos fazer para que a voz do nosso bom pastor chegue aos ouvidos e ao coração de outras tantas ovelhas pelas quais ele também deu a sua vida.        

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A Cruz e a Ressurreição não se excluem em nossa vida

Missa do 3º. dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 3,13-15.17-19; 1João 2,1-5a; Lucas 24,35-48.

            No domingo de Páscoa, Jesus Ressuscitado encontrou seus discípulos com as portas fechadas, por causa do medo. Oito dias depois, visitou novamente seus discípulos, falando particularmente com Tomé, o discípulo que se negava a crer na ressurreição. Agora, pela terceira vez, Jesus Ressuscitado se coloca no meio de seus discípulos, os quais estão assustados e cheios de medo, e lhes pergunta: “Por que estais preocupados e por que tendes dúvidas no coração?” (Lc 24,38).
Como Jesus Ressuscitado encontra você, neste terceiro domingo da Páscoa: assustado e cheio de medo, preocupado e com dúvidas no coração, ou confiante, cheio de coragem e fortalecido pela fé? Não há como negar que muitas pessoas hoje estão vivendo uma experiência semelhante à de alguns cristãos no final do primeiro século: vacilando na sua fé, o entusiasmo inicial diminuiu, muitos estão cansados da caminhada e perdendo de vista a mensagem vitoriosa da Páscoa.
Diante das preocupações e das dúvidas que estavam consumindo o coração dos discípulos, Jesus lhes disse: “Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede!” (Lc 24,39). O que havia nas mãos e nos pés de Jesus? As marcas da sua cruz. A ressurreição havia glorificado o corpo de Jesus e os discípulos tinham dificuldade em reconhecê-lo. Ao verem as mãos e os pés de Jesus, as preocupações e as dúvidas no coração dos discípulos deram lugar à alegria e à surpresa.
O que ainda enche o nosso coração de preocupações e de dúvidas são as marcas que a nossa própria experiência de cruz tem deixado em nós. Ainda achamos que em nossa vida só pode haver uma coisa: ou cruz, ou ressurreição. Se há cruz (se sofremos), não há ressurreição (ela é uma fábula); se há ressurreição (se Cristo de fato ressuscitou), não pode haver cruz (este sofrimento não faz sentido em minha vida).
Ao fazer questão de mostrar as suas mãos e os seus pés, Jesus Ressuscitado quer nos fazer entender que tudo aquilo que a morte atingiu em nós será tocado e transformado pela ressurreição, inclusive o nosso corpo. Por isso, Jesus faz questão de ser tocado pelos discípulos e de comer um pedaço de peixe assado na presença deles, para que eles e nós entendamos que ressuscitar não é desencarnar, e sim ter a nossa carne glorificada. Se em sua carne você carrega hoje algumas marcas de morte, é justamente a partir dessas marcas que a ressurreição de Cristo deverá se manifestar em você.
O evangelho nos diz que “Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras (que afirmam que) ‘o Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia, e no seu nome serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações’...” (Lc 24,45-47). Muitas preocupações e dúvidas só vão ser retiradas do nosso coração quando permitirmos que Jesus abra a nossa inteligência para entendermos as Escrituras, que não apenas dão testemunho da Sua ressurreição, mas que também afirmam que nele nós recebemos o perdão dos nossos pecados.
Quando temos pouco interesse em conhecer as Escrituras, ou quando as estudamos sem o desejo de uma conversão sincera ao Senhor, um véu se mantém sobre os nossos olhos (cf. 2Cor 3,14-16), e fazemos como os judeus, citados em At 13,14-17: agimos por ignorância, fazemos escolhas erradas e invertemos os valores, rejeitando aquilo que é santo e justo, e assumindo um padrão de vida que alimenta a morte em nós e em nossa sociedade.
Que o Senhor Jesus Ressuscitado abra a nossa inteligência para entendermos as Escrituras, que hoje sublinham a verdade de que somente nele nós podemos nos voltar para Deus e senti-Lo próximo de nós, e somente nele, em Jesus Cristo, morto e ressuscitado, recebemos o perdão de todos os nossos pecados. Que esta verdade seja experimentada em nós e testemunhada por nós às outras pessoas. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

segunda-feira, 16 de abril de 2012

O SILÊNCIO COMO DESAPEGO

            O silêncio como agir ativo não consiste em que deixemos de falar e de pensar, mas sim em que nos desapeguemos dos nossos pensamentos e do nosso falar. Às vezes, mesmo alguém que exteriormente mantém o silêncio recusa este desapego. Ele se retrai ao seu silêncio para evitar a luta da vida, para poder apegar-se à imagem ideal  que ele faz de si próprio. São pessoas que desejariam continuar sentindo-se seguras no silêncio, recusam-se a deixar que as imagens de seus sonhos sejam destruídas na luta pela vida.
            Quem fala, sempre se expõe aos outros, oferece um flanco de ataque, sua palavras podem ser criticadas, ridicularizadas. Quando eu percebo que o que eu falei não tem sentido, e quando agradeço a Deus por ter cometido uma gafe em meus discursos, então na verdade eu me desapego de mim: “Foi bom para mim ser humilhado, para aprender tuas prescrições” (Sl 119,71).
           
O método do desapego
            O método consiste em não considerar as ideias e sentimentos como sendo tão importantes, e simplesmente deixá-los passar. Eu olho a ideia ou o sentimento e a deixo ir, não lhe dou muita importância. A ideia está aí, mas eu não irei ocupar-me com ela. Preciso primeiro aceitá-la: este é um problema meu, estas ideias são uma parte de mim, elas mostram quem eu sou. E posso viver com elas, mesmo tendo que arrastá-las por toda a vida. Não preciso mostrar a Deus que consegui derrotá-las ou que me libertei delas. Deus me aceita como todos os meus pensamentos...   
            Trata-se de deixar passar as tensões interiores. Ideias e emoções podem provocar tensões dentro de nós. Elas nos mantém ocupados. Ficamos fixados, dominados sempre pelas mesmas ideias e sentimentos. Enquanto eles nos mantém presos nesta tensão, nós somos incapazes de conviver produtivamente com eles.
            Uma maneira de deixar passar essas tensões é por meio da respiração. Expirando deixamos passar a contração física e interior. Uma outra forma é perguntar-se pelas causas da tensão, verificando onde se encontram meus desejos e exigências exageradas. Quando percebemos que protegemos nossos ideais com uma certa ansiedade, e que angustiadamente nos apegamos a determinadas formas exteriores, isto sempre é um sinal de que nos encontramos sob uma tensão de que precisamos nos libertar.
Uma ajuda para nos libertarmos destas tensões é a confiança de que estou protegido em Deus, de que posso me deixar cair em seus braços, porque os braços que esperam por mim não são braços que castigam, mas braços que amam. Deixo irem embora as seguranças com que pretendia garantir-me até mesmo contra Deus, e deixo que Deus se aproxime de mim. Eu renuncio a todas as conquistas espirituais, e abandono-me a Deus assim como eu sou, com todos os pensamentos que me angustiam. Agora ele pode assumir a direção da minha vida, pode agir para o meu bem, e também mostrar-me o seu amor por mim.
Aquele que quiser silenciar terá que despegar-se de si mesmo. E há de experimentar que muita coisa em nós se rebela contra isto, porque por natureza queremos fixar-nos em nós, e preferimos usar Deus como instrumento de nossa perfeição em lugar de entregar-nos a ele com nossas imperfeições. No desapego trata-se de abrir-nos para Deus. Tenho que desapegar-me, para que Deus possa fazer alguma coisa comigo. Tenho que deixar de agarrar-me a mim mesmo, tenho que abrir as minhas mãos, que desistir de me auto-afirmar, tenho que entregar-me para que Deus tenha acesso a mim e que desta maneira possa atuar sobre mim.

O silêncio como morte
No silêncio o monge exercita-se no morrer o homem velho. Se você for ao cemitério e insultar ou elogiar os mortos, eles nada responderão a você. Da mesma forma, você deve se tornar um cadáver, alguém que despreza tanto a injustiça quanto o louvor dos homens, da mesma forma como os mortos... O monge deve tornar-se independente do reconhecimento dos homens. Nem louvor nem injúria devem significar coisa alguma para ele, mas unicamente Deus.
No silêncio o monge torna-se morto para o mundo. O mundo deixa de ser importante para ele. Quando consegue chegar a esta morte interior, ele consegue viver no mundo sem ser dominado por ele. Vive no mundo, mas não do mundo. Sua razão de viver é Deus. Devemos morrer interiormente a fim de deixarmos espaço em nós para a verdadeira vida. Se imaginarmos que dentro de três dias estaremos enterrados, que haveríamos de deixar para trás?

O silêncio como peregrinação
Falando eu interfiro no acontecer do mundo, torno-me ativo, comento, critico, ou encaminho o mundo em determinada direção através do que ordeno e do que mando. No silêncio o monge deixa o mundo passar. Renuncia a mudá-lo, a corrigi-lo. Pois a figura deste mundo passa. 
O peregrino não pode considerar-se casa. Ele tem que continuar peregrinando. Assim também o silêncio é renunciar à casa como lugar de repouso, renunciar à segurança da palavra. A palavra é uma forma de comunicação com o mundo. O monge renuncia à palavra, renuncia a encontrar segurança no mundo. Ele percorre uma estrada interior. Torna-se um estranho no mundo a fim de peregrinar em direção a Deus.
Nós somos cidadãos do céu. Devemos peregrinar pelo mundo sem nos fixarmos, porque temos a nossa pátria no céu. Aquele que silencia permanece um estranho. Ele não se familiariza com as pessoas que o envolvem, ou com o mundo. De alguma maneira nós temos que superar o mundo, transcendê-lo, emigrar dele e caminhando deixar-nos dirigir e chamar por outra voz, temos que estar mortos para o mundo a fim de vivermos de Deus e para Deus.

O silêncio como liberdade e serenidade
O silêncio torna-nos interiormente livres. Deixamos de estar presos às coisas e apegamo-nos exclusivamente a Deus. Se nos ocupássemos com as coisas e com as pessoas a partir desta liberdade, nós não haveríamos de viver constantemente sob tensão. Poderíamos trabalhar com mais objetividade, porque não haveríamos constantemente de misturar nossas próprias necessidades e desejos com as coisas, e iríamos trabalhar mais, porque não haveríamos de investir uma energia desnecessária em coisas secundárias, como reconhecimento e louvor.

Do livro de Anselm Grün, As exigências do silêncio.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

A FERIDA ABERTA DA NOSSA FALTA DE FÉ


A FERIDA ABERTA DA NOSSA FALTA DE FÉ

Missa do 2º. Dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 4,32-35; 1João 5,1-6; João 20,19-31. 

            O evangelho deste segundo domingo da Páscoa nos fala de portas fechadas e de feridas abertas. As nossas portas estão fechadas porque as nossas feridas estão abertas. Nós nos fechamos para evitar que alguma coisa venha (ou continue a) nos ferir. Contudo, o nosso fechamento abre novas feridas, seja nos nossos relacionamentos, seja em nossa sociedade, seja em nossas comunidades de fé.
            De maneira muito diferente viviam os primeiros cristãos: eram “um só coração e uma só alma... Tudo entre eles era posto em comum... Entre eles ninguém passava necessidade... Era distribuído conforme a necessidade de cada um” (At 4,32-35). O que impedia os primeiros cristãos de se fecharem, apesar das feridas que sofriam no mundo em que viviam, era a fé na ressurreição, a fé na verdadeira vida.
            O modo de vida dos primeiros cristãos nos ajuda a compreender que o verdadeiro motivo que nos faz manter as nossas portas fechadas não são as feridas que o mundo ou as pessoas nos causam, mas a nossa falta de fé. Na verdade, a ferida mais profunda e que está mais aberta em nós é a falta de fé. Como Tomé, nós só conseguimos crer naquilo que podemos ver e tocar. Porém, Jesus nos visita neste oitavo dia após a Páscoa, como visitou Tomé e os demais discípulos, para dizer a cada um de nós: “Não sejas incrédulo, mas fiel” (Jo 20,27).
           Quando você, por causa das feridas que já sofreu, fecha as portas do seu coração para a fé, se torna uma pessoa vencida. Se a 1ª. Carta de São João diz: “Esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé” (1Jo 5,4), deixar a sua fé morrer significa permitir que você se transforme numa pessoa vencida, derrotada. Essa é a ironia do nosso mundo moderno: uma época em que mais e mais pessoas decidem viver sem um vínculo sério e profundo com Deus, por meio de uma comunidade de fé, e essas mesmas pessoas, ao se depararem com problemas, dores e sofrimentos, recorrem a remédios, a drogas e ao desespero, menos à fé.
            Mas o que significa fé? Fé não significa crer numa doutrina, mas numa pessoa: “Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?” (1Jo 5,5). E o próprio final do evangelho de hoje nos declara porque foi escrito: “(...) para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31). Uma forma de você alimentar a sua fé, além da sua oração diária, é o contato, também diário, com a Sagrada Escritura, um livro escrito na fé e para a fé daquele que lê. A Escritura nos conduz a Cristo, o Filho de Deus. Somente nele temos a vida, não a vida biológica, mas a verdadeira vida.  
           Neste segundo domingo da Páscoa, apresentamos a Jesus Ressuscitado todas as nossas portas fechadas, fechadas por causa do medo, por causa da nossa falta de fé, não simplesmente por causa das feridas que já sofremos ou que estamos sofrendo. Jesus Ressuscitado pode atravessar essas portas fechadas, chegar até nós e curar a ferida da nossa falta de fé.
           Trazemos para a nossa oração todas as pessoas que se fecharam no individualismo, atitude que tem aberto mais e mais feridas em nossa sociedade, multiplicando os necessitados no meio de nós – atitude oposta à dos primeiros cristãos. Pedimos ainda a Jesus Ressuscitado o dom da sua paz sobre a vida de cada pessoa. A nossa falta de paz também é fruto da nossa falta de fé.
           Num mundo como o nosso, onde se respira medo, insegurança, vazio, falta de sentido, ameaças e violência, precisamos diariamente silenciar, nos colocar na presença do Ressuscitado, e respirar o sopro do seu Espírito sobre nós, Espírito que nos transforma em pessoas portadoras de paz e de fé, comunicando aos outros a verdadeira vida que nos vem pela ressurreição de Jesus Cristo, o Filho de Deus.     

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

sábado, 7 de abril de 2012

Páscoa: sair do próprio túmulo
                                                
            Ressuscitar é romper o próprio túmulo. Aquele que “passou pela vida fazendo o bem” não podia permanecer prisioneiro da morte... Cobrimo-nos de pedras e rodeamos nosso coração de muros. Jesus afastou as pedras e derrubou o muro... Para os que creem em Jesus, a morte não é mais o fim definitivo e terrível, a ausência completa, a saudade sem remédio, a ruptura sem esperança, o desespero total. Em Jesus, a vida não é tirada, mas transformada.
            Mesmo aqui e agora há pessoas encerradas nos próprios túmulos. Pessoas fechadas em si mesmas, em seus interesses, construindo à sua volta um universo de egoísmo e exclusão... Há tanta gente com o coração empoeirado de tédio, de vazio, de falta de sentido. Soterrado ou empoeirado, sufocado ou sem brilho, nosso coração se faz menor, no mediocrizamos e chegamos a achar que o túmulo é normal, que a vida é assim mesmo e não há saída ou remédio, a não ser se conformar.
            Construir Páscoa é não se conformar e ressuscitar todos os dias. Ao invés de fechar-se, Páscoa é comunicar-se. Em tudo há um sentido, um brilho e uma semente de eternidade. Viver a ressurreição de Jesus hoje é deixar-se expandir e transbordar tudo o que é vida dentro de nós.
            É preciso sair do próprio túmulo. Ir removendo uma a uma as pedras que foram soterrando a vida que vive em nós. Deixar que a luz ilumine e dê brilho aos cantinhos mais obscuros e empoeirados da nossa história pessoal e social. Superar nossos medos, reconstruir nossos laços com a esperança.
            Minha Páscoa, nossa Páscoa não pode ser reduzida a um ovo de chocolate (ainda por cima, oco!). Ela se realiza quando o túmulo fica no passado, esquecido e abandonado. Quando o túmulo fica em minha história como o casulo fica na história de uma borboleta, uma fase, um tempo duro e difícil que passou, que foi vencido e superado.
Eduardo Machado, Jornal de Opinião, 02 a 08/04/2012, p.3.

EU TE FAREI PASSAR

EU TE FAREI PASSAR
Pe. Paulo Cezar Mazzi

            Páscoa significa passagem. Deus se revelou no Antigo Testamento como Aquele que fez Israel sair da escravidão do Egito, Aquele que fez Israel passar pelo Mar Vermelho a pé enxuto, Aquele que fez Israel entrar na Terra Prometida. Se Israel passou de uma situação de morte para uma situação de vida, não foi por ele mesmo, por sua própria força, nem pelo seu merecimento, mas por pura graça de Deus. Foi Deus quem fez Israel passar da morte para a vida.
             A Páscoa que nós celebramos não é mais a do Antigo Testamento, a da libertação de Israel do Egito, mas a Páscoa da nossa libertação em Cristo. Foi o próprio Jesus quem disse: “Em verdade, em verdade, vos digo: quem escuta a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não vem a julgamento, mas passou da morte para a vida” (Jo 5,24). Justamente porque todos os dias nos deparamos com situações de morte, precisamos nos alimentar do Evangelho de Jesus, cuja Palavra nos faz passar da morte para a vida, aquela Palavra que nos convida a sair dos nossos túmulos, como Jesus fez com Lázaro: “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11,43).
            Acolhemos com alegria este Tempo Pascal, que agora viveremos pelos próximos cinquenta dias, tendo no coração essa promessa divina: “Eu te farei passar”. Se temos que atravessar momentos sombrios, podemos dizer com o salmista: “Ainda que eu passe por um vale tenebroso nenhum mal temerei, pois estás (Senhor) junto a mim” (Sl 23,4). Se temos que enfrentar situações onde nos sentimos ameaçados, lembramos a promessa de Deus: “Quando passares pela água, estarei contigo; quando passares por rios, eles não te submergirão. Quando atravessares o fogo, ele não te queimará, a chama não te atingirá... Eu sou o Senhor, o teu Deus... o teu Salvador” (Is 43,2-3).
            O Tempo Pascal nos desafia também a fazer uma difícil passagem: a passagem do rancor, da raiva, da mágoa, do ódio, para o amor: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Aquele que não ama permanece na morte” (1Jo 3,14). Todas as vezes que, apesar das dificuldades próprias da convivência humana, você escolhe alimentar em si e nas suas atitudes o amor que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13,7), você experimenta a ressurreição, você faz a Páscoa, você passa da morte para a vida.
            Diante da certeza de que Deus, com a força da Sua graça, sempre nos faz passar da escravidão para a liberdade, do pecado para a graça, da angústia para a alegria, da morte para a vida, não podemos nos esquecer de que “é preciso que passemos por muitas tribulações para entrar no Reino de Deus” (At 14,22).
As tribulações que ainda se fazem presentes em nossa vida e na vida do mundo não podem ser interpretadas como prova de que Cristo não ressuscitou, mas como um lembrete de que a passagem diária da morte para a vida nunca será feita sem dor, sem luta, sem a necessidade de perseverança da nossa parte. Se você passa por momentos de tribulação, segure firme nas mãos do Pai, que fez seu Filho passar da morte para a vida, e confie: Ele te fará passar!

VIDA ESCONDIDA

VIDA ESCONDIDA

Missa do domingo de Páscoa – Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 10,34ª.37-43; Colossenses 3,1-4; João 20,1-9.

“Ele viu e acreditou” (Jo 20,8). As coisas que você vê à sua volta fazem você acreditar na ressurreição? Quando você vê inúmeras pessoas doentes, a escalada sempre maior da violência, a maldade das pessoas, o alastramento das drogas em todos os setores da sociedade, a continuidade da corrupção e da impunidade no Brasil, a desorientação de tantos adolescentes e jovens, o desmantelamento das famílias, a degradação do meio ambiente, o descaso com a vida etc, você ainda consegue acreditar na vitória da vida sobre a morte?
“Ele viu e acreditou” (Jo 20,8). Mas, com certeza você também vê doentes que não se entregam à própria dor; pessoas que, à semelhança de Jesus, escolhem passar pelo mundo fazendo o bem, não se importando se são reconhecidas ou não; pessoas que a cada dia se levantam e dizem: “Por hoje não” – por hoje eu não vou beber, não vou usar drogas; empresários, políticos, pais e mães de família que trabalham honestamente; jovens que estudam e trabalham, construindo seu próprio futuro; famílias que decidem construir suas casas diariamente sobre a rocha do evangelho e não sobre a areia do mundo; pessoas que dedicam parte de seu tempo livre para defender o meio ambiente; pessoas, enfim, que acreditam na força e no valor da vida. 
            “Ele viu e acreditou” (Jo 20,8). Olhe para a sua própria vida. Que sinais estão presentes nela e sustentam a sua fé na vitória de Cristo sobre a morte? Talvez, como Maria Madalena, Pedro e o outro discípulo, você ainda esteja diante de sinais que misturam morte e vida: túmulo vazio, faixas de linho no chão e um pano enrolado à parte, sinais que você interpreta erroneamente, como Maria Madalena: “Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram” (Jo 20,2). Talvez alguma coisa muito preciosa tenha sido tirada de você, e por isso você não consegue crer na ressurreição, crer que a vida é mais forte do que a morte.
            Mas o que significa crer na ressurreição? O evangelho do domingo de Páscoa poderia nos colocar diretamente diante de Jesus Ressuscitado (o que será feito nos dois próximos domingos), mas ele nos coloca, primeiro, diante de um túmulo vazio, túmulo que nos lembra que crer na ressurreição não significa crer que não vamos morrer, ou que vamos ser poupados de sofrimento, mas significa crer que vamos vencer a morte e o sofrimento. O nosso sofrer e a nossa morte não são a negação da ressurreição, mas o lugar existencial onde experimentaremos a nossa própria ressurreição (cf. 2Cor 5,2-4).
            Portanto, o dia de Páscoa nos convida a retirar a pedra do túmulo do nosso desânimo, do nosso abatimento, túmulo que representa tantas atitudes nossas por meio das quais nos enterramos vivos, morremos antes da hora, abandonamos os nossos valores, pensando que ficar dentro de um túmulo seja melhor do que sair e enfrentar a vida e correr o risco de sermos machucados.
            O Pai, que ressuscitou seu Filho e lhe concedeu manifestar-se aos discípulos, que comeram e beberam com Jesus após a ressurreição (cf. At 10,40-41), nos convida a nos esforçar por “alcançar as coisas do alto” (Cl 3,1), onde está seu Filho. Isso significa que “as coisas terrestres” são incapazes de responder à nossa sede de sentido e de vida. Justamente por isso, nossa consciência precisa estar voltada para onde se encontra a nossa verdadeira vida.
            Mesmo crendo na ressurreição, a nossa vida continuará a ser uma “vida escondida com Cristo, em Deus” (Cl 3,3). “Vida escondida” significa que, aos olhos do mundo, nós, que cremos na ressurreição, continuamos a ser simples mortais. Mas a nossa fé nos diz que quando Cristo, nossa vida, aparecer em seu triunfo, seremos revestidos de glória, seremos com Ele ressuscitados (cf. Cl 3,4). Portanto, neste dia de Páscoa, cantamos com alegria: “E quando amanhecer o dia eterno, a plena visão, ressurgiremos por crer nesta vida escondida no Pão!”
            Feliz Páscoa!
                                   Pe. Paulo Cezar Mazzi

SOMOS PESSOAS PASCAIS


SOMOS PESSOAS PASCAIS

Missa da Ceia do Senhor (Lava-pés)
Palavra de Deus: Êxodo 12,1-8.11-14; 1Coríntios 11,23-26; João 13,1-15.

            Imagine se você soubesse o dia da sua páscoa, o dia de você passar deste mundo para o Pai. Talvez, como Jesus, você gostaria de fazer uma última festa, um último almoço, um último jantar, uma última ceia, para se despedir das pessoas. Quem você convidaria para a sua última ceia? Que tipo de comida e de bebida você serviria? O que você diria para as pessoas? Quais seriam as suas últimas palavras, ao se despedir de pessoas que você só encontraria mais tarde, na eternidade? Qual seria seu último gesto, com o qual você gostaria de ser lembrado?
            Se alguém lhe perguntar: “Por que você está aqui hoje?”, nesta Ceia do Senhor, você pode responder como São Paulo: Porque “Jesus me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). Você está aqui hoje porque você foi convidado para a Ceia do Senhor. E nesta Ceia, Jesus quer reavivar em você a certeza de que você está de passagem neste mundo. Chegará o momento em que você deverá fazer a sua Páscoa, em que você deverá passar deste mundo para o Pai.
Enquanto o Evangelho nos coloca diante do início da Páscoa de Jesus, a leitura do Êxodo nos relata a Páscoa do povo de Israel. Assim como Israel, nós somos um povo pascal porque o nosso Deus é Aquele que nos faz passar da escravidão para a liberdade. Talvez, como alguns judeus disseram a Jesus, nós poderíamos também dizer: “Nós nunca fomos escravos de ninguém!” (Jo 8,33). E o próprio Jesus repetiria o que disse àqueles judeus: “Quem comete o pecado, é escravo... Se o Filho vos libertar, sereis, realmente, livres” (Jo 8,34.36). Portanto, Jesus nos convida a fazer a passagem de uma vida de pecado para uma vida de santidade, ou seja, a não usar a nossa liberdade como desculpa para nos deixarmos prender por tantas coisas que nos escravizam.
Ao narrar a última Ceia de Jesus, o evangelista João resumiu toda a vida de Jesus numa única frase: “Ele amou até o fim”(Jo 13,1). Que frase poderia resumir a sua vida? Você vai amar até o fim, acreditar até o fim, esperar até o fim, fazer o bem até o fim, lutar pela justiça até o fim, ou quando chegar o momento da sua Páscoa, da sua passagem deste mundo para o Pai, você já terá deixado de amar, de acreditar, de esperar, de fazer o bem, de lutar pela justiça?
“Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,15). Enquanto o evangelista João resumiu a vida de Jesus nas palavras “amou até o fim” (Jo 13,1), o apóstolo Paulo descreveu a pessoa de Jesus como “Corpo doado e Sangue derramado” (cf. 1Cor 11,24-25). Como trigo que se inclina para ser colhido e feito pão, como o cacho de uva se oferece para ser colhido e feito vinho, assim Jesus quis deixar, na última Ceia, a lembrança do que foi a sua passagem pela terra: uma vida doada aos outros, uma vida que se inclinou sobre as feridas e sobre os sofrimentos dos outros. Assim devemos fazer, se queremos ser reconhecidos como discípulos de Jesus Cristo. 
 Nesta noite rezamos por todas as pessoas que precisam de Páscoa, que precisam que o Senhor passe por suas vidas, por suas casas, derramando novamente o sangue precioso de seu Filho, o Cordeiro de Deus, para que o mal não prevaleça sobre essas famílias. Nesta noite, comendo do mesmo pão e bebendo do mesmo cálice, anunciamos ao mundo a morte redentora de Jesus em favor de todos os homens, e proclamamos que Ele virá um dia para concluir a passagem de cada ser humano deste mundo para o Pai. Nesta noite, enfim, nos comprometemos a passar, passar pelas casas, pelas famílias, pela vida de tantas pessoas que precisam redescobrir em si mesmas a força da Páscoa, a força do Deus que, em seu Filho Jesus Cristo, nos faz passar da morte para a vida.
Pe. Paulo Cezar Mazzi